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Opinião: Turquia, o país das perguntas encarceradas

9 set 2016 - 13h49
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Confisco de material jornalístico da DW é amostra da "liberdade de imprensa" alegada por Ancara, opina o jornalista convidado Can Dündar, ex-editor-chefe do jornal de esquerda liberal "Cumhuriyet".

Na Turquia, as perguntas mais incômodas são feitas pelos jornalistas estrangeiros. Há dois motivos para tal.

Primeiro: os dirigentes turcos não se confrontam com jornalistas de verdade. Há anos o presidente Recep Tayyip Erdogan não se reúne com nenhum profissional de quem deva temer questionamentos desagradáveis. Ele só tem aceitado pedidos de entrevistas daqueles que simpatizam com ele e lhe fazem perguntas "simples".

Segundo: mesmo que, acidentalmente, um deles colocasse uma questão incômoda numa coletiva de imprensa, ele ou seria duramente insultado pelo entrevistado, ou perderia o emprego em consequência.

Por esse motivo é bem mais fácil para os jornalistas estrangeiros, que em seguida voarão de volta para casa, fazer perguntas indesejadas. Embora as respostas que receberão não vão satisfazê-los de verdade.

Erdogan e seus ministros reagem a questões incômodas com uma resposta-padrão: "Se a Turquia fosse um Estado repressivo, o senhor / a senhora não estaria em condições de fazer uma pergunta dessas."

No entanto só se pode falar realmente de liberdade de imprensa se é possível perguntar sem sentir a ameaça que se oculta por trás de tal resposta. E mesmo num Estado repressivo pode-se, vez por outra, colocar perguntas difíceis. Só que é mais difícil avaliar o que acontecerá com o questionador depois. Pois, num sistema assim, cada pergunta incômoda tem seu preço. E são pouquíssimos os jornalistas que simplesmente escapam sem pagá-lo.

Um exemplo: em 2015 o prefeito de Sanliurfa, no sudeste da Turquia, deu uma entrevista coletiva. Na ocasião, alguns jornalistas mencionaram que os moradores estavam preocupados e temerosos devido à presença de militantes do "Estado Islâmico" (EI) na cidade.

A reação do prefeito foi encerrar a coletiva de forma abrupta e colérica, e ordenar aos policiais próximos: "Levem eles junto." Três profissionais de imprensa foram colocados sob custódia policial.

Pouco mais tarde, constatou-se que um deles trabalha para um veículo estrangeiro, e por esse motivo choveu crítica internacional. Assim, o político foi obrigado a liberar os detidos, alegando ter-se tratado apenas de um controle de passaportes. Um dos três era Deniz Yücel, correspondente do jornal alemão Die Welt em Istambul.

Meses mais tarde, o mesmo colega entrou novamente na mira, desta vez do primeiro-ministro Ahmet Davutoglu. Numa coletiva com ele e a chanceler federal alemã, Angela Merkel, Yücel perguntou o que o premiê turco pensava das alegações de que o Estado também matava civis em operações antiterrorismo.

Em vez de responder, Davutoglu o acusou de tentar estar fazendo uma declaração política, como se fosse o terceiro chefe de governo no recinto. Sim, ele também respeitava esse jornalista, prosseguiu o premiê, e complementou com o clichê: "A mera possibilidade de fazer uma acusação dessas a um primeiro-ministro é um indicador da liberdade de imprensa na Turquia."

Mas não é verdade! Não se pode falar de liberdade de imprensa num país em que o mero ato de fazer perguntas já exige coragem. Além disso, no dia seguinte Yücel foi denunciado nos periódicos ligados a Ancara como "simpatizante do PKK", que fazia perguntas atrevidas ao premiê.

A mais recente vítima dessa concepção de mídia independente, a qual leva a se confundirem jornalistas com porta-vozes, foi a equipe da Deutsche Welle que entrevistou o ministro dos Esportes turco, Akif Çagatay Kiliç.

Após a conclusão da entrevista, o Ministério dos Esportes simplesmente confiscou o material. Provavelmente o órgão está agora atônito com as críticas maciças recebidas, e antes nem mesmo sonhava quão absurdo realmente foi seu procedimento.

Como frisa a Associação Turca dos Jornalistas em comunicado, só esse incidente já basta para mostrar a distância entre os padrões jornalísticos internacionais e as circunstâncias na Turquia.

Tomando esse lamentável incidente como pretexto, eu gostaria de me dirigir aos colegas alemães: sejam muito bem-vindos à Turquia! Espero que agora consigam compreender melhor o que somos forçados a viver, dia a dia, neste "país das perguntas encarceradas". E podem esquecer o material em vídeo: nunca mais vão recebê-lo de volta!

A rigor, o ministro dos Esportes deveria ter que se desculpar por seu comportamento. Isso talvez fizesse com que os dirigentes do país pensassem duas vezes antes do próximo confisco de material jornalístico.

Deutsche Welle A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas.
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