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Líder da máfia, 'Ndrangheta mantém tradição de extorquir

9 ago 2010 - 09h51
(atualizado em 11/8/2010 às 11h40)
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Leandro Demori
Direto de Roma

Uma fuga extraordinária, troca de tiros com a polícia, o cotidiano em um esconderijo e seus dotes como uomo d'onore (homem de honra), como se chamam os mafiosos. O roteiro banalizado por filmes de ação em todo o mundo faz parte das canções de Gregorio Bellocco, mafioso calabrês capturado em seu bunker na cidade de Rosarno em 2005, integrante da 'Ndrangheta, a máfia mais poderosa do país atualmente, que mantém tradições como a prática de extorsão e os casamentos entre membros da mesma família.

Policial escolta um dos 67 presos em operação na Calábria contra a 'Ndrangheta
Policial escolta um dos 67 presos em operação na Calábria contra a 'Ndrangheta
Foto: AFP

Bellocco, um dos mafiosos mais procurados à época, escrevia poesias e as musicava, postando algumas delas na internet e vendendo outras em forma de CD clandestino no melhor estilo "proibidão do funk". Sua música mais famosa, Circondatu, conta como o boss - hoje preso após nove anos de clandestinidade - conseguiu escapar da polícia que o cercava em seu bunker subterrâneo em 2003. A fuga, relatada como heroica, teria sido feita "pelas águas geladas de um riacho". Circondatu será usada pela procuradoria italiana no processo contra Bellocco, acusado de tráfico, extorsão e fraudes em obras públicas.

Não há poesia nos balanços bilionários e nas inúmeras mortes encomendadas pela associação mafiosa da qual Bellocco faz parte.Subestimada por décadas, a 'Ndrangheta é hoje a máfia mais poderosa da Itália e uma das mais influentes do mundo, suplantando de longe o poder da Cosa Nostra (Sicília) e da Camorra (Campânia). Estimativas oficiais evidenciam o lastro da multinacional do crime, fundada na Calábria muito antes da própria unificação italiana (1861): cerca de 6 mil afiliados, bases na Itália, Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Brasil, Austrália, Bolívia, Inglaterra, Suíça, Holanda e outra dezena de países pelo mundo. "A 'Ndrangheta busca sempre a sombra, se move longe dos refletores", explica Enzo Ciconte, historiador calabrês autor de vários livros sobre a máfia, ex-deputado da Comissão Antimáfia e um dos maiores conhecedores do assunto.

Os clãs da Calábria comandam uma espécie de oligopólio do mercado de cocaína na Europa: controlam a produção, o transporte e a distribuição da droga por meio de joint-ventures com traficantes sul-americanos radicados nos países produtores e distribuidores, entre eles o Brasil.Seu faturamento anual é estimado pela Divisão Antimáfia italiana em 44 bilhões de euros ao ano. O que torna a 'Ndrangheta tão poderosa é seu modo de trabalho. Em vez de simplesmente comprar a droga, a máfia se torna sócia do empreendimento, envia calabreses para morar nos locais de produção e distribuição e, caso necessário, força casamentos e comunhões entre famílias como dita a antiga tradição mafiosa.

Extorsão

O grosso do faturamento vem da droga, mas a 'Ndrangheta pratica ainda hoje o sistema de extorsão que deu origem aos mais célebres clãs italianos. O pizzo é cobrado de empreendedores e profissionais liberais em troca de "proteção". O faturamento com esse tipo de atividade - cerca de 3 bilhões de euros ao ano - é baixo se comparado ao giro global de dinheiro nos cofres 'ndranghetistas. A extorsão serve, na verdade, para manter uma tradição: a do controle do território. Mesmo internacionalizada, a 'Ndrangheta é ainda hoje maternalmente ligada à sua terra. "Eles buscam sempre o consenso e se mostram como portadores dos valores populares nas mais remotas cidades calabresas", explica Ciconte.

O pizzo é uma raíz indissociável das regiões do sul da Itália, berço de todas as máfias. A Confederação da Indústrias (Confindustria) da Calábria estima que cerca de 70% dos empresários locais pagam o pizzo, seja em dinheiro, seja empregando pessoas indicadas pelos clãs ou comprando de revendedores impostos pela organização. Descontando-se as empresas que são parte do próprio sistema criminoso, a "resistência" não chega a 5% dos empreendedores.

Resistência

Símbolo dessa resistência, o empresário Luigi Taiani se tornou o que ele próprio chama de "mosca branca" em Lamezia Terme, cidade tida como a de maior infiltração mafiosa do país. Desde 1985, Taiani teve seis carros e um galpão incendiados por se negar a pagar o pizzo."Recebemos telefonemas no meio da madrugada, ameaças, sofremos perseguições", lembra. Em 1995, a cena mais chocante: "encontrei no terreno da minha casa a cabeça de um lobo com a própria cauda na boca, costurada. Aquilo era um recado claro: na próxima, te matamos".

Taiani não esmoreceu porque, segundo ele, "não reconhece a autoridade daqueles senhores", elencados pelo Kingpin Act - lista elaborada pelo governo dos Estados Unidos com os nomes mais perigosos e influentes no mundo subterrâneo do tráfico global de drogas - como tão perigosos quanto as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

A 'Ndrangheta é filha do Mezzogiorno (como é denominado o sul daItália) e sabe da força que a religião católica tem naquelas terras. A própria estrutura da organização é baseada no catolicismo, um modo de angariar aceitação popular. A cúpula dos maiores chefões é denominada La Santa (em homenagem à Maria mãe de Jesus). Outras microcélulas de poder têm nomes santoss: o Vangelo (Evangelho), por exemplo, espécie de seleção dos 33 principais capos da entidade. Tanto o Vangelo como La Santa (e os 'ndranghetistas em geral) adotam o Arcanjo Gabriel como seu protetor. Sua imagem é motivo de devoção pelos membros da máfia calabresa e provavelmente usada nos rituais de iniciação, onde o candidato jura fidelidade ao grupo sob o nome de Jesus Cristo. Ironicamente, Gabriel é o protetor da polícia do Estado italiano.

Subestimada

A partir dos anos 80, o Estado italiano concentrou grandes esforços jurídicos para golpear as máfias. A arma foi apontada para a Sicília, terra da organização mais poderosa da época: a Cosa Nostra, como ficou conhecida nos Estados Unidos - onde tinha ramificações - ou simplesmente Máfia, com M maiúsculo. Enquanto sofria processos esquartejantes em seu organograma (os Maxiprocessos, que botaram muitos criminosos atrás das grades), a Cosa Nostra foi perdendo poder.Em seu vácuo, subestimada pela Justiça, a 'Ndrangheta cresceu, deixando de ser uma organização de pastores de montanha para se inserir de vez no mercado mundial de entorpecentes, sobretudo cocaína.

Um dos motivos pelos quais a 'Ndrangheta se mantém no topo é a forma de sua estrutura. Diferentemente da Cosa Nostra ou da Camorra, a 'Ndrangheta não tem estrutura piramidal. Enquanto na Cosa Nostra há um capo, na 'Ndrangheta há vários. Essa forma de poder propicia duas coisas fundamentais: a primeira delas é que, se um chefe de família for preso, a estrutura sofre poucos abalos. Não há a figura de um centralizador que comanda os demais. A segunda delas é o estilo de investimento. Enquanto as outras máfias possuem uma espécie de caixa único, a 'Ndrangheta opera por meio de participações. Para trazer um carregamento de cocaína da América do Sul, por exemplo, várias famílias investem dinheiro. Caso haja apreensão da droga, muitos perdem pouco, o problema é diluído.

Outro motivo de força está nas relações mantidas entre os grupos.Enquanto Camorra e Cosa Nostra são mais livres em termos associativos, a 'Ndrangheta é estritamente familiar, frequentemente forçando matrimônios entre descendentes de famílias. Isso praticamente elimina a figura do pentito, o mafioso colaborar de Justiça. "Como os laços são de sangue, dificilmente um irmão entrega outro, ou um filho entrega o pai", exemplifica Enzon Ciconte. Historicamente, a figura do pentito é a chave que a Justiça utiliza para abrir os cofres e os caixões das máfias. Sem eles, a ação das forças policiais e jurídicas fica extremamente limitada.

Fonte: Especial para Terra
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