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UE 'esvaziada' pode ameaçar paz no continente, diz historiador

30 mar 2017 - 15h57
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Historiador classifica como 'lamentável' o debate feito sobre o Brexit no Reino Unido
Historiador classifica como 'lamentável' o debate feito sobre o Brexit no Reino Unido
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

Se a União Europeia (UE) não encontrar formas de fortalecer a participação da população e levar o projeto a um novo patamar, o bloco corre o risco de se esvaziar e perder um de seus maiores potenciais: o de catalisador da paz na região.

Essa é a opinião do historiador teuto-britânico Kiran Patel, da Universidade de Maastricht, autor de The New Deal: A Global History ("O Novo Acordo: Uma História Global" em tradução livre) e Europäisierung wider Willen. Die Bundesrepublik Deutschland in der Agrarintegration der EWG, 1955-1973 ("Europeização forçada: A Alemanha na Integração Agrária da Comunidade Econômica Europeia, 1955-1973"). Ele acredita que a saída do Reino Unido do bloco, o chamado Brexit, mostra que "não dá para (o bloco) continuar como está, porque a resistência (à União) em alguns países e entre alguns grupos da população está muito grande. É preciso refletir sobre como convencer as pessoas sobre os valores deste projeto".

"O potencial de paz da União Europeia pode se revelar quando ela não estiver mais lá, ou seja, com a saída de países do bloco", diz Patel em entrevista à BBC Brasil.

Ele disse lamentar que o papel do bloco como elemento estabilizador na região, de um catalizador para o entendimento entre países de uma região historicamente marcada por conflitos e guerras, tenha sido deixado de lado nas discussões sobre a saída do Reino Unido da União Europeia.

"O argumento da paz ganhou importância ao longo da história da União Europeia, pois a cooperação alcançada na região evita a escalada de conflitos na Europa. Por isso, é lamentável como o debate sobre o Brexit foi realizado no Reino Unido", disse.

Criada em 1957, com o Tratado de Roma, a UE, inicialmente chamada de Comunidade Econômica Europeia, teve sua origem na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, fundada em 1951, seis anos após a Segunda Guerra, como uma forma de coordenar o mercado de produtos que estiveram na raiz de conflitos entre países da região, como Alemanha e a França.

Além de servir a interesses econômicos, o acordo de integração comercial tinha também a intenção de estabilizar a região ao reintegrar a Alemanha na Europa. Ele serviu ainda de modelo para estabelecer as bases da futura União Europeia.

No início, em 1957, o bloco europeu contava apenas com seis países (França, Itália, Alemanha, Bélgica, Holanda e Luxemburgo). Ao longo de 60 anos, essa integração alcançou 28 países e o papel da UE para estabilidade e paz regional se tornou mais relevante. No entanto, esse aspecto não foi abordado e continua sendo ignorado nos debates sobre o Brexit.

Historiador relata como a manutenção da paz ganhou relevância funcional na União Europeia
Historiador relata como a manutenção da paz ganhou relevância funcional na União Europeia
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Em entrevista à BBC Brasil, Patel explica o papel do bloco como estabilizador regional e por que precisa mudar para não correr o risco de perder mais países e, assim, perder também sua força como mantenedor da paz.

Confira os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil: Você argumenta em sua pesquisa que a manutenção da paz através da União Europeia, no início da criação do bloco e durante a década de 1960, não teve uma importância concreta, mas simbólica. Por que ocorreu esse fenômeno?

Kiran Patel: A história inicial da Comunidade Europeia está relacionada a instituições pequenas que tinham pouca competência. Assim, sua contribuição para manter a paz na Europa não era grande, mas havia uma identificação com essa ideia. A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço criou uma cooperação entre setores importantes para a condução de uma guerra, sendo uma tentativa de alcançar a paz ou estabilizá-la na região.

Além disso, na época, outras organizações maiores também tinham esse objetivo, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Por isso, a Comunidade Europeia era vista como um símbolo da cooperação entre Estados europeus, inclusive a Alemanha, que aprenderam com os conflitos e o nacionalismo das décadas anteriores e tentavam mudar o jeito de fazer as coisas.

BBC Brasil: Quando esse papel deixou de ser simbólico?

Patel: Desde os anos 1970 e 1980, a Comunidade Europeia assumiu um novo papel para manutenção da paz interna, porque passou a ser percebida, por países que não estavam no bloco, como um fator de estabilidade. Isso se deve, principalmente, pela ampliação do bloco na década de 1980, quando as ex-ditaduras Grécia, Espanha e Portugal entraram na Comunidade Europeia.

Essa integração foi fundamental para estabilizar a ordem democrática e a convivência pacífica nestas sociedades. O bloco passou a ser visto com um meio, uma âncora, de convivência pacífica na Europa.

BBC Brasil: Em que sentido a entrada destes três países contribuiu para a mudança de percepção sobre o bloco?

Patel: A Comunidade Europeia deixou de ser percebida com uma organização técnica no setor da cooperação econômica e passou a ser vista como uma forma de trabalho conjunto intimamente entrelaçado. Os efeitos econômicos do bloco tornaram-se mais importantes e a entrada destes países na comunidade foi um momento de estabilização destas sociedades na fase de transição para a democracia.

Neste período, as raízes plantadas na década de 1950 começam a surtir efeito e a União Europeia se tornou ainda um sucesso de cooperação econômica.

A criação de prosperidade, com frequência, pode contribuir para a redução de conflitos sociais e políticos, e essa é uma das contribuições da União Europeia. A forma de cooperação no bloco ajudou a ampliar avanços econômicos. Além disso, os Estados assumiram uma cooperação muito entrelaçada, o que explica a supranacionalidade em decisões políticas da UE, ou seja, o fato de instituições e o direito comum conseguirem derrotar posições contrárias de um país-membro, em determinadas ocasiões.

Essa forma de cooperação mostra o quão os países estavam dispostos, em algumas ocasiões, a deixar interesses nacionais de lado por um interesse europeu comum.

O historiador afirma que é necessário refletir sobre como convencer as pessoas sobre os valores de manter a União Europeia
O historiador afirma que é necessário refletir sobre como convencer as pessoas sobre os valores de manter a União Europeia
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

BBC Brasil: Por outro lado, esse entrelaçamento não poderia ocasionar conflitos?

Patel: Há também um potencial de conflito que explica a situação atual. A integração europeia sempre foi um projeto das elites políticas e econômicas. A maioria da população não foi fortemente incluída nele e durante muito tempo o aceitou, enquanto o resultado foi bom. O crescimento de movimentos populistas e eurocéticos, porém, revela o fortalecimento do sentimento de que deixar de lado a soberania e competência nacional foi um erro. O Brexit é o melhor exemplo da resistência a esta forma de cooperação.

BBC Brasil: O que seria necessário para reverter esse cenário negativo?

Patel: Como em todo projeto político complicado, há um lado positivo e um negativo, mas está bastante claro que a aceitação e participação da população precisa ser fortalecida para o projeto alcançar um novo patamar. Muito foi alcançado com a UE, mas não dá para continuar como está, porque a resistência em alguns países e entre alguns grupos da população está muito grande. É preciso refletir sobre como convencer as pessoas sobre os valores deste projeto.

O potencial de paz da União Europeia pode se revelar quando ela não estiver mais lá, ou seja, com a saída de países do bloco.

BBC Brasil: Diante o Brexit e o crescimento da extrema-direita na Europa, qual é a importância atual da UE para a manutenção da paz na região?

Patel: No início da criação do bloco, a contribuição para a paz era relativamente pequena porque a UE era uma organização pequena com poucas competências, mas isso mudou bastante nas últimas décadas. Com relação a cooperação militar, a União Europeia ainda é fraca, porém, o bloco é um gigante econômico.

Além disso, a UE contribuiu para facilitar a convivência na Europa. Sem o bloco, muitos conflitos com origens antigas poderiam ter tomado outras dimensões. Com seu soft power, a União Europeia também tem um papel importante na resolução e no equilíbrio de conflitos internacionais.

BBC Brasil: Você teria um exemplo concreto neste caso?

Patel: A situação da Irlanda do Norte, por exemplo. A UE reduziu esse conflito sem ser um ator, mas ao criar um âmbito para isso. Com o Brexit e a permanência da Irlanda no bloco, haverá uma grande mudança neste âmbito. Acredito que o conflito na Irlanda do Norte pode voltar à pauta política e a fase relativamente pacífica das últimas décadas pode estar ameaçada. O potencial de paz da União Europeia pode se revelar quando ela não estiver mais lá, ou seja, com a saída de países do bloco.

BBC Brasil: E por que um tema relevante como este não teve importância no debate sobre o Brexit?

Patel: No Reino Unido, o debate foi dominado por questões econômicas e críticas à burocracia do bloco, e à perda de soberania do país em aspectos importantes, como a imigração. A questão da importância da UE para a paz é, hoje, muito abstrata.

Esse tema era mais palpável nas décadas de 1960 e 1970, quando muitas pessoas tinham participado de uma guerra em que uns lutaram contra os outros. Mas esse debate caiu no ostracismo, porque a paz está relativamente segura agora.

Mas o tema é importante ao longo da história da União Europeia, pois a cooperação alcançada na região evita a escalada de conflitos na Europa. Por isso, é lamentável como o debate sobre o Brexit foi realizado no Reino Unido.

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