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Oriente Médio

Conheça as entranhas da "máquina de sequestros" do EI

27 set 2015 - 10h38
(atualizado em 28/9/2015 às 07h53)
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O grupo que se autodenomina "Estado Islâmico" tem espalhado terror principalmente nas fronteiras da Síria e, nos últimos anos, cresceu investindo em um "negócio" que se mostrou bastante lucrativo para os extremistas: os sequestros. De acordo com uma estimativa da agência de inteligência dos Estados Unidos, os valores recebidos pelo resgate das vítimas renderam US$ 25 milhões (cerca de R$ 101,2 milhões) para o grupo extremista no ano passado.

Além disso, os sequestros realizados pelo grupo extremista servem como uma ferramenta poderosa de propaganda. Funcionam também como uma verdadeira rede criminosa, incluindo espiões, informantes, sequestradores, carcereiros e os próprios negociadores, que fazem os acordos pela liberação dos reféns.

O jornalista sírio Omar Al-Maqdud foi conhecer algumas das pessoas envolvidas nessa "máquina de sequestros" do EI e faz o relato abaixo sobre o que descobriu com a investigação. 

Veja o relato de Omar:

Steven Sotloff foi decapitado em setembro do ano passado
Steven Sotloff foi decapitado em setembro do ano passado
Foto: Divulgação/BBC Brasil

Dois anos atrás, um jornalista americano, Steven Sotloff, veio me visitar na minha casa nos Estados Unidos e disse que estava planejando ir para a Síria. Eu tentei convencê-lo a mudar de ideia, mas ele não me ouviu. Três dias depois, ele me mandou um e-mail de uma região próxima a Aleppo me pedindo ajuda com contatos. Não muito tempo depois, ele acabou sequestrado.

"Havia três carros. Eu podia vê-los à distância, a uns 500 metros", contou Yusuf Abubaker, um freelancer que trabalhava para Sotloff e que estava viajando com ele.

"Assim que eles viram a gente, saíram dos carros e bloquearam nosso caminho… eu queria tirar minha arma e mirar neles, mas eram cerca de 10 ou 15 caras armados na nossa frente."

Sotloff e Abubaker foram separados. "Eu tentei gritar por ele, mas eles me diziam para calar a boca", relatou Abubaker, que foi libertado depois de 15 dias por ter conexões com uma poderosa brigada anti-governo chamada "Free Syrian Army" (FSA).

Um ano depois, em setembro de 2014, o 'EI' divulgou um vídeo de Sotloff sendo decapitado. Isso aconteceu logo depois do assassinato de outro jornalista americano, James Foley, em circunstâncias semelhantes.

No total, 181 jornalistas, jornalistas-cidadãos e blogueiros foram assassinados na Síria desde 2011, de acordo com o grupo Repórteres sem Fronteiras. Pelo menos 29, incluindo nove estrangeiros, ainda estão desaparecidos ou são mantidos reféns pelo 'EI' ou outros grupos extremistas armados.

James Foley foi decapitado em agosto de 2014
James Foley foi decapitado em agosto de 2014
Foto: Divulgação/BBC Brasil

Planejamento

Na cidade de Antakya, conheci um homem sírio, antigo agente do EI, que me pediu para chamá-lo de Abu Huraira. Ele me contou que rastreava jornalistas que cobriam o conflito e ajudava a esquematizar o sequestro deles.

Para isso, ele fingia ser um refugiado sírio e pedia a da região para apresentá-lo aos jornalistas. Depois de algumas reuniões, ele sugeria um lugar próximo da fronteira para eles fazerem as filmagens. "Há crianças que vocês podem filmar e vou apresentá-los a algumas pessoas que podem ajudá-los nesse trabalho", era a promessa que ele fazia.

Ele, então, dava os detalhes dos planos dos jornalistas aos sequestradores. "Eu organizava tudo com eles. Só precisava entregar a pessoa… outro iria cuidar do sequestro e de todo o resto, eu não precisava fazer nada mais que isso. Ou o sequestrador ainda me sequestraria junto e me liberaria depois de um tempo."

No início do conflito, Abu Huraira havia sido um membro da FSA. Depois, passou um tempo com um grupo local com ligações com a al-Qaeda, antes de começar a colaborar com o 'EI'. Ele só concordou em falar comigo porque decidiu deixar o grupo.

E Huraira só tomou a decisão depois de ter recebido um pedido do 'EI' para esquematizar o sequestro de um de seus amigos.

"Eu não podia perder meu amigo e me sentir responsável por isso. Eu disse a ele: 'Você precisa sair daqui, deixar o país, porque você é o novo alvo deles. Eles querem você e não há desculpas para essas pessoas'". Eu falei com um antigo colega depois para confirmar se isso era verdade ─ e era.

Fronteira entre Síria e Turquia era onde Abu Huraira costumava levar os jornalistas
Fronteira entre Síria e Turquia era onde Abu Huraira costumava levar os jornalistas
Foto: Divulgação/BBC Brasil

Abu Huraira me mostrou fotos de reféns, mensagens e gravações de conversas que ele tinha com líderes do 'EI' na província de Raqqa, e explicou como os sequestros são bem planejados.

Segundo ele, há muitas pessoas como ele dispostas a ajudar o grupo com infirmações para os sequestradores ─ por motivos ideológicos ou mesmo financeiros.

Eu também estive em Antakya um ano antes e Abu Huraira me disse que estava me monitorando naquela viagem ─ e quase "me vendeu" por alguns milhares de dólares. Ele sabia onde eu estava me hospedando, com quem eu estava viajando e detalhes da viagem que eu meus colegas tínhamos planejado por ali.

Ele me disse que passou todas essas informações para seus colegas do EI, que até chegaram a fazer um plano para nos sequestrar. Por sorte, nós cancelamos a viagem de última hora.

Punição

O 'EI' tem um departamento inteiro dedicado a sequestros chamado "Aparato de Inteligência", de acordo com Abu Huraira. Eles colocam os jornalistas como alvo desde que os repórteres colocam os pés na fronteira da Síria.

Às vezes, porém, o EI sequestra pessoas não pelo dinheiro, mas para punir os jornalistas.

Em janeiro do ano passado, homens mascarados invadiram o escritório do jornalista sírio Milad Al Shihaby em Aleppo, aparentemente por vingança por causa de suas reportagens sobre as atrocidades cometidas pelo grupo extremista. "Eles isolaram todo o equipamento eletrônico no escritório ─ câmeras, laptops, etc ─, me colocaram no porta-malas do carro e me levaram para a base deles, no hospital das crianças", contou ele.

Shihaby foi mantido em cativeiro sozinho em uma cela por 13 dias em um antigo hospital em Aleppo. Cerca de outros 200 sírios também estavam presos ali.

Milad Al-Shihaby agora vive na Turquia
Milad Al-Shihaby agora vive na Turquia
Foto: Divulgação/BBC Brasil

"Eu fiquei com os olhos vendados por 10 dias. Eu tinha que rezar com os olhos vendados, tinha que comer com os olhos vendados. Depois desses 10 dias, fiquei mais três com as mãos algemadas ─ e os olhos continuavam vendados. Até quando eu estava rezando eu estava com as mãos algemadas."

Depois, Shihaby foi transferido para um outro quarto maior com outros prisioneiros, agora já sem a venda e as algemas. Segundo ele, alguns dos seus carcereiros tinham sotaques do Iraque e era possível ouvi-los torturando outros reféns.

"Eles penduravam um homem pelas mãos e deixavam suas pernas para baixo ─ e ali ele ficava por duas ou três horas…às vezes eles tinham tantos prisioneiros, que não tinham corda suficiente para pendurá-los, então eles usavam as algemas para isso."

Al Shihaby conta que alguns de seus companheiros de cela foram executados por não terem se convertido ao Islã. Mas quando os guerrilheiros da FSA tomaram o centro de detenção, alguns militantes conseguiram fugir. Al Shihaby e outros prisioneiros escaparam. Ele havia ficado preso ali por 16 dias.

Quarenta e oito horas depois que ele me levou de volta para a prisão vazia, soubemos que o EI havia retomado o controle da área.

Milad Al-Shihaby com as cordas que eram usadas para pendurar os prisioneiros
Milad Al-Shihaby com as cordas que eram usadas para pendurar os prisioneiros
Foto: Divulgação/BBC Brasil

Motivos

Al Shihaby não foi a única pessoa a conseguir se livrar do sequestro ─ alguns jornalistas estrangeiros também foram libertados. Em junho de 2013, os jornalistas franceses Edouard Elias e Didier François foram sequestrados na Síria ─ e só ficaram livres depois de 10 meses.

Mas por que alguns reféns são libertados? Há casos em que isso só acontece mediante pagamento de altos valores pela libertação dos reféns, mas no caso de Elias e François, nenhum resgate foi pago. Em casos assim, o EI sequestra pessoas não por dinheiro, mas para demonstrar poder e espalhar o medo.

E o que mais me chocou não foram apenas os vídeos dos jornalistas sendo assassinados. Mas a forma como sírios comuns foram corrompidos e acabaram se juntando a esse mundo sujo ─ e como amigos meus acabaram entrando nisso também.

A prisão The onde Mila Al-Shihaby foi mantido em cativeiro
A prisão The onde Mila Al-Shihaby foi mantido em cativeiro
Foto: Divulgação/BBC Brasil
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