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Luta pelo canal de Suez colocou Oriente Médio na Guerra Fria

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Voltaire Schilling

Militares vigiam canal de Suez
Militares vigiam canal de Suez
Foto: Getty Images

Entre os tantos confrontos entre um Terceiro Mundo que procurava libertar-se do domínio estrangeiro e os interesses do colonialismo europeu, que teimava em se perpetuar, o que mais alcançou projeção mundial na década dos anos 50 foi o que envolveu o Egito do governo de Gamal Abel Nasser e as forças militares anglo-francesas conjugadas com o Estado de Israel. Confronto este ocorrido em outubro-novembro de 1956. Naquela ocasião, a nacionalização do Canal de Suez decretada pelo regime revolucionário do Cairo em 26 de junho daquele ano, desencadeou contra si, contra o governo do Cairo, uma intervenção militar de grandes proporções, colocando desde então o Oriente Médio no front da Guerra Fria.

O sonho de uma grande represa

O novo governo revolucionário, vitorioso no Cairo desde 23 de junho de 1952, ocasião em que pôs fim a monarquia pró-britânica do rei Faruk (1936-1952), estabeleceu como uma das suas prioridades a realização de um reforma agrária que colocasse um fim no domínio do latifúndio (0,1% dos proprietários controlavam 1/5 das terras do Egito), até então o principal aliado social e político da ocupação britânica (iniciada em 1882).

Além disso, o novo regime buscava realizar uma obra grandiosa, impactante, algo que servisse como símbolo maior da remissão nacional depois de sete décadas de servilismo forçado e de dominação colonialista a que o Egito fora constrangido.

O projeto da Grande Represa de Assuan - visto como a redenção do Egito independente - surgiu neste contexto. Tratava-se de uma fantástica barragem a ser erguida no sul do país, na margem direita do rio Nilo, da dimensão histórica das pirâmides, que serviria para: 1) controlar as enchentes do venerável rio; 2) eletrificar parte considerável do Egito; 3) proporcionar a irrigação de extensas áreas rurais ( o que permitiria aos felás desenvolverem seus lotes recebidos pela reforma agrária, incorporando deste modo significativas porções de terra, estimadas em 30% das terras do Egito, até então considerada inapropriada ao setor produtivo nacional). O custo estimado da moderna pirâmide orçou em U$ 1 bilhão de dólares (*).

(*) Situada a 16 km. da cidade de Assuan, mais perto da fronteira do Sudão, com mais de cem metros de altura, a represa, na verdade, exigiu 18 vezes mais material do que as pirâmides de Guizé. A sua extensão atingiu 3,26 km, formando também o lago Nasser, de 9,6 km., o que provocou a necessidade da remoção das ancilares templos e estátuas dos tempos do Antigo Egito da região de Abu Simbel, ameaçados de ficarem submergidos.

A suspensão do financiamento

Num certo momento, depois da negativa soviética em providenciar os recursos, o governo revolucionário entrou com uma solicitação de financiamento no Banco Mundial, instituição criada pelos norte-americanos no final da Segunda Guerra Mundial para assumir projetos de grande magnitude. Todavia, alegando que Nasser havia feito um contrato de fornecimento de armas com a Tchecoslováquia, em 1955, país pertencente ao bloco soviético, ao campo comunista, o Banco Mundial, por pressão de John Foster Dulles, o secretário-de-estado do govenro do presidente D.Eisenhower, negou-se a dar os recursos para a obra. O Departamento de Estado dos Estados Unidos não reconhecia o nacionalismo árabe, do qual Gamal Nasser era o principal expoente, como um movimento autônomo dos povos árabes do Oriente Médio, mas sim como uma face da luta anti-Ocidental promovida pela URSS. Além disso, o govenro do Cairo estivera presente na Conferencia de Bandung, em 1955, manifestando desejar distanciar-se do confronto entre capitalistas e comunistas pela adoção do "neutralismo positivo", colocando o Egito numa posição de não-alinhado, eqüidistante das duas superpotências.

Por igual pesou na decisão do Banco Mundial, ainda que com menos peso, a posição da Arábia Saudita, regime islâmico pseudo-teocrático, de raiz waabita, aliado dos Estados Unidos, no sentido de que a revolução nasserista era uma ameaça às monarquias neocolonialistas pró-ocidentais, como também era o caso da Dinastia Hachemita, então reinante na Jordânia e no Iraque. Seja como for, o regime de Nasser, naquele momento, ficou sem o aporte de recursos para dar começo aos trabalhos de engenharia.

A nacionalização do Canal de Suez

O Canal de Suez, inaugurado em 1869, inclusive contando com a apresentação da ópera "Aída" de Giuseppe Verdi, tornara-se de fato numa propriedade anglo-francesa desde que o quediva do Cairo endividara-se espantosamente com a obra. Os britânicos então passaram a controlar 44% das ações da Compagnie Maritime International Du Canal de Suez, fundada anteriormente pelo engenheiro Ferdinand de Lesseps. Desde então ela foi vista como símbolo do poder colonialista e prova da submissão do Egito às potências estrangeiras.

O canal era um espinho encravado no corpo da nacionalidade egípcia. Nasser viu na nacionalização dele ¿ efetivada no dia 26 de julho de 1956 - a oportunidade de por um fim na continuidade do domínio estrangeiro sobre aquela passagem estratégica e ao mesmo tempo conseguir os recursos necessários para financiar a obra da Grande Represa.

Com isso acionou um movimento internacional para derrubá-lo. Em 1953, uma operação conjunta anglo-americana, do M-5 com a CIA, conseguira depor Mossadegh o líder nacionalista do Irã, revertendo o poder de volta para o Xá Reza Pahlevi (que já se encontrava exilado no exterior), portanto pareceu perfeitamente viável aos governos de sir Antony Eden da Grã-Bretanha e o presidente René Coty da França (envolvida desde 1954 contra uma insurreição armada na Argélia) em realizar uma incursão armada que as fizesse retomar o controle sobre a Zona do Canal, ao tempo em que uma bem sucedida invasão militar israelense, penetrando na Faixa de Gaza e no deserto do Sinai, desmoralizaria definitivamente o regime de Nasser. Um movimento armado tripartite, executado pela coligação anglo-franco-israelense cauterizaria o nacionalismo árabe no seu nascedouro.

A reação mundial

No dia 29 de outubro, desencadeando a Operação Kadesh, 30 mil homens do exército israelense comandados pelo general Moshe Dayan entraram em ação esmagando facilmente as posições egípcias no Sinai, rumando aceleradamente para a Zona do Canal. Em cinco dias, do dia 1 ao dia 5 de novembro, em apenas 100 horas de marchas e lutas, as tropas israelenses dominaram amplamente a famosa península. Enquanto isto, obedecendo à Operação Mosqueteiros, decolando das bases da ilha de Malta e Chipre, a força área britânica bombardeava Port Said e outros lugares ao longo do Suez, ao tempo em que tropas pára-quedistas francesas desciam em Port Fuad e em vários outros pontos e rumaram para o interior da Zona do Canal.

Militarmente a dupla Operação Kadesh-Mosqueteiros foi um sucesso, politicamente revelou-se um desastre político de grandes proporções. A tal ponto a situação chegou que a URSS ameaçou usar ¿meios extraordinários¿ caso as tropas anglo-francesas não suspendessem o ataque ao Egito. O presidente Eisenhower, da sua parte, furioso com aquela recaída do colonialismo ao século XIX, exigiu a imediata remoção dos soldados estrangeiros do território egípcio, telefonando pessoalmente para o primeiro-ministro sir Antony Eden para que providenciasse a imediata evacuação dos seus paraquedistas.

A enérgica ação conjunta americano-soviética revelou a desconformidade das duas novas potências emergentes contra a velha política dos antigos impérios europeus que agiram sem ter feito nenhuma consulta prévia aos novos senhores do mundo.

Ben-Gurion, o primeiro-ministro de Israel que convencera o Knesset, o parlamento israelense, de que "não seria uma guerra de conquista, mas uma guerra de salvação", por igual sofreu pressão norte-americana para recuar das áreas ocupadas. Ainda assim manteve suas tropas no Egito por ainda cinco meses. Deste então, foi difícil para o Estado de Israel e o sionismo (que se afirmara como movimento anticolonialista) livrarem-se de serem associados à estratégia do colonialismo europeu. A solução encontrada então foi enviar guarnições da ONU para colocarem-se na fronteira egipcio-israelense, sendo esta a primeira operação de vulto organizada por aquela instituição internacional desde a sua fundação.

Implicações internacionais

A ação desastrada da coligação tripartite, de certo modo abriu as portas do Oriente Médio para a entrada da URSS na região. O governo de Kruschev não só se dispôs a financiar a Grande Represa de Assuan (entrou com o equivalente a 70% do valor total e mais a colaboração de 400 técnicos), como assumiu a tarefa de modernizar os armamentos dos exércitos dos estados árabes emancipados do colonialismo. O que fez com que Os Estados Unidos resolvessem anunciar publicamente, por meio da Doutrina Eisenhower, de março de 1957, que o Oriente Médio faria doravante parte da política norte-americana da contenção ao comunismo.

Eisenhower não estava disposto a aceitar a presença soviética numa área de grande importância estratégica para a exploração do petróleo por parte dos interesses das macro-empresas ocidentais.

Todavia, independentemente dos desejos da Doutrina Eisenhower, logo um alinhamento de forças antagônicas se estendeu por lá: de um lado os Estados Unidos aliados ao sionismo e à monarquia saudita waabista; do outro a União Soviética formando uma frente com o nacionalismo árabe nasserista e baasista (do Partido Baas da Síria).

No episódio todo, Gamal Nasser, como chefe de estado de uma nação do Terceiro Mundo agredida, saiu-se amplamente vitorioso. Da noite para o dia ele foi visto em todo mundo árabe-islâmico como um novo Saladino, o herói medieval que no século XII conseguira expulsar os cruzados ocidentais das terras muçulmanas e reocupar Jerusalém. Virou um dos heróis do Terceiro Mundo que então procurava se emancipar das potencias européias.

O exemplo dele, de resistir ao colonialismo, não só encheu de ânimo a resistência da FLN argelina, alçada desde 1954 contra a ocupação francesa, como estimulou a que oficiais nacionalistas do exército de outros países da região, por igual, se organizassem para derrubar os regimes monárquicos arcaicos e pró-ocidentais (como se deu com os golpes militares no Sudão e no Iraque, em 1958, e, bem depois na Líbia, em 1969).

Bibliografia

Afaf Lufti al-Sayyid Maisot - A Short History of Moderno Egypt, Cambridge: Cambridge University Press, 1985.

Avi-hai, Avraham - Ben-Gurion State-Builder. Nova Iorque; John Wiley & Sons; Jerusalém - Israel University Press, 1974.

Benz, Wolfgang - Graml, Hermann - El siglo XX: III - problemas mundiales entre los bloques de poder. México, Siglo XXI, 1982.

Hourani, Albert - Uma história dos povos árabes. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

Lewis, Bernard - O Oriente Médio: do advento do cristianismo aos dias de hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

Mansfield, Peter e Pelham, Nicolas - A History of the Middle East, Londres: Penguin Books, 2004, 2ª ed.

Mansfield, Peter - Nasser´s Egypt. Londres: Penguin Books, 1965.

Nasser, Gamal A .- The Philosophy of the Revolution. Cairo, 1955.

Varbie, Derek - The Suez Crisis Londres: Osprey Publishing, 2003

Fonte: Terra
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