PUBLICIDADE

Mundo

Quem matou Alberto Nisman?

29 mai 2015 - 18h44
Compartilhar
Exibir comentários

Wyre Davies

Enviado da BBC à Buenos Aires

Em janeiro deste ano, um promotor argentino foi encontrado sem vida ao redor de uma poça de sangue no banheiro de seu apartamento, dias antes de divulgar um relatório contra o governo da presidente Cristina Kirchner. O correspondente da BBC Wyre Davies foi até Buenos Aires para entender as circunstâncias dessa estranha morte que continua a abalar a Argentina.

No início deste ano, em meio a um período crítico em que a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, tentava recuperar a combalida economia do país, de olho nas eleições de outubro, um episódio atingiu o centro nervoso do governo.

Dentro de um luxuoso apartamento na área portuária de Buenos Aires, um promotor de 51 anos chamado Alberto Nisman se preparava para divulgar um relatório polêmico. Ele acusaria o governo argentino de ajudar a acobertar o pior ataque terrorista da história do país.

Horas antes de ele apresentar o relatório ao Congresso, Nisman foi encontrado morto em seu apartamento, localizado no 13º andar de um prédio luxuoso da capital Buenos Aires, com um único disparo na cabeça. Rapidamente, os argentinos começaram a se questionar: foi um suicídio ou um assassinato?

E se realmente tiver sido um assassinato, quem estaria por trás de sua morte? A resposta a essa pergunta encontra-se em uma sucessão de fatos ocorridos há 21 anos.

Atentado

No dia 18 de julho de 1994, um ataque a bomba destruiu a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), o principal centro comunitário judaico do país. A explosão foi tão forte que o prédio ruiu, matando 85 pessoas.

Muitas das provas foram perdidas ou contaminadas, ora deliberadamente ou por incompetência, e nunca ninguém foi condenado pelo envolvimento no atentado.

O ataque atingiu o coração da comunidade judaica, com cerca de 400 mil integrantes, uma das maiores fora de Israel. O prédio foi então reconstruído sob forte esquema de segurança com altos muros que impedem qualquer nova ameaça.

Nisman, um promotor midiático e por vezes obsessivo, vinha investigando o atentado há mais de uma década, tentando solucionar um caso para o qual ninguém ainda havia conseguido encontrar respostas.

Mas, nos últimos meses, o promotor começou a angariar inimigos no alto escalão do governo argentino.

Alegando que houve uma tentativa de acobertar a suposta participação do Irã no atentado, Nisman abriu um processo criminal contra a presidente argentina, Cristina Kirchner, e o chanceler do país, Hector Timerman.

O promotor confiava em poucas pessoas e ocasionalmente trabalhava de seu apartamento. Ele estava ali no dia 18 de janeiro deste ano quando foi encontrado morto.

Flagrado deitado em seu banheiro cercado de uma poça de sangue e com uma arma próxima a seu corpo, muitas pessoas com boas conexões na Argentina imediatamente presumiram que Nisman havia se suicidado. Até a própria presidente Kirchner, em sua página no Facebook, sugeriu que o procurador tinha ceifado a sua própria vida.

Outro lado

Mas uma pessoa se recusa a acreditar nisso desde o início. Ex-companheira de Nisman, Sandra Arroyo Salgado viveu com o promotor por 17 anos e é mãe de suas duas filhas.

"Não tenho dúvida, de que por causa do jeito que ele era, sua personalidade, ele nunca tiraria a própria vida", disse ela à BBC em uma entrevista exclusiva em sua casa, localizada em um subúrbio chique nos arredores de Buenos Aires.

"Ele era extremamente cuidadoso com sua saúde e tinha medo de morrer jovem. Por isso, quando me contaram que ele havia sido encontrado morto e havia uma arma no local, sabia que alguém o havia matado".

No momento da morte de Nisman, Salgado estava em viagem ao exterior e, quando voltou à Argentina, ficou surpresa com a rápida velocidade do exame post mortem e o insucesso em preservar as provas encontradas no apartamento do promotor.

Assim, embora ela e Nisman estivessem separados, Salgado ─ que é juíza ─ começou suas próprias investigações.

"A única coisa que estamos buscando é a verdade", disse ela. "Minha equipe de investigadores analisou as fotos e o vídeo da autopsia oficial e chegou à conclusão que a morte de Alberto certamente não foi acidental".

"É como se as autoridades responsáveis pela investigação estivessem ignorando completamente o fato de que Alberto foi encontrado morto apenas quatro dias depois de ter acusado a presidente do país de nada menos do que um possível acobertamento de um ataque terrorista que resultou na morte de 85 pessoas".

Provas

Dezenas de imagens foram registradas pela polícia argentina no apartamento de Nisman. Elas apontavam para uma total falta de preparo das autoridades.

Algumas imagens mostram várias pessoas andando pelo apartamento, sem qualquer roupa especial. As evidências foram inapropriadamente manipuladas. Por exemplo, em dado momento, a polícia permitiu que a mãe de Nisman lavasse os pratos sujos que haviam sido deixados na pia e que, muito possivelmente, teriam pistas que ajudariam a desvendar o mistério.

A equipe de Salgado também alega que as digitais não foram tiradas de provas consideradas "chave" como um computador que, segundo ela, investigadores ligaram sem a devida cautela.

A arma achada na cena também parece ter sido manipulada e deixada em outro lugar, de novo longe do procedimento padrão nesses casos.

Apenas depois da insistência de Salgado foi que um teste à base de Luminol (substância química que permite identificar vestígios de sangue) foi realizado semanas depois da morte de Nisman. O teste mostrou que houve uma tentativa de lavar o sangue de algum objeto na pia do banheiro.

Mas a mulher a cargo da investigação oficial sobre a morte de Nisman, a também promotora Viviana Fein, nega que tenha havido qualquer procedimento incorreto por parte da polícia.

"É comum na Argentina não usar essas roupas especiais", disse Fein à BBC. "Já estive em muitas cenas como essa e não usei o tipo de roupa que os especialistas usam simplesmente porque não tocamos em nada. Não havia sangue em nenhum lugar fora do banheiro, o lugar onde Nisman morreu".

A rivalidade entre as duas mulheres ─ Sandra Arroyo Salgado e Viviana Fein ─ atraiu as atenções do país. Acredita-se que investigação oficial conduzida por Fein provavelmente chegará à conclusão de que Nisman se matou, mas a equipe liderada por Salgado alega que as provas sugerem justamente o contrário.

Ferimento

Uma das peças desse quebra-cabeças, contudo, é o ferimento causado pela bala que transpassou a cabeça de Nisman.

Muitos suicidas que se matam com armas de fogo efetuam o disparo posicionando a arma ao lado da cabeça ou de frente a ela. Mas a bala que matou Nisman entrou por cima, e por trás de sua orelha direita ─ um cenário não impossível, mas altamente improvável, dizem especialistas.

Outras dúvidas foram lançadas sobre a posição em que a arma foi encontrada. As fotografias tiradas de Nisman pela polícia mostram o corpo contorcido do promotor deitado em uma poça de sangue no banheiro, com a arma debaixo de seu ombro esquerdo, embora o disparo tenha perfurado o lado direito de sua cabeça.

"Uma possibilidade, se ele disparou contra si mesmo, seria que a arma tivesse caído, ou sido lançada para o lado", diz Ignacio Prieto, um dos principais repórteres investigativos da Argentina. "Mas é difícil imaginar como a arma poderia ter feito uma trajetória de 180 graus; é muito estranho".

Na opinião de Prieto, o cenário aponta para o envolvimento de outras pessoas na morte do promotor ─ uma teoria, diz ele, amparada por criminologistas da Interpol, a polícia internacional.

"Os especialistas dizem que a cena foi montada, eles colocaram o corpo de uma certa forma, a arma de outra e até usaram uma toalha para arrumar o corpo".

Testes também não encontraram vestígios de pólvora na mão de Nisman.

Técnico de informática

A arma que matou Nisman era uma antiga Bersa calibre 22. O revólver pertencia a um técnico de computador de 38 anos, Diego Lagomarsino, que trabalhava com o promotor.

Em uma entrevista coletiva caótica depois que o corpo foi descoberto, Lagomarsino negou ser parte de uma conspiração para matar seu chefe. Posteriormente, ele contou à BBC sua versão dos acontecimentos ─ que Nisman lhe pediu a arma emprestada porque não confiava mais nos guarda-costas da polícia que o acompanhavam e queria proteger suas filhas.

"Eu não tinha escolha. Alberto era um homem difícil de dizer não", conta.

Lagomarsino diz que levou a arma ao apartamento de Nisman na noite de 17 de janeiro, um sábado, e então saiu. Ele acrescenta que talvez tenha sido a última pessoa a ver o promotor vivo antes de sua morte por volta do meio-dia de domingo, tal como indica a autopsia.

Mas Sandra Arroyo Salgado diz que Lagomarsino tem mais explicações a dar depois que seus investigadores concluíram que Nisman morreu muito mais cedo, na noite de sábado.

Nisman vinha falando quase sem parar ao telefone com jornalistas e políticos nos dias anteriores a sua potencialmente explosiva acareação no Congresso ─ que deveria ocorrer na segunda-feira ─, mas na noite de sábado esse homem ativo permaneceu atipicamente em silêncio. O jornal de domingo permaneceu intocado do lado de fora de seu apartamento. Por quê?

"Acredito que a hora em que ele morreu foi quando ele parou de fazer telefonemas, porque ele era uma pessoa que falava constantemente ao telefone", diz a ex-mulher.

"É inconcebível, inconcebível que ele não tenha feito uma única chamada por tantas horas. A primeira coisa que ele fazia de manhã, durante todo o tempo em que estivemos juntos, era pegar o jornal, lê-lo e era exatamente o que ele faria já que as notícias sobre ele pipocavam na imprensa".

Protestos

As dúvidas sobre se o caso está sendo investigado de forma imparcial e independente estão sendo sentidas por toda a sociedade argentina.

Exatamente um mês depois que o corpo de Nisman foi encontrado, centenas de milhares de argentinos caminharam sob chuva torrencial por Buenos Aires, protestando contra a impunidade ─ um sentimento de que, mais uma vez, outro crime de grandes proporções inevitavelmente permaneceria sem solução por causa da incompetência judicial e a interferência política.

Por outro lado, a presidente Cristina Fernandéz de Kirchner não parece se incomodar com as dúvidas sobre a isonomia do processo.

Conhecida pelo temperamento combativo, ela tem repetidamente ridicularizado manifestantes e críticos. Sugerindo, inclusive, que alguém tenha matado Nisman como forma de minar seu governo, Kirchner condenou o ex-promotor e seu relatório.

A tensão entre eles data de pelo menos janeiro de 2013, quando a Argentina assinou um acordo com o Irã, estabelecendo a criação de uma "comissão da verdade" para uma investigação conjunta do atentado à Amia. Nisman, que trabalhou sobre o caso por 17 anos e acusou formalmente várias figuras iranianas de alto escalão em 2006, não pôde conter sua raiva.

No rádio e na TV, ele acusou Kirchner e seu chanceler, Hector Timerman, de agir inconstitucional e ilegalmente para interferir no processo judicial.

Nisman argumentaria mais tarde que o governo estava tentando firmar um pacto com Teerã como forma de aumentar o comércio bilateral entre os dois países e ajudar a combalida economia argentina.

Timerman, que tal como Nisman é judeu, disse à BBC ser "inconcebível" que ele, de todas as pessoas, trairia as memórias daqueles que morreram no atentado à bomba e disse que as acusações de Nisman contra ele e a presidente não tinham fundamento.

"Sei que ele rascunhou uma ordem de prisão contra mim e eu me defenderei no tribunal. Somente confio na lei, eu irei ao tribunal para provar minha inocência", diz Timerman, para quem o relatório de Nisman é um documento juridicamente incorreto.

"Fizemos mais do que qualquer outro governo para buscar os culpados por esse terrível crime contra a Amia, mais do que qualquer outro governo", retruca.

Sabe-se, por documentos liberados pelo Wikileaks, que Nisman visitava regularmente a embaixada americana em Buenos Aires. Ele teria tido acesso a briefings secretos de inteligência que provavelmente influenciaram sua investigação sobre o ataque. Nisman também teria ligações estreitas com o serviço secreto de Israel, a Mossad.

Depois que Nisman morreu, Timerman enviou cartas abertas a Washington e a Israel, alertando os dois países a não intervirem em assuntos internos da Argentina.

"Acredito que há países cujos serviços de inteligência operam em outros países sem a autorização desses últimos", disse o chanceler argentino.

Questionado pela BBC sobre se o envio das cartas tem relação com o caso Nisman, Timerman foi lacônico.

"Não enviamos cartas sem provas", retrucou.

Agência de inteligência

O que não está sob dúvida é o papel desempenhado pela agência de inteligência interna da Argentina na vida do promotor e, para alguns, em sua morte também.

Ao longo de décadas, o diretor de operações da SI, como a agência é conhecida, foi Antonio "Jaime" Stiuso, um homem tão esquivo quanto a única imagem que existe dele.

Ele trabalhou conjuntamente com Nisman no caso Amia, fornecendo ao promotor escutas telefônicas e outras informações sensíveis sobre o caso.

Assim como Nisman, Stiuso também caiu em desgraça com o governo após se opor ao controverso acordo com o Irã e quando as divisões chegaram à SI, ele foi demitido. Agora está foragido e acredita-se que tenha deixado o país.

Talvez Nisman tenha pagado um preço alto por tomar um lado num jogo perigoso.

O famoso juiz argentino Luis Moreno Ocampo tem um interesse especial na história. Ele diz que, durante a ressaca dos anos de chumbo da ditadura argentina, espiões exerciam um enorme poder sobre o sistema judiciário, do qual Nisman fazia parte.

"Nas décadas de 1970 e 1980, o nosso sistema de inteligência funcionava como um braço das atrocidades cometidas pela ditadura. Isso já acabou", insiste Moreno Ocampo.

"Mas o caso Nisman expôs que governos democráticos não mudaram o funcionamento do sistema de inteligência. Eles não estão mais cometendo atrocidades, mas gerenciam dinheiro para fins políticos, espionam membros da oposição, controlam juízes e promotores que querem investigar o governo. É isso que temos aqui. E o caso Nisman expôs isso", opina.

Segredos

Numa cidade cheia de segredos e suspeitas, a única pessoa que realmente se aproximou de Nisman e, diz ele, deu ao promotor a arma da qual sairia o tiro fatal foi o técnico de informática Diego Lagomarsino. Mas alguns acreditam que ele também era um agente de inteligência.

Lagomarsino teve, como chegou a ser levantado, um papel na morte de Nisman?

"Não", disse ele enfaticamente à BBC. Seu trabalho era meramente cuidar do computador do promotor argentino.

"Tenho a verdade ao meu lado, eu sei que não fiz isso e isso deixa a minha consciência livre. Deus sabe que eu não fiz isso. Eu sei que não fiz isso. E tudo será provado no final", afirma Lagomarsino, com a voz embargada.

"Quando tudo isso tiver terminado, eles pedirão perdão a mim. Eu os perdoarei", acrescenta.

Esse assassinato vem chacoalhando a Argentina, mas em ano de eleição, o governo do país parece ansioso para encerrar o caso rapidamente e engavetá-lo para sempre.

Integrantes do governo se lançaram numa campanha de difamação de Nisman, acusando-o de ser mulherengo e desviar recursos públicos de seu gabinete. Fotos dele ao lado de jovens mulheres, aparentemente tiradas de seu telefone celular, foram vazadas à imprensa argentina.

Enquanto isso, a investigação de Nisman sobre o acobertamento do caso Amia foi oficialmente arquivada.

A ex-mulher do promotor relembra à BBC uma conversa entre ele e sua filha mais velha dias antes de sua morte, em que ele enfatizava a importância do relatório.

"Ele disse a ela: Eu estou trabalhando por algum tempo em algo muito importante. Você ficará orgulhosa do meu trabalho", conta Salgado, repetindo a conversa entre pai e filha.

"Mas às vezes na vida não escolhemos os momentos em que as coisas acontecem, e tenho de apresentar esse relatório agora, é um grande projeto sobre o qual venho trabalhando por muito tempo e há um risco de que, se eu não o fizer agora, é possível que eu nunca consiga mostrá-lo para o Congresso, e que eu perca o meu emprego", acrescentou Nisman à filha.

Nisman nunca chegou a apresentar o documento ao Congresso argentino. O relatório foi desacreditado por alguns, mas outros que conheciam Nisman dizem que ele estava convencido de que estava perto da verdade e certamente não se suicidaria.

Diante de tantas informações, sobram perguntas.

BBC News Brasil BBC News Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização escrita da BBC News Brasil.
Compartilhar
Publicidade
Publicidade