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Política

Aborto e punições a juízes: os novos capítulos da queda de braço entre Congresso e Judiciário

30 nov 2016 - 16h23
(atualizado às 16h53)
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O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou que Casa responderá a ações que considera "legislativas" por parte do STF
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou que Casa responderá a ações que considera "legislativas" por parte do STF
Foto: Getty Images

Ao anunciar que vai instalar uma comissão para rever uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre aborto, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, deflagrou mais um capítulo da batalha travada entre o Congresso e o Judiciário.

A decisão de Maia, anunciada em plenário horas depois de um julgamento na corte, foi tomada no mesmo dia em que os deputados aprovaram punição para juízes e membros do Ministério Público, alterando o pacote original de medidas de combate à corrupção.

Nesta terça (29), três dos cinco integrantes da Primeira Turma do STF entenderam que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não é crime. A discussão ocorreu durante o julgamento sobre a revogação da prisão preventiva de cinco médicos e funcionários de uma clínica de aborto na região metropolitana do Rio.

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A decisão vale somente para o caso específico. Mas como se trata de um entendimento que pode ser seguido por instâncias menores e, para muitos, sinaliza que a mais alta corte caminha para uma futura descriminalização do aborto, a Câmara decidiu reagir criando uma comissão para avaliar a decisão dos ministros.

"É uma batalha interessante que está acontecendo. Principalmente com temas relacionados a crimes e a moralidade, há um tipo de guerra na qual o Supremo parece assumir uma postura mais liberal em defesa de direitos civis e minorias, e o Congresso sinaliza com um tom mais conservador", observa Fiona Macaulay, professora da Universidade de Bradford, no Reino Unido.

Bancada BBB

A professora, que pesquisa temas relacionados aos direitos humanos e reformas do sistema penal no Brasil e na América Latina, acredita que muitos dos objetos de tensão entre os poderes estão relacionados também à força da chamada "Bancada BBB", em referência às palavras Bíblia, boi e bala.

Trata-se de um grupo estimado em 320 congressistas, de perfil mais conservador, ligados às frentes evangélica, ruralista e de favoráveis ao armamento e à redução da maioridade penal.

Macaulay, no entanto, observa que essa não é uma tendência exclusiva do Brasil. Segundo a professora, a chamada "judicialização da política", em especial em assuntos ligados a liberdades civis e direitos de minorias, acontece também em países como a Colômbia e a Costa Rica.

Para discutir a criminalização do aborto, o presidente da Câmara avisou ao plenário que vai criar uma comissão com 34 titulares e igual número de suplentes para se posicionar em até 11 sessões, prazo previsto pelo regimento da Casa para que o tema seja levado para apreciação dos 513 deputados.

Segundo a Casa, a comissão especial deve se debruçar sobre uma proposta de emenda à Constituição que estende o tempo de licença maternidade em caso de nascimento prematuro - a PEC 58/2011 -, mas incluindo o aborto no debate.

O Código Penal prevê pena de prisão de um a três anos para a mulher que aborta e de até quatro anos para o médico que realize o procedimento.

No ano passado, o STF autorizou a interrupção de gestações de fetos anencéfalos. E a corte está prestes a iniciar um debate à respeito das mulheres grávidas de bebês com microcefalia - discussão provocada na esteira da explosão no número de casos da má-formação, relacionada ao vírus Zika.

'Sede de Vingança'

Maia avisou que está disposto a "exercer o poder" de presidente da Câmara para rever decisões da mais alta corte do país não apenas em relação ao aborto, mas também em relação a outros casos em que avaliar que houve sobreposição de poder.

"Toda vez que nós entendermos que o Supremo legisla no lugar da Câmara dos Deputados ou do Congresso Nacional, nós deveríamos responder ou ratificando ou retificando a decisão do Supremo, como a de hoje", declarou ao anunciar a criação da comissão.

A Câmara também concluiu a votação de um pacote de medidas de combate à corrupção, alterando o texto aprovado pela comissão especial.

As mudanças, segundo o relator do projeto, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), desfiguraram o projeto original e foram motivadas por "sede de vingança" dos congressistas contra o Judiciário e o Ministério Público, que têm intensificado o número de investigações contra os legisladores.

Deputado Onyx Lorenzoni disse que congressistas agiram movidos "por sede de vingança"
Deputado Onyx Lorenzoni disse que congressistas agiram movidos "por sede de vingança"
Foto: Agência Brasil

O tópico que gerou polêmica antes da votação - a criminalização do chamado "caixa dois" de campanha, referente a doações não declarada à Justiça Eleitoral - foi aprovado sem anistiar fatos ocorridos em nenhuma das eleições. Segundo o texto aprovado, a prática passa a ser condenada com pena de dois a cinco anos de prisão, mais multa.

Os deputados fizeram, porém, mudanças controversas. Adicionaram a punição de juízes e membros do Ministério Público por abuso de autoridade e retiraram um item que tipificava o crime de enriquecimento ilícito de funcionários públicos e previa o confisco dos bens relacionados à prática.

O projeto segue agora para discussão no Senado.

Batalha contínua

Antes da aprovação do pacote, a presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, já havia criticado o que chamou, na manhã de terça, de "tentativa de criminalizar o agir do juiz brasileiro".

Ela se posiciona especialmente contra projetos como o de autoria do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que penaliza com prisão e multa delegados estaduais e federais, promotores, juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores que ordenarem ou executarem "captura, detenção ou prisão fora das hipóteses legais".

Renan minimizou as críticas da ministra dizendo não entender que as declarações digam respeito a ele e manteve a votação do projeto para a próxima terça (6).

Os dois já haviam trocado farpas em outubro, quando Renan criticou a Operação Métis, que apura suposta tentativa da Polícia do Senado de obstruir investigações de congressistas na operação Lava Jato.

Na ocasião, o senador chamou de "juizeco" o magistrado que autorizou a operação. A presidente do Supremo foi então a público exigir respeito ao Judiciário.

Cármen Lúcia criticou proposta de Renan Calheiros que prevê penas mais duras para "abuso de autoridade" de delegados, juízes e membros do Ministério Público
Cármen Lúcia criticou proposta de Renan Calheiros que prevê penas mais duras para "abuso de autoridade" de delegados, juízes e membros do Ministério Público
Foto: EPA

Depois disso, Renan diminuiu o tom das críticas e ligou para pedir desculpas.

Na avaliação do professor de direito do King's College London, Octávio Ferraz, há uma "contínua batalha entre o Judiciário e o Congresso Nacional sobre o poder de interpretação da Constituição".

Recentemente, o STF decidiu banir doações de empresas a campanhas eleitorais, declarando a prática inconstitucional apesar de o Congresso ter se posicionado a favor de liberar as colaborações feitas aos partidos.

Em casos anteriores, também houve polêmicas sobre a competência para determinar a perda de mandato dos parlamentares condenados e a Lei da Ficha Limpa, que, apesar de ter sido aprovada pelo Congresso, teve o início de sua vigor determinado pela corte.

Temas ainda controversos na sociedade, como casamento gay, demarcação de terras indígenas e pesquisas com células-tronco também têm pautado julgamentos no STF.

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