Contra o tempo: ex-guarda da SS de 94 anos julgado na Alemanha pode ser o último nazista no banco dos réus?
Acompanhar o julgamento de Reinhold Hanning no tribunal foi como assistir a Alemanha confrontar seu passado cara a cara.
O antigo guarda de Auschwitz foi condenado, nesta sexta-feira, a cinco anos de prisão por ter sido cúmplice no assassinato de pelo menos 170 mil pessoas.
É difícil imaginar que este frágil homem de 94 anos vestia seu uniforme nazista com orgulho, vigiando prisioneiros aterrorizados no campo.
Mas quando, um a um, os hoje idosos sobreviventes de Auschwitz se levantavam e se dirigiam a ele diretamente, essa impressão mudava. As vozes deles eram firmes, as histórias horríveis. E as imagens e sons que eles descreviam ressoavam por muito tempo depois que eles paravam de falar.
E é para isso mesmo que serve este tipo de julgamento.
O caso em detalhes
- Reinhold Hanning nega ter sido cúmplice em mais de 170 mil assassinatos em Auschwitz
- Procuradores afirmam que ele contribuiu para "o objetivo da exterminação"
- Reinhold Hanning pediu desculpas, mas o sobrevivente Leon Schwarzbaum disse: "Eu perdi 35 parentes, como você pode se desculpar por isso?''
- Mais de 1,1 milhão de pessoas foram mortas em Auschwitz, a maioria judeus
É claro que o objetivo era estabelecer a culpa ou inocência do réu e estabelecer seu papel no funcionamento do esquema que, sistematicamente, matou milhões de pessoas.
Nos últimos anos, dois outros guardas de campos de extermínio foram condenados por ajudar a facilitar o genocídio. E promotores estão correndo contra o tempo para trazer outras pessoas para o tribunal.
Mas o que ocorre neste momento, além do julgamento de uma só pessoa, é uma tentativa da Alemanha de examinar seu momento mais sombrio em público e registrar oficialmente, talvez pela última vez, o que aconteceu.
Os sobreviventes não podiam provar que Reinhold Hanning estava lá. Mas sua presença no julgamento, suas vozes, são consideradas cruciais.
A BBC traz as histórias de três personagens que marcaram o julgamento:
A sobrevivente de Auschwitz
Hedy Bohm lembra, com detalhes vívidos, de sua chegada a Auschwitz.
"Eu gostaria de não lembrar tanto, mas eu lembro", diz ela. "Não é algo que você consiga apagar da memória."
"Os gritos, o choro, as crianças, as ordens, os cachorros latindo... e no fundo esses campos cercados com aquelas construções. Onde eu estava? O que era aquilo? Eu não conseguia entender nada."
Hedy foi separada de seu pai e de sua mãe. Ela nunca mais os viu. Tinha 14 anos.
"Achei que minha mãe conseguiria sobreviver e que quando acabasse estaríamos juntas de novo."
"Eu não sabia, nem em Auschwitz nem em todos os meses que passei em trabalho escravo em fábricas, eu não sabia sobre o crematório, eu não sabia que o caminho que minha mãe tinha pegado - e todas as outras mães e crianças e bebês - ia direto para as câmaras de gás e a cremação."
"Eu não sabia. Eu não posso perdoar os homens. Eu não acho que eu tenha o direito de perdoar por ter tido minha mãe e pai e milhares de crianças e bebês mortos. Quem sou eu para perdoar em seus nomes? Não tenho o direito. Mas não tenho raiva. Graças a Deus, não tenho raiva."
Nascida em Auschwitz
Angela Orosz-Richt nunca deixou sua família jogar fora cascas de batata e usava os restos para cozinhar. Porque em Auschwitz elas salvaram a vida de sua mãe - e a dela.
A mãe de Angela estava grávida quando foi levada para o campo de concentração. Ela conseguiu manter a gravidez comendo restos de alimentos da cozinha onde trabalhava. E ela também sobreviveu a experimentos - no útero - feitos pelo temido médico Josef Mengele.
"Ela virou seu ratinho de laboratório. Um dia ele deu uma injeção no colo do útero dela. E o feto - eu - foi para o lado esquerdo. No dia seguinte ela recebeu outra injeção e eu fui para o outro lado. E era assim que ele brincava. Ele me movia com uma injeção. Depois de um tempo, por sorte, ele esqueceu dela."
Angela nasceu em uma gelada tarde de dezembro em 1944, escondida na cama de cima de uma beliche em uma acomodação feminina.
Algumas horas depois, conta ela, sua mãe teve que ficar em uma fila, descalça, para uma chamada de três horas, apavorada com a possibilidade da recém-nascida ser descoberta ou atacada pelos ratos famintos que assolavam o campo.
Pelo resto da sua vida, Angela conta, sua mãe teve pesadelos com suas experiências no campo. "Quando ela estava morrendo eles deram morfina para ela mas ela continuava dizendo: Mengele está na porta, ele está vindo para me pegar!".
"A gente estava segunrando sua mão, mas Mengele estava lá."
O caçador de nazistas
O ar é seco na quieta e triste sala que abriga parte do arquivo nacional da Alemanha. Caixas de papel cinzas e padronizadas, cada uma com o número de referência carimbado, ocupam o espaço, do chão ao teto.
As caixas contém arquivos, detalhes, a história do período mais sombrio da história da Alemanha. E é analisando-as meticulosamente que Jens Rommel encontra as dicas que ajudam a descobrir nazistas como Reinhold Hanning.
Ele encontra o nome deles datilografados em registros de trabalho nazistas, escritos em diários ou mencionados como testemunhas em julgamentos anteriores de nazistas do alto escalão.
Aqueles que comandaram as atrocidades estão mortos há tempos. Muitos não foram levados à Justiça, em parte porque, por muito tempo, as autoridades alemãs foram relutantes em confrontar o passado. Jens busca oficiais "júnior", mais novos. Se eles ainda estiverem vivos, estão na casa dos 90 anos.
"Temos que tentar fazer o que é possível hoje", diz ele. "É importante para a sociedade na Alemanha e no exterior entender o que aconteceu nos campos, como era organizado e quem era responsável. Não apenas os oficiais de alta patente mas também os de baixa eram necessários para que a máquina funcionasse."
Houve uma mudança na forma como a Alemanha lidava com essas pessoas. No passado, eles não eram considerados culpáveis, porque estavam simplesmente seguindo ordens. Mas nos últimos anos dois guardas dos campos nazistas foram considerados culpados por facilitar assassinatos em massa simplesmente por trabalhar nos campos, fazendo parte da máquina nazista. E nesta sexta, isto se repetiu com Hanning.
Mas em dez anos já não haverá ninguém vivo para ser julgado. O caso de Reinhold Hanning é 1 dos cerca de 60 que Jens e sua equipe entregaram a promotores nos últimos três anos. Mas o tempo está acabando. Ele diz que se sente um pouco frustrado.
"Não posso mudar o que foi feito ou omitido no passado. Se tivéssemos tido mais dez anos, poderíamos ter feito mais."