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Estados Unidos

WikiLeaks: especialista francês defende direito ao segredo

5 dez 2010 - 08h57
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Lúcia Müzell
Direto de Paris

Na autoridade de diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos em Comunicação da Universidade Panthéon-Assas (Sorbonne) e de ex-presidente do Instituo Francês de Imprensa, o intelectual Francis Balle defendeu, em entrevista ao Terra, o direito ao segredo de Estado e criticou a divulgação de relatórios secretos "roubados" pelo site WikiLeaks.

Polêmico, o WikiLeaks divulgou 250 mil documentos oriundos da diplomacia americana ao redor do mundo
Polêmico, o WikiLeaks divulgou 250 mil documentos oriundos da diplomacia americana ao redor do mundo
Foto: Reuters

"Não haveria vida internacional possível sem atividade diplomática secreta", afirmou Balle, presença frequente nos programas de debates da televisão francesa. O autor de Et si la presse n'existait pas (E se a imprensa não existisse) e Médias et Sociétés (Mídias e Sociedades), entre outras obras, questionou a credibilidade do polêmico site e ainda afirma que o WikiLeaks não realiza jornalismo investigativo, uma vez que apenas divulga informações de ordem privada que não têm impacto na vida das pessoas.

O estudioso, que já foi agraciado com a prestigiada distinção da Legião da Honra - acordada às personalidades mais influentes da França - falou ao Terra por telefone, na última quarta-feira, sobre a repercussão da divulgação dos mais de 250 mil documentos secretos das embaixadas americanas ao redor do mundo.

O que representa o WikiLeaks na mídia de hoje?
É paradoxal, porque ele se diz ao mesmo tempo um site de informações e veste a camiseta de um site que quer defender o direito do público de ser informado sobre tudo que possa lhe dizer respeito, mas ele não confia em si mesmo, uma vez que entrega os seus documentos a cinco jornais - documentos que ele roubou, é preciso dizer. Ele dá a cinco jornais o trabalho de separar o que é importante e analisá-los. Ora, quando dizemos que somos um site de informações, nós fazemos nós mesmos este trabalho.

Lamento que jornais respeitáveis tenham entrado neste jogo, porque, antes de mais nada, eles não verificaram a autenticidade destes documentos, e confiaram cegamente no WikiLeaks. O argumento deles é de que não há razões para pensar que os documentos são falsos. No entanto, no meu ponto de vista, o comportamento que se espera de um jornalista é o de, antes de analisar documentos, eles tenham a autenticidade verificada - algo que até agora não foi feito.

Na sua opinião, os cinco grandes jornais internacionais não deveriam ter publicado os documentos?
É claro que eles viram neste caso uma oportunidade incrível de dar um furo jornalístico e de serem prestigiados no mundo inteiro. É muito difícil para um jornal recusar informações, mesmo se essas informações foram roubadas. Podemos compreender, mas isso não nos impede de discordarmos.

Você acha que o WikiLeaks tem o direito de publicar estes documentos?
O direito à informação é cerceado pelo direito ao respeito da vida privada das pessoas e o respeito dos segredo intrínseco a certas instituições. Não haveria vida internacional possível sem atividade diplomática secreta. Jamais teriam ocorrido relações entre a França e os defensores da independência na Argélia e nas demais ex-colônias francesas, nos anos 60, se as primeiras conversas, bastante polêmicas, não tivessem sido mantidas em segredo. Não haveria a menor possibilidade de os americanos reconheceram a China se nos anos 70 as conversas diplomáticas tivessem sido divulgadas. Hoje, temos dificuldades em manter em segredo conversas que acontecem entre os palestinos e os israelenses. Não há vida diplomática possível sem a manutenção dos segredos.

Você acha que certos segredos de Estado não devem ser jamais revelados ao público?
Com certeza. Os segredos de Defesa e os segredos diplomáticos devem ser preservados a qualquer preço. A democracia não é a transparência: a democracia deve esclarecer tudo que é de ordem pública, mas existe uma parte dos assuntos de Estado que não podem ser tratados de outra forma que não no segredo das conversas privadas. Assim como as pessoas têm direito ao sigilo das suas correspondências particulares, os serviços diplomáticos precisam que o sigilo sobre suas conversas internacionais seja garantido. Todo mundo fala com outra pessoa de uma forma quando a conversa vai se manter privada, e de outra forma se sabe que o conteúdo do diálogo será divulgado.

Até agora, nenhuma informação bombástica foi divulgada. Você acha que, se houver alguma conversa realmente intrigante divulgada, ela será legítima para causar verdadeiros transtornos diplomáticos?
No fundo, não há nada de espetacular. Dizer que Angela Merkel não tem muita criatividade, ou que Sarkozy é vaidoso, é nada além do que uma gafe. Pode haver mais problemas quando um país árabe pede a proteção dos Estados Unidos em relação ao Irã, como supostamente aconteceu com a Arábia Saudita. É claro que esse tipo de incidente aumenta as tensões, que já não são poucas, no Oriente Médio.

A consequência imediata é que todo mundo vai ficar desconfiado do que pode ou não dizer. Mas a realidade é que isso não é de hoje. Nas altas esferas do poder, praticamente não existem mais reuniões realmente privadas, porque sempre há alguém gravando tudo para o caso de precisar provar algo um dia. O mesmo acontece para as famosas informações em off entre um jornalista e suas fontes. Se um político diz alguma brincadeira num corredor, chegando a algum lugar, por exemplo, e um jornalista aproveita para divulgar essa conversa informal, é um grande problema que pode ter sido criado por nada. Aliás, está a cada dia mais difícil de brincar com jornalistas, porque eles adoram essas escapadas que acontecem em momentos mais relaxados. Todo mundo faz brincadeiras no âmbito privado, e muitas delas nem são por mal: são apenas brincadeiras. Mas se isso vem a público, adquire um outro contexto em que pode ser muito mal interpretado e constrangedor para todos.

Você acha que o público e as mídias vão permanecer interessados nos documentos do WikiLeaks a longo prazo, na medida em que as conversas vão sendo divulgadas?
Acho que a tendência é de as pessoas irem se cansando do assunto. E no futuro, podemos ter certeza de que os controles sobre todo o tipo de conversa ou relatórios de reuniões serão mais severos. Esse vazamento permitiu perceber uma falta grave nos controles das informações. A partir de agora, vai ser como num regime totalitário, em que todo mundo teme todo mundo. Não foi à toa que os segredos que foram pior divulgados foram os que envolvem os regimes não-democráticos, afinal, eles sabem guardar muito bem os seus segredos e sabem também impedir as pessoas de falar. É preciso defender profundamente o direito à informação e à transparência com os assuntos de interesse público nacional. Mas, em igual intensidade, é preciso garantir o direito ao segredo tanto para as pessoas, quanto para as instituições.

Como você analisa o jornalismo de investigação de hoje?
Neste caso, não tem nada a ver com jornalismo de investigação. Não tem nada a ver com o caso Watergate, por exemplo. Naquela vez, era um caso realmente de interesse público, e tanto era que o presidente Nixon foi obrigado a se demitir. Dizia inteiramente respeito ao interesse dos cidadãos. Um exemplo em contrário foi o caso Mônica Lewinski, em que, de tão privado que era, resultou no apoio da população a Bill Clinton, inclusive de sua própria mulher, Hillary, e na permanência dele no poder. A opinião pública percebeu que atrás da acusação de traição conjugal, havia uma manobra política dos republicanos para se aproveitarem disso e desestabilizar o governo Clinton.

Mas você não concorda que é dever do jornalista procurar além de o que os governos querem mostrar?
Sim, certamente. É claro que os governos têm interesse em esconder certas coisas, mas a lei deve garantir a fronteira entre o que deve ser mantido em sigilo e o que deve ser de domínio público. E se hoje não se faz mais tanto jornalismo investigativo quanto antes, é por uma razão bem simples: é preciso tempo e dinheiro para se fazer uma investigação completa, com dados confiáveis. Os jornais nem sempre têm tempo a "perder" com investigações, e ainda menos dinheiro, atualmente. É preciso reconhecer que o jornalismo anglossaxão é superior ao jornalismo europeu continental, neste aspecto. Eles têm mais dinheiro e mais gosto pela investigação pública.

De tempos em tempos, aparecem pessoas isoladas ou grupos de pessoas querendo desvendar os segredos de países poderosos como os Estados Unidos. Estamos diante de uma guerra de um homem só contra um Estado todo-poderoso? A Interpol já expediu um mandado de prisão internacional contra Julian Assange, o criador do WikiLeaks, por acusações de um suposto estupro ocorrido em agosto...
Não se pode misturar as coisas. Compreendo que os Estados atingidos pelo documento reajam, mas é preciso atacar WikiLeaks no campo onde ele se situa, e não misturar as coisas e acusá-lo de estupro enquanto ele é procurado por, na realidade, outra coisa. Ele roubou documentos e um dia talvez tenha que responder por isso.



Fonte: Especial para Terra
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