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O Big Brother de Orwell

8 fev 2017 - 14h51
(atualizado às 14h54)
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George Orwell, escritor inglês falecido em 1950, desencantado com o socialismo, especialmente com sua faceta stalinista, causa que abraçara para melhor lutar contra o nazi-fascismo, dedicou os últimos anos de vida a denunciar o comunismo stalinista. Para tanto publicou dois livros, nos anos de 1945 e 1949, ambos com impressionante projeção, e que fizeram por acirrar ainda mais o feroz debate ideológico entre comunistas e democratas que dividiu o mundo intelectual na época da Guerra Fria. Um deles intitulava-se Animal Farm (A fazenda dos animais), e o outro simplesmente tinha um número na capa, o Nineteen Eigthy Four ( “1984”), no qual apareceu pela primeira vez o onipresente  Big Brother, o Grande Irmão. 

Foto: Divulgação

Reciclando o camarada Winston

Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota prensando um rosto humano para sempre”, G.Orwell – 1984, 1949.

O intento do cidadão Winston Smith de rebelar-se contra o todo-poderoso sistema em que ele vivia fracassara rotundamente. Preso, torturado de uma maneira  especial pela polícia política do regime ( ele era fóbico a ratos, justamente com quem teve com que compartilhar uma gaiola),  ele não resistiu. Em pouco tempo, reciclado por um programa de recondicionamento de praxe, na verdade uma lavagem cerebral em regra, Winston voltou a ser um servo da ordem totalitária. Esta é em essência o enredo da novela de terror político Neneteen Eithy-Four (“!984”) de George Orwell, aparecida em 1949. Livro que assinalou o rompimento definitivo dele com qualquer causa de esquerda. De certa forma, pode-se considerá-la como o epílogo do seu desentendimento com os comunistas, drama moral e ideológico que se arrastava há mais de dez anos, desde os tempo da Guerra Civil espanhola( 1936-39). 

Orwell, companheiro de viagem

Como tantos intelectuais da sua geração, a crise dos anos 30,seguida da espantosa ascensão do nazi-fascismo, quando ditadores como Hitler, Mussolini e Franco, passaram a servir de exemplo e inspiração para tantos outros candidatos à tirania, Orwell inclinou-se pela resistência a eles. Nunca, entretanto, foi um militante comunista. Considerava-se um independente, um companheiro de viagem da causa. E assim o foi. Em 1937 ele, como tantos outros estrangeiros, apresentou-se, em dezembro de 1936, como voluntário para deter o golpe direitista do General Franco na Espanha. O caldo entornou de vez quando, ainda que ferido na garganta quando lutava ao lado dos milicianos de esquerda, em maio de 1937,  ele foi, justamente por não ser um enquadrado, considerado um fora-da-lei pelos comunistas espanhóis alinhados à Moscou. 

George Orwell ( 1903-1950)
George Orwell ( 1903-1950)
Foto: Divulgação

Guerra civil na guerra civil

Orwell estava se recuperando em Barcelona quando assistiu, em junho de 1937, a liquidação, por fuzilamento ou encarceramento, do POUM ( uma milícia pró-trotsquista que foi colocada na ilegalidade pelos comunistas espanhóis, supervisionados pela GPU de Stalin). As batalhas de rua travadas entre os socialistas e comunistas contra os anarquista e os integrantes do POUM ( Partido Obrero de Unificación Marxista) foram por ele vivamente registradas nas páginas do seu Homage to Catalonia ( Lutando na Espanha, pela tradução brasileira feita pela Editora Civilização Brasileira), escrito logo após a sua volta à Londres. Aquela absurda carnificina entre as esquerdas,  que se tiroteavam e se ofendiam em frente a um inimigo comum,  era o resultado da política stalinista. O ditador soviético, na época dos processos de Moscou, tinha transferido sua luta contra Trótski e outros oposicionistas, para dentro da guerra civil da Espanha. Como era ele quem abastecia os republicanos espanhóis com as armas e suprimentos com que lutavam contra Franco, ninguém pôde demovê-lo da intenção de exterminar com os dissidentes, ainda que, até aquele momento, lutassem ombro a ombro contra o inimigo comum. 

A terrível face da guerra civil ( tela de Dali)
A terrível face da guerra civil ( tela de Dali)
Foto: Divulgação

Livros de um desiludido

Abalado, Orwell, retornando à Grã-Bretanha, aos poucos arquitetou a vingança contra os comunistas. Primeiro foi a sátira Animal Farm ( A fazenda dos animais), publicado em 1945,  no qual, à moda de La Fontaine, que  socorria-se de história de bichos para expor os homens, fez uma devastadora crítica ao regime soviético. Livrinho, diga-se,  que correu o mundo alimentado pelas paixões acesas pela Guerra Fria. Em seguida, em 1949, um ano antes de morrer tuberculoso, editou o Nineteen Eigthy-Four (“1984”) o grande clássico da desilusão de um esquerdista com o comunismo.

Clássico da desilusão ideológica
Clássico da desilusão ideológica
Foto: Divulgação

A anti-utopia

Inspirado na pequena novela “ Nós” de Eugênio Zamiatin, de 1920/1, escrita em plena União Soviética, Orwell com recursos literários bem superiores, colocou o regime de Stalin sob execração universal. Enquanto o ex-bolchevique Zamiatin, que foi o verdadeiro profeta da sociedade anti-utópica, chamou de Benfeitor o ditador do seu Estado Uno, Orwell batizou-o de Big Brother. Era o Grande Irmão, que tudo via, tudo sabia e tudo previa, o invisível senhor de uma máquina política totalitária que movia guerra ao mundo e aos seus poucos opositores. Também recorreu a outro best-seller da distopia ( isto é uma anti-utopia ou contra-utopia, que visualiza o futuro como um pesadelo), o Brave New World, o Bravo Mundo Novo, de Aldous Huxley, que descrevia o funcionamento de uma sociedade pavloviana inteiramente controlada por recursos biológicos e farmacêuticos,  publicado em 1931.

Tendo o controle das comunicações, fazendo da televisão, omnipresente, o seu poderoso olho policial, o Grande Irmão dobrava todos à sua vontade. O lema do regime era  Big Brother is Watching You, o Grande Irmão te vigia. Nada, portanto, lhe escapava. Invertendo a lógica do aparelho televisor, obrigatoriamente ligado, sem outras alternativas de programas, era por meio do tubo que ele controlava os cidadãos rebaixados a servos obedientes. 

Aldous Huxley,  clássico da anti-utopia
Aldous Huxley, clássico da anti-utopia
Foto: Divulgação

Um idioma próprio

A coesão interna do sistema era obtida não só pela opressão. Lá fora, além do perímetro da Oceania, como Orwell designou aquele paraíso da repressão,  o regime enfrentava os seus inimigos eternos sustentando uma guerra interminável  na Eurásia e na Eastasia, tudo justificado pela invenção de uma nova linguagem: a novilíngua. Este idioma totalitário,  obra-prima dos filólogos a serviço do Grande Irmão -  parente próximo do politicamente correto dos nossos dias - , tinha o dom de transmudar em outra coisa todas as palavras com significado desagradável ao regime. Não contente com isso, o Grande Irmão, para extravasar as emoções,  promovia sessões de ódio, nas quais, numa tela gigante,  aparecia a imagem do principal inimigo dele  ( Emanuel Goldstein, isto é Trótski) para que todos descarregassem a fúria sobre aquele satã. Situações estas intercaladas com outras  cenas enternecedoras, nas quais os súditos, perfeitamente lubrificados pela eficaz e condicionante engrenagem da propaganda, lançavam loas e agradecimentos mil ao Grande Irmão.       

Stalin, modelo do Grande Irmão
Stalin, modelo do Grande Irmão
Foto: Divulgação

As intenções gerais de Orwell

Além de ser uma espécie de acerto de contas com o regime comunista, Orwell pretendeu com o livro “1984” tecer certas considerações sobre a experiência socialista até então conhecida. Basicamente ele assegurou que:

A guerra, movida perpetuamente pelo regime, era importante para consumir os produtos do trabalho humano, pois se tal tipo de trabalho for usado na incrementar o padrão de vida, o controle do partido sobre o povo decai, pois a guerra é a base de uma sociedade hierárquica. Logo, a paranóia do regime stalinista tinha um função clara de mobilizar os recursos nacionais permanente em função da interminável guerra  contra o capitalismo, servindo isto de pretexto para a continuidade da ditadura partidária e do domínio absoluto do chefe sobre o todo.

- Havia uma necessidade emocional em acreditar na vitória final do Grande Irmão. Para poder suportar o clima opressivo, as mentes deveriam estar concentradas num perspectiva psicológica otimista.

- A guerra continua tinha  a função de garantir a ordem interna do regime. Desta forma Guerra significava Paz.

- Havia sempre três grandes graus na sociedade, o alto, o do meio e o de baixo, e nenhuma mudança afetou um milímetro sequer a desigualdade humana.

- Coletivismo não significa socialismo. Agora a riqueza pertence a uma nova “ classe alta”, formada pela burocracia e pelos administradores. O coletivismo assegurou a permanente desigualdade.

- A riqueza não é transmitida de pessoa a pessoa, mas controlada pelo grupo dominante.

- As massas, ( os ditos “proles” do livro de Orwell) ganharam liberdade de pensamento porque elas não pensam! O membro do partido não está autorizado a qualquer desvio de pensamento, havendo um treinamento mental para assegurar que  isso não ocorra, um treinamento que pode ser sintetizado na concepção do duplo pensar, que faz com que a realidade sempre seja moldada de acordo com a teoria ou com as decisões programáticas do partido. 

O sombrio mundo das massas dominadas pelo Grande Irmão
O sombrio mundo das massas dominadas pelo Grande Irmão
Foto: Divulgação

O fim do totalitarismo

Orwell, como todos os demais escritores da distopia, era um pessimista que viu o futuro desesperançado. O estado moderno, particularmente os de regime socialista, o do impessoal Grande Irmão, havia desenvolvido tamanha capacitação de controle sobre o coração e a mente dos indivíduos que era impossível pô-lo abaixo. É de se supor que ele jamais imaginou, quarenta anos depois do seu livro, como os acontecimentos de 1989 demonstraram, que aquele estado terminasse, no final das contas,  por ser demolido pelas massas trabalhadoras. Foram eles, os filhos diletos do Grande Irmão, quem  saíram às ruas de Gdansk, de Varsóvia, de Berlim, de Praga e, por fim,  de Moscou mesmo, para por um basta naquilo tudo.    

Visão alegórica do mundo controlado pelo Grande Irmão(tela de Carlos Carreiro)
Visão alegórica do mundo controlado pelo Grande Irmão(tela de Carlos Carreiro)
Foto: Divulgação

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