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Oriente Médio

Líbano vive dias tensos com rivalidade interna, refugiados e guerra síria

Não bastasse a hostilidade e discriminação em relação a refugiados sírios, libaneses também vivem um conflito interno dentro de sua própria sociedade

4 ago 2013 - 14h32
(atualizado às 14h34)
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Em um café de Beirute, sírios e libaneses assistem a uma tradicional série de TV síria
Em um café de Beirute, sírios e libaneses assistem a uma tradicional série de TV síria
Foto: AP

Em um país dividido, libaneses estão unidos em uma certeza: o Líbano jamais viveu dias tão complicados em anos recentes como o que vive agora. A sociedade e partidos políticos se veêm cada vez mais polarizados em relação à política interna e o conflito na Síria. Rivalidades e brigas entre pró-rebeldes sírios e simpatizantes do regime do presidente Bashar al-Assad já afetam o cotidiano comum. Para completar, o grande número de refugiados vindos da Síria e o envolvimento do grupo militante libanês Hezbollah na guerra ao lado ameaçam como nunca a frágil estabilidade libanesa.

Todo verão, o comerciante libanês Fadi Haddad, teme que a fragilidade dos líderes políiticos leve o país ao abismo. “Estamos acostumados a esperar pelo pior toda vez que o verão chega. Mas nunca, ao menos nos anos recentes, o clima foi tão ruim entre os libaneses”, diz ele.

É tradicional no Líbano o ditado popular de que crises políticas, conflito com Israel ou uma nova guerra civil sempre acontecerá em um verão. Libaneses já se acostumaram a respirar fundo e esperar pelo pior toda vez que a temporada se aproxima.

“Para quem chega ao Líbano, tudo parece normal. As pessoas saem para se divertir em bares lotados, restaurantes estão cheios com famílias libanesas, sírias ou europeias. Mas debaixo disso tudo, há tensão, há desconfianças, há descontentamento e muita retórica sectária. Nem políticos, nem líderes religiosos estão ajudando com seus discursos inflamatórios”, afirma Haddad.

Para ele, um libanês cristão que mora no bairro Hamra, na capital libanesa, os indícios já eram aparentes quando um crime em frente à sua loja, há três meses, o deixou ainda mais preocupado. “Dois sírios, um anti-Assad e o outro a favor, iniciaram uma discussão que terminou com o simpatizante de Assad sendo esfaqueado e morto. O mais incrível é que eram amigos e moravam no mesmo prédio”, conta ele.

Segundo comentaristas políticos libaneses, o país passa por uma série de problemas nunca vistos em anos recentes: o aumento da criminalidade entre libaneses e sírios devido às dificuldades econômicas, a hostilidade aos refugiados sírios, o cancelamento das eleições parlamentares, a dificuldade na formação de um novo governo e, principalmente, a guerrta na Síria e o envolvimento dos libaneses no conflito.

“Claro que estas citações negativas são apenas previsões, podem ou não levar o país cada vez mais para o fundo do poço. Mas elas estão ali, e parece que vários políticos libaneses  fingem que nada acontece”, diz o colunista político Nadeem Koteiche.

Para ele, o líbano é um balanço de poder entre os vários grupos sectários, e partidos políticos, o que garante a estabilidade. “Mas, desta vez, e por diversos motivos, nada está funcionando. O clima nas ruas é tenso e pesado. Os libaneses, apesar de tentarem levar uma vida normal, sabem que tudo pode fugir ao controle a qualquer momento”.

Passeatas e provocações

Não é raro ver provocações de ambos os lados, em que libaneses e sírios, simpatizantes e opositores de Bashar al-Assad, saem juntos nas ruas de Beirute com buzinaços e bandeiras, causando agressões verbais, e às vezes físicas, entre ambas as facções.

“Toda vez que um grupo sai com bandeiras do regime sírio e fotos de Assad e do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, o outro lado revida com bandeiras do exército rebelde sírio ou de grupos islamistas rivais do Hezbollah”, diz o libanês Mohamed Rahman, também morador da Hamra.

O bairro, aliás, se transformou em uma espécie palco de disputas e mostra de forças entre facções rivais. Hamra é um dos bairros mais famosos, cosmopolitas e ecléticos de Beirute. Sede de ao menos quatro universidades, onde professores, jornalistas, estudantes, ativistas e políticos se encontram.

“Toda semana acontece alguma briga entre jovens a favor de Assad e outros que apóiam os rebeldes sírios. E claro, no fundo é uma disputa entre quem é a favor do Hezbollah e quem é contra. Às vezes, a discussão termina em tiroteios, especialmente nos bairros onde sunitas e xiitas vivem próximos um dos outros”, salienta o analista político independente Hassan Khobeiry.

Embora não seja uma regra geral, os sunitas libaneses se mostram mais alinhados com os rebeldes da Síria (majoritariamente sunitas), enquanto os muçulmanos xiitas apóaim o regime de Bashar al-Assad.

A rivalidade têm levado a confrontos mais constantes e violentos em cidades de maioria sunita mas também com comunidades xiitas e alauítas (mesmo grupo sectário do presidente Assad). Na segunda maior cidade do país, Trípoli, há confrontos armados entre milícias rivais, especialmente entre os bairros sunita de Bab al Tabbaneh e alauíta de Jabal Al Mohsen.

“É uma rivalidade antiga, que remonta aos anos 70, mas que nos últimos dois anos aumentou drasticamente por conta do conflito sírio. Em Trípoli, hoje, temos uma espécie de mini-guerra síria. Políticos locais dos dois lados não conseguem amenizar os distúrbios na cidade, e as milícias aumentam seus números de seguidores”, explica Khobeiry.

Em Sidon, cidade ao sul de Beirute, também há confrontos armados entre facções rivais, embora em menor escala do que em Trípoli. No entanto, em junho, uma batalha de dois dias entre milícias do clérigo salafista Ahmad al-Assir, forte crítico do Hezbollah e apoiador dos rebeldes islamistas sírios, e tropas do exército libanês, deixou 16 soldados e 13 militantes mortos, além de 100 feridos. Assir continua foragido e, supostamente, estaria escondido em Trípoli.

Guerra civil na Síria expulsou 1,8 milhão de pessoas do país

Hezbollah na Síria

Khobeiry cita o envolvimento do Hezbollah na guerra da Síria como o que mais expõe o Líbano à instabilidade e risco de guerra civil, e o que mais deixa os libaneses preocupados neste verão.

As consequências do envio de soldados do Hezbollah para combater em território sírio já é vísivel, com atentados à bomba em bairros controlados pelo grupo, aumento da tensão entre seus militantes e seus rivais, polarização política crescente.

O Hezbollah é a maior força militar no Líbano,  um misto de movimento político xiita e braço militar, aliado da Síria e do Irã. Mesmo antes de Nasrallah admitir, em maio deste ano, que o grupo estava em território sírio, já havia relatos desde o ano passado de que o Hezbollah combatia ao lado das tropas do regime.

Nasrallah justificou o envolvimento do Hezbollah como necessário, para conter uma suposta conspiração americana-israelense com cumplicidade de países do Golfo contra o que ele chamou de “eixo de resistência”, formado pelo seu movimento, Síria e Irã. Desde então, a ofensiva do Hezbollah só aumentou, apesar do pedido de partidos opositores libaneses e advertências de líderes do Exérrcito Livre da Síria (ELS) para que o Hezbollah se retirasse do conflito.

“Nasrallah admitiu em seus discursos que o envolvimento de seu grupo na Síria traria consequências inevitáveis para o Líbano, mas disse que a geurra era necessária contra seus inimigos. Mas a verdade é que o Líbano já está pagando um preço alto e que poderá ser ainda maior”, salienta Khobeiry.

Nos últimos três meses, já houve alguns atentados e ataques com foguetes contra bairros xiitas e controlados pelo Hezbollah em Beirute. Ninguém assumiu a autoria, mas autoridades suspeitam que seriam elementos ligados ao rebeldes sírios, em represália ao envolvimento do grupo libanês na Síria.

Os mais recentes atentados foram uma explosão perto de um Centro Islâmico no bairro de Dahiyeh, reduto do grupo xiita, deixando dois mortos, e um carro-bomba em uma estrada  perto da fronteira com a Síria, cujo alvo era um comboio de veículos do Hezbollah, deixando três de seus membros mortos.

Embora a maioria dos xiitas mantém seu apoio a Nasrallah e o Hezbollah, já apareceram algumas dissidências entre seus simpatizantes, além de ex-integrantes e clérigos xiitas emnos conhecidos pedindo que o Hezbollah saia da Síria.

Há relatos também de libaneses sunitas viajando à Síria para se juntar às tropas rebeldes. Muitos são moradores da região de Trípoli e simpatizantes de grupos sunitas mais conservadores ou extremistas “Embora ainda não haja uma ideia clara da quantidade de sunitas libaneses que lutam na Síria, é fato que jovens libaneses estão se juntando ao conflito”, completa Khobeiry.

Guerra santa

Não bastasse a hostilidade e discriminação de alguns libaneses em relação a refugiados sírios, a quem acusam de sobrecarregar a capacidade e infraestrutura do país, libaneses também vivem um conflito interno dentro de sua própria sociedade.

Hassan Rizkallah, 46 anos, é farmacêutico no bairro de Tariq al Jedide, de maioria sunita e uma das áreas mais tensas de Beirute, onde militância partidária e religiosa se misturam. Ele afirma que tinha vários amigos no bairro, mas nos últimos tempos muitos se distanciaram dele desde que o envolvimento de Hezbollah e militantes sunitas na Síria se tornou mais intenso e evidente.  O motivo, segundo ele, é ele ser xiita, enquanto seus amigos são sunitas e passaram a evitá-lo.

“Quando vou ao bairro para abrir minha farmácia, as pessoas me olham sempre de um modo estranho. Às vezes de modo tenso, às vezes hostil, mas algumas vezes até de constrangimento, já que alguns são levados a isso por pressão de clérigos ou líderes comunitários”, afirma.

Discursos de políticos de ambos os lados tentam minimizar a tensão, acusando a mídia internacional ou governos estrangeiros  de fomentar a rivalidade sunita-xiita. Mas para Rizkallah, os políticos não querem enxergar os que já estaria acontecendo nas ruas - um crescimento da tensão entre as duas fés islâmicas.

“Para quem vive no meio, é vísivel a tensão. Em alguns bairros, quando você diz que é xiita, te olham de modo estranho, desconfiado. Tenho amigos sunitas que também me relataram que já foram hostilizados em bairros xiitas. Só os nossos líderes não querem enxergar isso”, enfatiza.

De acordo com o professor de ciência política Fares Haydan, da Universidade Libanesa, o envolvimento de ambos xiitas e sunitas libaneses no conflito no país vizinho já colocou em evidência o maior medo no Líbano -, uma guerra santa entre dois. “Os discursos inflamados de Nasrallah e de líderes salafistas estão passando uma ideia de que a guerra na Síria, e sua extensão ao Líbano, se trata de um conflito de xiitas e sunitas, uma jihad (guerra santa)”.

 “É comum ouvir relatos de pessoas nas emissoras de televisão do país, em vários incidentes quando são perguntados se são xiitas ou sunitas. Há bairros, em que uma pessoa está caminhando e é abordada por jovens que perguntam a qual confissão pertence”, diz.

É o caso do sunita Mohamed Khaled, 28 anos, morador de Taalabaya, no Vale do Bekaa. Em maio, ele foi à cidade de Baalbek, mais ao norte, de maioria xiita e reduto do Hezbollah, para vender uma motocicleta a um conhecido. Após sair de um restaurante, no centro da cidade, três rapazes o abordaram e o questionaram de qual cidade vinha e o que fazia em Baalbek.

“Eu respondi e em seguida queriam saber se eu era sunita ou xiita. Quando disse que era sunita, eles me acusaram de lutar com os rebeldes na Síria. Expliquei que eu não tinha nada a ver com militância, que tinha meu comércio e família. Mas nada disso adiantou. Um deles me deu uma bofetada no rosto e me mandou ir embora da cidade”.

Khaled explica que muitos sunitas evitam ir a regiões de predominância xiita e vice-versa. “É uma situação que, dependendo do que ocorrer na Síria, pode aumentar aqui e levar ao pior. Imagine se uma morte ocorrer por causa desta rixa, e depois ataques de vingança e retaliações se seguirem. Acho que tudo fugiria ao controle”.

Para o analista Fares Haydan, se uma guerra civil eclodir no país entre sunitas e xiitas, será mais sangrenta do que a anterior (1975-1990). “A rivalidade entre os dois nunca esteve tão alta e em evidência no Oriente Médio, não só de forma ideológica, mas em termos práticos, com Árabia Saudita e seus parceiros do Golfo enviando dinheiro e material bélico aos sunitas sírios, e o governo xiita do Irã como parceiro do regime de Assad e o Hezbollah”.

Enquanto turistas chegam timidamente ao país, libaneses tentam lidar com as dificuldades que o conflito sírio e a geopolítica na região mais uma vez impõem ao Libano. “Os libaneses sabem que se sobreviverem a este verão, então os próximos serão menos tensos”, afirma Haydan.

Fonte: Especial para Terra
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