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Gabriel Garcia Márquez e a gênese de 'Cem Anos de Solidão'

Escritor colombiano, prêmio Nobel de Literatura, morreu nesta quinta-feira, 17 de abril, no México

17 abr 2014 - 21h57
(atualizado às 22h03)
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Gabriel Garcia Márquez (06/03/1927-17/04/2014) já havia publicado na década de 1960 vários contos em diversas revistas e jornais latino-americanos, mas até então parecia apenas uma das tantas promessas literárias que não vingam. Sentindo-se impossibilitado por suas tarefas como roteirista de cinema e como redator publicitário, que na época lhe davam o sustento, ele decidiu-se por uma medida extrema. Ficaria trancado num lugar até colocar todo o livro que fazia tempo o incomodava em sonhos de uma só vez no papel. Para a glória das letras, assim foi que Cem anos de Solidão veio à luz em 1967.

Na estrada para Acapulco

“Nem nos meus mais delirantes sonhos poderia eu imaginar que um milhão de pessoas poderia ler uma obra escrita no meu quarto com as 28 letras do alfabeto como todo arsenal; pareceria uma loucura”

Gabriel Garcia Márquez

IV Congresso Internacional da Língua Espanhola, Cartagena das Índias, março de 2008

O escritor Gabriel García Márquez acena a jornalistas e vizinhos no dia de seu aniversário, no lado de fora de sua casa, na Cidade do México, em 6 de março. 06/03/2014
O escritor Gabriel García Márquez acena a jornalistas e vizinhos no dia de seu aniversário, no lado de fora de sua casa, na Cidade do México, em 6 de março. 06/03/2014
Foto: Edgard Garrido / Reuters

Garcia Márquez já fizera um tanto de tudo. Para desgosto da mãe, Luiza Santiaga, largara o direito para dedicar-se somente às letras. Abraçou o jornalismo profissional para melhor se intimar com as palavras e com gente ligada aos livros, suas duas paixões assumidas. Começando na sua Colômbia, não tardou para que, no tempo da ditadura do general Rojas Pinilla (1953-1957), o enviassem à Paris como correspondente, ideal de oportunidade insubstituível de qualquer intelectual latino-americano.

Desempregado, padeceu do conhecido roteiro comum aos “artistas da fome”, vagando por pensões e hotéis suspeitos onde, por vezes, viveu por favor. Com a erupção da Revolução Cubana de 1959, convidaram-no para assumir a Prensa Latina, órgão oficial do regime fidelista criado para contrapor-se à sempre hostil mídia norte-americana.

Mudou-se então por uns tempos para Nova York, mas um desentendimento ocorrido em Cuba com o superior dele fez com que Gabriel se demitisse e optasse por morar na Cidade do México.

Sobrevivia fazendo roteiros e criando anúncios para uma agência de propaganda. Nada menos do que a Walter J. Thompson, uma das maiores empresas de publicidade dos Estados Unidos. Foi uma troca radical: deixou de servir a Cuba de Fidel Castro para ligar-se à Madison Avenue de Nova York*.

Evidentemente que aquilo o incomodava. Pulsava-lhe o talento de autor originalíssimo, todavia afogado pela necessidade do ganha-pão diário, com família a sustentar. O estalo definitivo que fez com ele se decidisse firmemente por escrever um romance o acometeu dirigindo para Acapulco no seu velho Opel. A história de Macondo lhe aparecera por inteira na mente desde os 16 anos de idade, forçando-o agora que a contasse. Não iria mais perder tempo, afinal, estava para completar 40 anos de idade. O relato tinha que sair de dentro dele de qualquer modo.

Como lembra Mário Vargas Llosa, escrever uma novela é um ato “de rebelião contra a realidade e contra Deus”, uma atitude de insatisfação frente à vida, porque o autor, sempre um dissidente, não aceita o mundo tal qual é e teima em inventar outro mais próximo ao seu delírio. É, pois, um deicida, um inconformado que recria outro mundo com palavras e com a força da sua imaginação.

O corpo de Gabriel García Marquez deixou a residência do escritor na Cidade do México, capital mexicana, na noite desta quinta-feira (17). O carro que levou o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura foi escoltado pela polícia, já que muitas pessoas permaneciam em frente à casa
O corpo de Gabriel García Marquez deixou a residência do escritor na Cidade do México, capital mexicana, na noite desta quinta-feira (17). O carro que levou o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura foi escoltado pela polícia, já que muitas pessoas permaneciam em frente à casa
Foto: EFE

(*) Ainda assim, Garcia Márquez nunca rompeu com Fidel Castro como fez a maioria dos intelectuais e escritores latino-americanos conforme a Revolução de 1959 ia causando desencanto. Quando visitava Havana, sempre levava consigo uma pilha de livros que ele pessoalmente selecionava para Castro ler, mantendo com ele uma relação de amizade que permaneceu inalterada ao longo desses anos todos.

Na Cova da Máfia

Para cumprir com tal desafio autoimposto, recebeu integral apoio de sua esposa, Mercedes. Entregou a ela uma suposta vara mágica que lhe permitiria prover a família e trancou-se numa pequena peça da casa que ele apelidara de “Cova da Máfia”. Sua residência ficava então em San Angel Inn, onde escolheu amuralhar-se, determinado que nada, a não ser caso de morte, fosse perturbá-lo. Supôs que a faina se estenderia por seis meses. Dar conta do mundo onírico que o envolvia exigiu-lhe um tempo bem maior.

Mercedes, enquanto isso, encarnou a função que a abuela Mina, a avó materna de Garcia Márquez, desempenhara certa feita para manter a casa em ordem e com refeições diárias frente a um marido um tanto que ausente e que tinha “uma noção alegre do dinheiro” (ver Vivir para contarla, 2002, p. 97 e 98).

Ainda que amigos o procurassem para longas conversas à noite, o ritmo do trabalho de oito a dez horas por dia não se alterou. Resmas de papel eram consumidas num teclar insano da máquina de escrever. O escritor cismara acreditar que qualquer erro datilográfico que cometesse era sinal de deficiência na criação. Daí arrancar a página e rasgá-la com furor para recomeçar outra desde o começo.

Shakira postou foto abraçada a Gabriel García Marquéz
Shakira postou foto abraçada a Gabriel García Marquéz
Foto: @shakira/ Instagram / Reprodução

Aos poucos a saga dos Buendias, perdidos em Macondo, lugar remoto do interior da Colômbia, tomou forma. Eram histórias que ele ouvira da matriarca da sua família, sua avó, que se misturavam a tantas outras das mulheres “da sua tribo” que começaram a lhe chegar de todos os lados ao longo dos anos.

Na verdade, eram recordações nostálgicas da Aracataca natal, um lugarejo alquebrado pelo sol inclemente e por borrascas arrasadoras, descrito então por ele à sombra inspiradora de um dos seus deuses tutelares: o romancista norte-americano William Faulkner.

Entre outros motivos, dava preferência aos relatos da veneranda e das tias porque, segundo ele, “são elas – as mulheres – que sustentam o mundo, enquanto que os homens o desordenam com sua brutalidade histórica” (in Vivir para contarla, 2002, p. 89). Era um “Paraíso hermético” povoado com vozes ancestrais e outras assombrações que insistiam em entrar em contato mediúnico com ele. Dezoito meses depois, deu por findo o trabalho.

Somente muitos anos passados soube que a senhora que contratara para fazer a revisão dos originais e datilografar o material corrigido, certa vez deixara cair um maço de folhas dentro da água ao descer do ônibus. Por sorte ela as juntou uma a uma e depois, em casa, secou-as a ferro. Garcia Márquez não ficara com cópia nenhuma. Uma temeridade naqueles tempos em que não havia ainda as máquinas fotocopiadoras.

O primeiro sinal

Terminados os três primeiros capítulos, ele os enviou ao novelista mexicano Carlos Fuentes, então na Europa, o primeiro a reconhecer-lhe a genialidade. “São absolutamente magistrais”, disse Fuentes, entusiasmado após a leitura das 70 e poucas páginas. “Toda a história ‘fictícia’ coexiste com a história ‘real’, o sonhado com o documentado, e graças às lendas, às mentiras, aos exageros, aos mitos... Macondo se converte num território universal, numa história quase bíblica das fundações e das gerações e das degenerações, numa história de origem e destino do tempo humano e dos sonhos e desejos com que os homens se conservam e se destroem”.

Fragmentos da novela começam a aparecer em Bogotá, Lima, México e até Paris. A recepção foi unânime. Um novo fenômeno das letras hispânicas entrava na história das letras. Cervantes, enfim, achava um sucessor (ver Mário Vargas Llosa: Garcia Márquez, história de um deicídio, p.77-84).

Todavia, as dificuldades financeiras do casal Márquez não se haviam desfeito. Mercedes amealhara uma dívida de US$ 10 mil enquanto o marido se enfurnava para exorcizar os demônios de dentro de si. Para despachar o chumaço de páginas para o Editorial Sudamericana de Buenos Aires eles precisavam de 82 pesos. Contando os tostões, Mercedes alcançou apenas 53. Decidiram então dividir em dois o pacote. Na atrapalhação, remeteram a segunda parte. Felizmente, o editor ansioso logo tratou de enviar-lhes o valor necessário para que tudo fosse impresso logo.

<p>Gabriel García Márquez recebeu o Prêmio Nobel em 1982</p>
Gabriel García Márquez recebeu o Prêmio Nobel em 1982
Foto: Reuters

O livro surgiu então em junho de 1967, tendo um sucesso estrondoso. Nos três anos seguintes, vendeu quase 500 mil exemplares. Em razão disto, acumularam-no de prêmios na Itália, na França e nos Estados Unidos. Assustado com tudo, Garcia Márquez então se mudou para Barcelona atrás de sossego. De pouco serviu, pois a imprensa e os editores, tentando saltar pela parede de negativas e silêncio que Mercedes formara ao redor dele, o perseguiam por todos os lados.

O dinheiro recebido, mesmo com a chatice do assédio correspondente à fama atingida, deixou-o muito bem de vida. Permitiu que ele, por fim, realizasse a ambição de se consagrar apenas às letras e a nada mais. Para sorte os seus leitores, nesses últimos quatro decênios, ele os abasteceu de incontáveis outras novelas (O amor em tempo de cólera, O general e seu labirinto..., Crônica de uma morte anunciada, Ninguém escreve ao coronel, Do amor e outros demônios, Memórias de minhas putas tristes...).

Nem o Prêmio Novel que recebeu em 1982 fez por alterar a qualidade do que continuava a sair da sua prodigiosa imaginação, fazendo dele e de Cem Anos de Solidão o maior sucesso literário da língua espanhola desde que Cervantes mandou imprimir a primeira parte de Dom Quixote de la Mancha, em 1605.

Edição magistral

Para afirmar ainda mais a sua exaltação como autor quase que insuperável das modernas letras hispânicas, Garcia Márquez viu-se premiado com uma edição especial da Editora Alfagarra, a pedido da Real Academia Espanhola de Letras, que imprimiu 650 mil exemplares de Cem Anos de Solidão, numa tiragem especial que contém excelentes artigos introdutórios de Álvaro Mutis, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, Víctor García de la Concha e Cláudio Guillén. Poucos autores alcançaram em vida tal homenagem.

Bibliografia
Llosa, Mário Vargas. Garcia Márquez, história de um deicídio. Barcelona-Caracas: Monte Ávila Editores, 1971.
Márquez, Gabriel Garcia. Discurso de agradecimento no IV Congresso Internacional da Língua Espanhola, Cartagena das Índias, março de 2007.
Márquez, Gabriel Garcia. Vivir para contarla. Buenos Aires; Editorial Sudamericana, 2002.
Fonte: Especial para Terra
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