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Mundo

A cada cinco minutos, a violência mata uma criança no mundo

Segundo a ONU, 120 milhões de meninas já vivenciaram alguma forma de violência sexual; 8% de todas as vítimas de violência grave no mundo são crianças com até 15 anos

31 dez 2014 - 07h52
(atualizado às 07h54)
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Crianças curdas refugiadas na Turquia: realidade de milhões este ano pelo avanço do Estado Islâmico
Crianças curdas refugiadas na Turquia: realidade de milhões este ano pelo avanço do Estado Islâmico
Foto: Gokhan Sahin / Getty Images

Lucas* tinha oito anos. Eu sempre o encontrava, todo esperto, com um sorriso no rosto, brincando por aqui e por ali, adorando visitar minha família, junto de sua madrinha, Heloísa*, amiga da família, também sempre presente. Eu ainda era uma adolescente, cheia de sonhos e expectativas. Lucas era apenas uma criança, cheia de sonhos e expectativas também.

Até que aquele dia nublado, chuvoso em nossos corações, aconteceu.

"Ana, o Lucas foi estuprado por outros cinco meninos mais velhos", disse minha mãe, em tom grave.

Revoltante. Lucas tinha somente oito anos.

Foi o primeiro caso da cruel violência contra pessoas tão vulneráveis, como só as crianças podem ser, com que tive contato. Heloísa se lembra de como foi difícil para todos da família aceitarem - e ainda é, mesmo tendo se passado dez anos. Especialmente para a mãe de Lucas, Alana*, que estava tão próxima do filho quando tudo aconteceu.

O menino foi abusado sexualmente em sua própria casa pelo grupo de adolescentes que tinham entre 12 e 14 anos. Ele teve mãos e pernas amarradas e uma fita colocada em sua boca, não podendo gritar por socorro. E, na verdade, nem gritaria, assim como não gritou depois de tudo acontecer. Lucas não disse uma só palavra a ninguém. Não desabafou por ter sofrido a invasão de seu corpo, de sua infância, se sua inocência.

"Ele era uma criança ativa, esperta. Hoje é recluso, não conversa muito. Não fala nada sobre isso, nunca aceitou continuar com a terapia", conta Heloísa.

Segundo a tia e madrinha, foi um vizinho da família quem desconfiou do crime por flagrar os meninos saindo da casa de Alana de forma desconfiada, rápida, ainda ajeitando as calças. Ele contou para o avô do menino, que informou a mãe, que contou para o pai – que achou que Lucas tinha feito "por vontade" e ficou um pouco "desconfiado da inocência" do menino de apenas oito anos. Depois de tudo descoberto, Lucas confirmou o ocorrido, mas com a voz de culpa (sentimento comum que as crianças tenham em situações como ess, por não entenderem que são vítimas e não são responsáveis pela violência sofrida).

Menina sorri em escola no Iraque
Menina sorri em escola no Iraque
Foto: Matt Cardy / Getty Images

Na época, Lucas teve de ir ao juiz, à delegacia, à terapia por cinco meses. Mas nada para ele foi pior do que continuar a ir à escola: os seus abusadores estavam lá. Ameaçavam-no. Depois de alguns poucos anos, desistiu de estudar. Então, foi assim que a vida dele, de menino simples do subúrbio de uma pequena cidade em Minas Gerais, mudou para sempre. E ninguém ficou sabendo, não foi divulgado, muito menos noticiado. Lucas, afinal, era apenas mais uma das vítimas do abuso sexual no mundo.

A história de Lucas me toca, pois conheço seu sorriso, sua história, sua família. Mas, em todo o mundo, outros milhões de meninos sofrem isso todos os dias. Provavelmente, enquanto escrevo, crianças têm sua infância destruída. Segundo dados da ONU, 4% de meninos em todo o planeta já passaram pela mesma tragédia de Lucas. E, entre as meninas, a coisa ainda é pior: são 120 milhões que já vivenciaram alguma forma de violência sexual. O que quer dizer que 1 em cada 10 meninas já foi abusada.

Para piorar as esperanças, esses números são calculados em cima de casos relatados. Entre 30% e 80% dos menores abusados não divulgam experiências de violência até a idade adulta.

Além disso, o abuso sexual é apenas uma das faces da agressão contra a criança, segundo uma classificação feita pela Unicef, que aponta as violências física, emocional, negligência emocional, ‘disciplinar’ e tratamento negligente.

Violência contra Crianças Violência contra Crianças

Ano devastador, mas de esperanças

O ano de 2014 marca os 25 anos da Convenção sobre os Direitos das Crianças feita pela ONU para garantir a proteção dos menores. Naquele ano, foram estabelecidos pilares para garantir universalmente que as crianças fizessem parte da agenda de cuidados dos governos e da sociedade. No documento, existem 54 artigos em que estão supostos os direitos à sobrevivência, relativos ao desenvolvimento, à proteção e à participação dos menores de 18 anos.

<p>O ano de 2014 marca os 25 anos da Convenção sobre os Direitos das Crianças feita pela ONU para garantir a proteção dos menores de idade</p>
O ano de 2014 marca os 25 anos da Convenção sobre os Direitos das Crianças feita pela ONU para garantir a proteção dos menores de idade
Foto: Getty Images

Nessas duas décadas, muitos avanços foram alcançados – com o aprimoramento do estatuto atualizado e a inclusão de complementos essenciais em diversos países que adotam o estatuto dos direitos das crianças. 

“Nós temos discutido, cada vez mais, a adoção e a revisão de novas contribuições nas regiões sobre o cumprimento dos direitos das crianças. Temos a noção de que muitos países adotaram novas políticas, fizeram revisão do código da família, indo em direção à proteção dos códigos da criança. Além disso, há, cada vez mais, campanhas de informação e sensibilização. Com isso, a temática da criança deixou de estar na periferia da agenda dos países e isso é seguramente um dado muito importante”, afirma a representante especial da ONU Sobre a Violência contra as Crianças, Marta Santos Pais.

Segundo Marta, que esteve no Brasil em dezembro para uma conferência sobre a violência contra as crianças em países pan-americanos, em Brasília, algumas estatísticas mostram que houve avanços – especialmente em países onde, anteriormente a essas décadas da Convenção, ainda era tabu falar sobre alguns assuntos, como o abuso sexual infantil.

“Passamos da época da retórica para a época da implementação e ação. E isso consiste em colocar em prática, em cada país, uma agenda coordenada por uma alta autoridade que mobiliza contribuições, que envolve a sociedade e estuda a melhor estratégia prática. E tudo isso implica em conseguir recursos, além de incentivar políticos e comunidade. Portanto, combater a violência infantil é um desafio não só do Estado: deve ser uma ação ativa, envolvida por todos nós”, afirma.  

<p>Somente em 2014, a ONU estima que 15 milhões de crianças tenham sido fatalmente atingidas em locais como Ucrânia, Israel, Sudão do Sul, República Centro-Africana e Síria</p>
Somente em 2014, a ONU estima que 15 milhões de crianças tenham sido fatalmente atingidas em locais como Ucrânia, Israel, Sudão do Sul, República Centro-Africana e Síria
Foto: Getty Images

Porém, ainda há muito que ser feito. E urgentemente. Ainda hoje, 8% de todas as vítimas de violência grave no mundo são crianças com até 15 anos. Há muitos problemas a serem resolvidos, como no tráfico, onde mais de 30% das mortes são de crianças.

“Infelizmente, não caminhamos tão rapidamente conforme esperávamos. O trabalho infantil, por exemplo, é uma questão importante, já que mais de 168 milhões de menores ainda estão trabalhando, sendo 8 milhões as meninas envolvidas em serviços domésticos. E isso ainda é visto de forma muito natural em algumas regiões. É inadmissível”, defende.

Há ainda formas de violência silenciosas, como aquelas sofridas dentro de casa: menores que são expostos à punição física, negligência emocional e material. Segundo Marta, a ONU estima que ao menos um bilhão de crianças entre 3 e 14 anos sofre violência pela própria família – algo bastante difícil de combater, mas necessário, e que exige a presença firme da sociedade.

“Eu acho que as organizações e a comunidade têm muita vontade de contribuir. A violação do direito das crianças está em toda parte: quando vemos uma criança na rua, trabalhando, sofrendo violência na escola. Por isso, a informação é muito importante para que a sociedade civil possa participar”, completou.

Marcha, soldado

O mundo vive em guerra. E são centenas delas, em diversos países. Regiões são atingidas diariamente por confrontos armados e, claro, as crianças não ficam de fora dessa. São vítimas não só da morte, mas também do abuso sexual, além de ficarem órfãs, serem forçadas a se refugiar em países vizinhos, perderem amigos e familiares, serem impedidas de frequentar aulas e, como se não bastasse, são obrigadas a lutar como soldados. E se tem algo chocante de se ver, são pequenas crianças carregando armas pesadas.   

<p>Apenas na Síria, o Unicef relatou mais de 7,3 milhões de crianças atingidas pela guerra civil, incluindo 1,7 milhão que fugiram do país </p>
Apenas na Síria, o Unicef relatou mais de 7,3 milhões de crianças atingidas pela guerra civil, incluindo 1,7 milhão que fugiram do país
Foto: Getty Images

Desde janeiro de 2011, as crianças-soldado são usadas em, pelo menos, 19 países, de acordo com a ONG Crianças-Soldado Internacional, coalizão da qual a Anistia Internacional faz parte.

“Países utilizam crianças como soldados – não só em grupos de milícias, mas também em Forças Armadas oficiais. Na América Latina, citaria a Colômbia, onde crianças são soldados de guerrilheiros. O fato é que, quando um país chega a um ponto de usá-las nos campos de batalha, acho que tudo em volta desmoronou”, afirma Maurício Santoro, assessor de direitos humanos da Anistia Internacional no Brasil.

No combate do problema das crianças-soldados, foi criado um protocolo no ano 2000, ratificado por mais de 150 países. No próximo dia 24 de dezembro, entra em vigor um novo Tratado de Posse de Armas (que abrange compra, venda e transferência de armas leves como revólver e pistola). Nele, há restrições e até proibições da venda de armas para lugares onde crianças são usadas como soldados. “É um marco importante para lidar com esse tipo de situação. Parte do material de campanha da Anistia Internacional é feita de depoimentos de crianças que foram usadas em guerras. Tais campanhas são maneiras globais de lidar com este problema, modos de identificarmos avanços”, defende Maurício.

E nessas mesmas regiões onde crianças lutam, muitas morrem pelas consequências das guerras. Somente em 2014, a ONU estima que 15 milhões de crianças tenham sido fatalmente atingidas em locais como Ucrânia, Israel, Sudão do Sul, República Centro-Africana e Síria.

Apenas na Síria, o Unicef relatou mais de 7,3 milhões de crianças atingidas pela guerra civil, incluindo 1,7 milhão que fugiram do país. “Continuamos com catástrofes como a Síria, então ficamos muito cautelosos de falar que temos avanços sobre a violência contra crianças. A guerra civil e o avanço do extremismo islâmico no país revelam um dos eventos mais impressionantes que a gente tem ultimamente, é um colapso”, diz o assessor de direitos humanos.

Outro exemplo é a tão pouco falada República Centro-Africana, onde as retaliações da violência sectária desabrigaram um quinto da população, mais de 2,3 milhões de crianças são afetadas e também onde, acredita-se, haja mais de 10 mil que tenham sido recrutadas por grupos armados durante o ano passado e mais de 430 tenham sido mortas ou mutiladas.

América Latina, a cara da violência

De acordo com o relatório da ONU, a América Latina é uma das regiões mais violentas do mundo. Há problemas bastante importantes, tais como os homicídios de crianças e jovens – e, nisso, vergonhosamente, o Brasil é grande destaque, tendo cerca de 10% de todos os casos do mundo.

<p>As diferenças sociais ainda deixam milhões de crianças na periferia da agenda de governos </p>
As diferenças sociais ainda deixam milhões de crianças na periferia da agenda de governos
Foto: Getty Images

“As crianças dessa região ainda vivem com medo. E se elas ainda vivem com medo, seja de serem abusadas, de sofrerem na escola, de apanharem em casa, temos um panorama dramático. Os problemas na América Latina mostram que não mudamos ainda – as crianças estão nas ruas, abandonadas, fogem de casa por situações de violência, estão trabalhando, se prostituindo. Então, a construção da agenda para os próximos anos se faz urgente – e o Brasil é um país importante nisso – para a migração dos projetos em algo prático dentro das políticas públicas”, afirma Marta Santos Pais. 

Entre os grupos mais vulneráveis, por exemplo, estão crianças da Amazônia, indígenas e negras  a maioria ainda não está sob a total proteção da Defensoria Pública e necessita de melhores cuidados. 

A assessora regional da área de Proteção do Unicef para América Latina e Caribe, Nadine Perrault, lembra que a impunidade é um grande obstáculo para o combate aos crimes contra crianças na região, onde também existe um comportamento que precisa ser modificado – não só dentro dos governos, mas também da sociedade, que deve ser mais participativa e exigente.

Nadine destaca países como o Panamá e o Chile, que ainda não adotaram leis que protejam 100% das crianças de violências tais como as punições corporais (em que os pais biológicos são os principais atores). As milícias armadas também são uma preocupação para o Unicef na região, já que milhares de menores estão envolvidas em conflitos, como acontece no México e na Colômbia.

<p><span style="font-size: 15.1999998092651px;">Desde 2011, as crianças-soldado são usadas em, pelo menos, 19 países, de acordo com a ONG Crianças-Soldado Internacional</span></p>
Desde 2011, as crianças-soldado são usadas em, pelo menos, 19 países, de acordo com a ONG Crianças-Soldado Internacional
Foto: Getty Images

“Precisamos acabar com a impunidade, criando leis e agindo para que haja uma proibição explícita contra todas as formas de violência, através da institucionalização dos cuidados aos menores, a melhor aplicação dos artigos da ONU e a maior participação de autoridades e instituições”, defende Nadine.

Apesar das deficiências, a América Latina é a única região que possui oito países que já têm leis nacionais proibindo os castigos corporais. Nesse quesito, o Brasil é destaque com a chamada Lei da Palmada – ou Lei Menino Bernardo – aprovada em janeiro deste ano. Tal lei prevê que os pais que maltratarem os filhos sejam encaminhados ao programa oficial de proteção à família e a cursos de orientação, tratamento psicológico ou psiquiátrico, além de receber advertência. A criança que sofrer a agressão deverá ser encaminhada a tratamento especializado.

“Também podemos destacar que o Brasil, na América Latina, foi um dos primeiros a assinar a Convenção da ONU/Unicef, criando uma Lei Nacional que integra os princípios, com bastante precisão na proteção”, lembra Casimira Benge, coordenadora da área de Proteção do Unicef no Brasil.

Brasil e os adolescentes negros

No Brasil, 2014 foi um ano interessante: tivemos a Copa do Mundo, que trouxe uma oportunidade para a implementação de uma agenda mais ampla de proteção às crianças, que abrange diferentes atores da sociedade, tanto do setor privado, quanto do público – que trabalharam juntos para fazer um plano de proteção à criança durante o Mundial.

Um aplicativo de denúncias contra a violência infantil foi criado no Brasil para a Copa do Mundo e continua funcionando
Um aplicativo de denúncias contra a violência infantil foi criado no Brasil para a Copa do Mundo e continua funcionando
Foto: Getty Images

“Criamos uma metodologia de trabalho que fica como referência para próximos anos. Foi um ano fundamental para instalar esse procedimento e fortalecer o envolvimento dos diversos setores”, destaca Casimira.

Um dos destaques apontados pela coordenadora foi o aplicativo criado como novo canal de denúncias pelo celular, para facilitar a comunicação entre sociedade e autoridades.

Para o futuro, Casimira se diz esperançosa. Um dos pontos que o Unicef aguarda é a aprovação do Projeto de Lei 4471/2012, que alteraria o Código de Processo Penal e prevê a investigação das mortes e lesões corporais de adolescentes cometidas por policiais. Atualmente, a maior parte dos casos é registrada pelos agentes como “autos de resistência” ou resistência seguida de morte e não são investigados. “Precisamos ter um quadro legal que permita investigar esses crimes. Hoje, entre 5 e 8 % dos casos são resolvidos, apenas. É preciso acabar com a impunidade e os adolescentes (especialmente negros), devem ser justiçados”, diz.

Com a aprovação do PL, Casimira acredita que poderíamos começar o próximo ano com um quadro mais justo. Porém, somente um PL não faz milagres. Embora seja importante, sua aprovação seria uma forma de remediar o problema. “O necessário é investir em políticas públicas para diminuirmos as estatísticas de violência contra nossas crianças e jovens – todos merecem”, finaliza Casimira.

No mundo todo, milhões de crianças morrem todos os dias. Enquanto você lia essa matéria, incontáveis formas de violência se voltaram contra elas. Se tivemos melhoras em 25 anos? Sim, tivemos. Mas, no noticiário ainda encontramos Bernardo, Isabela Nardoni, a pequena menina nadando no bueiro no Rio de Janeiro, crianças passando fome na África, morrendo de desnutrição no mundo todo. Há milhões de meninas tendo a genitália mutilada, sendo obrigadas a se casar na Ásia. Milhares de meninos ainda são escravos sexuais no Afeganistão. Há crianças segurando armas, servindo como soldados, morrendo com tiros na cabeça – seja em favelas em São Paulo ou em confrontos na Faixa de Gaza. Ainda em 2014, pais descontam sua raiva em palmadas em mais de um bilhão de filhos. Crianças ainda sofrem caladas. Em 2014, crianças sírias vivem sem esperança – ou ela 'morre' ainda em vida. Ou falecem em meio a escombros.

Em pleno século 21, ainda vivemos tão próximos da violência que nem percebemos o quão frágeis nossas crianças são. Ainda temos nossos ‘Lucas’. Perdendo sorrisos, perdendo a infância. 

*O nome de Lucas, Heloísa e Alana são fictícios para proteger a identidade da vítima

Relembre casos no Brasil:

Crianças e adolescentes vítimas da violência: Caso Isabella Nardoni, João Hélio, Eloá e mais Crianças e adolescentes vítimas da violência: Caso Isabella Nardoni, João Hélio, Eloá e mais: Relembre casos de crianças e adolescentes que foram vítimas da crueldade e da violência, entenda como estes homicídios aconteceram e saiba dados sobre este tipo de crime que só cresce no Brasil.

Foto: Arte Terra

Fonte: Terra
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