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O desafio do veganismo no Brasil

17 nov 2015 - 14h32
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Sem muitas opções no país que é o sexto maior consumidor de carne do mundo, adeptos da filosofia vegana precisam batalhar para encontrar alimentos que não tenham origem animal. Repórter faz experimento de uma semana.

O veganismo é um estilo de vida que busca eliminar, na medida do possível e praticável, todas as formas de crueldade e exploração contra os animais. Quando fui desafiada pela DW Brasil a adotar uma dieta vegana durante uma semana no Rio de Janeiro, achei que seria simples. Mesmo em um país conhecido mundo afora por suas churrascarias rodízio e pela tradicional feijoada, bastaria não comer carne e suprir as necessidades de proteína através de grãos como soja, feijão, lentilha e grão de bico. Restaurantes de comida a quilo, encontrados em qualquer cidade brasileira, eram minha principal aposta para sobreviver com dignidade ao experimento. Mas eu estava errada. A tarefa se mostrou desafiadora e, muitas vezes, frustrante.

Foi preciso estabelecer limites. Eu sabia que, para uma alimentação 100% vegana, teria de substituir toda a despensa de casa e até produtos de higiene e beleza, que precisariam da certificação de que não foram testados em animais. Mas, como mudanças profundas devem ser feitas aos poucos, o combinado era deixar de lado o radicalismo e focar na alimentação, sobretudo fora de casa, registrando os obstáculos enfrentados pela comunidade vegana.

O Brasil é o sexto maior consumidor de carne do mundo. A cada ano, o brasileiro consome 78 quilos de carnes bovina, suína, ovina e aves, indica o relatório "Perspectivas Agrícolas 2015-2024", elaborado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Escolhi um restaurante a quilo no centro da cidade para meu primeiro almoço vegano. Depois de observar bem o bufê e perguntar ao gerente se não havia carne no feijão, caprichei no prato: arroz integral, feijão preto, folhas e legumes variados, além de rodelas de uma convidativa berinjela assada com especiarias. Tinha certeza de que o jogo estava ganho até a primeira mordida nas berinjelas: lá estavam, escondidos sob o molho de tomate e as rodelas, pequenos cubinhos de presunto. A paixão nacional pela carne logo ficou clara: ela se esconde sorrateiramente, em diversas formas, nos mais variados pratos. Separei o presunto e não comi. Mas falhei na missão.

Confusão conceitual: "Ah, mas frango não é carne, moça!"

No dia seguinte, em outro restaurante, perguntei se havia opções veganas. Nada. Escolhi para o almoço um macarrão integral com molho de tomate sem graça - e sem queijo, claro. Desafio vencido, mas tive uma alimentação pobre em nutrientes que me deixou com fome – e mal-humorada – a tarde toda. No terceiro dia, enfrentei o desafio social: um happy hour com amigos. Depois de ter me alimentado corretamente no almoço, à noite, no bar, meus companheiros devoravam generosas poções de bolinhos de bacalhau. Perguntei se havia alguma opção vegana de petisco, além de gordurosas batatas fritas. A resposta foi, no mínimo, curiosa. "Olha, tem pastel de frango e de queijo", disse o prestativo garçom.

Mas como assim, frango e queijo? "Ah, moça, frango não é carne!", retrucou o garçom, convicto. Descobri, então, que uma grande confusão conceitual impera por aqui: para a maioria dos brasileiros, vegetariano e vegano são a mesma coisa. E "carne" significa apenas carne bovina. Peixes e frangos não entram nessa categoria, segundo o entendimento popular. A trapalhada se repetiu outras vezes.

Faminta, sucumbi a um único pastel, de queijo. E falhei de novo. Já estava perdendo por 2 x 0 e não estava nem na metade da empreitada. Comecei a temer que meu experimento seria derrota por goleada, tão sofrida quanto o lendário 7 x 1 da Alemanha na Copa do ano passado.

Eu precisava virar o jogo. Fui atrás de apoio na internet. Além de sites de receitas, encontrei diversas comunidades sobre veganismo no Facebook. Encontrei, entre outras, o "Veganismo Popular", com mais de 10 mil integrantes. A ideia é dividir experiências e compartilhar receitas simples, veganas e, principalmente, baratas. Ali, produtos caros de marcas industrializadas especializadas, como queijos e leites vegetais, não entram.

A ordem é botar a mão na massa com simplicidade, explicou uma das moderadoras, a psicóloga mineira Roberta Rodrigues, de 28 anos. Ela abraçou o vegetarianismo aos 16 anos de idade, mas ainda consumia leite, derivados e ovos. Este ano, quando soube de um grave acidente envolvendo uma carreta que levava porcos numa rodovia paulista, revoltou-se. O caso expôs a crueldade com que os animais eram transportados. E, sensibilizada, decidiu ir além e virar vegana em respeito aos bichos.

"As pessoas acham que é dificílimo, caríssimo. Não é. Na comunidade ficou provado que é possível comer bem, gastando pouco. O que existe é um pouco de acomodação, porque é fácil consumir proteína animal sem fazer esforço. É fácil colocar um queijo no pão e comer. Como vegana, pensamos mais na qualidade da alimentação e no sofrimento dos bichos. Comecei a estudar a ideologia. Mas não foi da noite para o dia. Não gosto de radicalismo. Cada pessoa tem seu tempo", conta Roberta, que prepara em casa todos os dias seu almoço.

Eu marmito, tu marmitas, ele marmita

A entrevista foi um alento. Senti-me menos derrotada. Ela relatou os mesmos problemas de incompreensão nos restaurantes de Minas Gerais. Quando vai a festas ou é convidada para churrascos – evento social onipresente na vida do brasileiro –, leva a própria marmita de casa.

"Às vezes, os amigos querem fazer um agrado e preparam alguma coisa. Mas aí, de repente, tem maionese! Preciso explicar que não como maionese porque contém ovo. Agradeço e recuso. As pessoas começam a questionar. É revolucionário, porque surge o debate. O papo de uma noite inteira pode girar em torno da ideologia vegana. Acabamos plantando uma sementinha na cabeça das pessoas. Mas sem doutrinação", diz ela.

Roberta deu, ainda, algumas dicas importantes. Uma delas é sempre prestar atenção nos rótulos dos produtos industrializados para saber se há algum traço de sustância animal na composição. E revelou outro truque: a batata palha é uma grande amiga dos veganos.

"Dá uma crocância, um toque 'ogro'' ao prato. Não me considero natureba, gosto de junk food, mas aprendi que posso comer hambúrguer e tudo o que gosto sendo vegana", garante.

Um mercado que ainda engatinha

Motivada, fui para a cozinha e aproveitei para testar receitas simples, como arroz e lentilhas cozidos juntos, ao estilo árabe, acompanhado de saladas variadas. Perdi algum tempo, mas nada que atrapalhasse minha rotina. Ficou gostoso, embora a aparência não tenha sido das melhores. Pensei em fotografar o resultado, mas ficou bem feio. Senti vergonha da minha total falta de intimidade com as panelas, confesso.

Nos supermercados, em busca de opções veganas, me deparei com poucos produtos. Caros. Muito caros. Isso acontece porque o mercado está apenas despertando para o surgimento deste público, explica o presidente da Associação Vegetariana Brasileira (SVB), Ricardo Laurino. Há 25 anos, ele parou de consumir carnes e, há 12, tornou-se vegano, com a adoção da alimentação vegetariana estrita, sem nenhum derivado de origem animal.

"Existe uma demanda crescente para este mercado e leva um tempo até que as empresas se deem conta da necessidade de investir em produtos para o público vegano. Desde meados de 2013, quando houve um episódio grave de violência animal no Brasil, com uma empresa que fazia testes em cães da raça Beagle em São Paulo, vemos um despertar maior para o veganismo. Uns chegam preocupados com a própria saúde, outros querem agir com mais compaixão frente aos animais e se relacionar melhor com o planeta", assegura Laurino.

IBGE: 16 milhões de brasileiros se dizem vegetarianos

Segundo o censo do IBGE, 8% da população se consideram vegetarianos, o que significaria cerca de 16 milhões de pessoas no Brasil. É impossível saber, porém, que tipo de vegetarianismo elas praticam. Ou quantos são veganos. Mas, segundo Laurino, campanhas como o "Desafio 21 Dias sem Carne" têm chamado a atenção. Lançado pela SVB nas redes sociais, a iniciativa já tem 20 mil inscritos em apenas um mês. Qualquer um pode participar e receber por e-mail, diariamente, dicas e receitas para uma alimentação vegetariana e até vegana.

"Há muita informação. Quando se adota uma alimentação vegana, presta-se mais atenção ao valor da nutrição e não ao fato de comer. Se a pessoa souber cozinhar, vai ser melhor. Mas, se for comer fora, a base para qualquer prato vegano é arroz integral, feijão, lentilha e grão de bico. Depois vai-se modelando com outros legumes, outros vegetais, fazendo o prato mais bonito", diz Laurino.

Dei outra bola fora no penúltimo dia, quando encontrei um pouco de frango desfiado numa singela salada de quinoa – que o gerente tinha me garantido ser "vegana". Entre erros e acertos, passei a observar mais o que coloco no prato e perguntar tudo. Mas ainda era preciso encerrar a experiência em grande estilo.

Fui a um restaurante vegano onde comi a mais deliciosa feijoada da minha vida - e sem nenhuma carne. Em vez dos cortes suínos, havia tofu, salsichas veganas e legumes bem temperados. O único porém foi o preço salgado: gastei R$ 30 com a comilança. Realmente, é mais barato enfrentar as panelas em casa. E já que estamos preservando os animais, para mergulhar no veganismo basta apenas deixar de lado o mais importante deles: o bicho-preguiça.

Deutsche Welle A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas.
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