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Há 10 anos, Sérgio Vieira de Mello morria em atendado no Iraque

Agência relembra morte do diplomata brasileiro: "Foi o começo de uma guerra impiedosa que continua até hoje"

17 ago 2013 - 18h49
(atualizado às 19h55)
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Dividíamos o mesmo pequeno hotel em Bagdá e, toda manhã, nós nos cumprimentávamos na sala de jantar antes que eu subisse para o terceiro andar, onde ficava o escritório da AFP, e antes que ele, Sérgio Vieira de Mello, fosse para a sede da ONU.

Naquela manhã, ele se aproximou da minha mesa e me disse em francês - idioma, aliás, que falava perfeitamente: "bom, hoje à noite prometo que, quando voltar, nós nos vemos e colocamos os assuntos em dia".

Muitos outros encontros haviam sido cancelados, por causa de sua pesada agenda. Fiz um gesto de incredulidade, mas ele repetiu, com um sorriso: "prometo".

A equipe da ONU já o esperava. Três meses depois da invasão dirigida pelos Estados Unidos, que levou à derrocada do regime de Saddam Hussein, multiplicavam-se as ameaças contra a presença de estrangeiros. Duas semanas antes, já havia ocorrido um atentado contra a embaixada da Jordânia. Os dois seguranças do Sérgio haviam decidido, então, mudar diariamente de itinerário para evitar surpresas desagradáveis.

Depois de cobrir a invasão no hotel Palestina, onde o Ministério iraquiano da Informação havia nos alojado, decidimos deixá-lo, já que estava cada vez mais deteriorado e o serviço era horrível.

Como quase todos os grandes estabelecimentos haviam sido saqueados diante da indiferença dos soldados americanos, finalmente encontramos o hotel do Cedro para nos instalarmos. Estava relativamente em boas condições e, pouco depois, a ONU se juntou a nós.

O representante especial do secretário-geral da ONU no Iraque, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, havia chegado a Bagdá em 2 de junho e sua máxima era: "o quanto antes o povo iraquiano se governar, melhor". Isso não agradava em nada o representante americano Paul Bremer, recém-desembarcado, que não conhecia nada da região.

Bremer tinha um desprezo total pela ONU, que havia se negado a aprovar a invasão. O brasileiro estava decidido, porém, a traçar seu próprio caminho, sem levar em conta os desejos dos EUA.

Em sua equipe estava Ghassan Salamé, seu assessor político. Eu o conhecia bem, desde os meus anos no Líbano, durante a guerra civil. Acadêmico eminente, acabava de deixar suas funções em Beirute como ministro da Cultura para ir a Bagdá a pedido do então secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Realmente, estava em casa. Originário do Líbano, onde "convivem" pelo menos 18 religiões, conhecia perfeitamente as sutilezas das sociedades multiconfessionais e multiétnicas.

Dirigido com mão de ferro por Saddam Hussein durante décadas, o Iraque não tinha mais tradições políticas. Os sunitas haviam confiado seu destino, voluntariamente ou não, ao ditador; e os xiitas, que apesar de majoritários nunca conseguiram chegar ao poder, estavam divididos entre os do interior (aqueles que subiram nos tanques norte-americanos) e os que vinham do seu exílio no Irã. Além disso, no norte, os curdos gozavam de autonomia desde 1991.

Todos os dias, Ghassan recebia personalidades conhecidas e outras nem tanto, mas que aspiravam a sê-lo. Como um bom cozinheiro, ele tinha de dosar os ingredientes para formar o governo e apresentava sua receita a Vieira de Mello. "Nós nos entendíamos muito bem", disse-me ele, recentemente.

De fato, dividiam as tarefas. Sérgio se ocupava das relações com os americanos e os europeus, e Ghassan, da "cozinha doméstica". Mas o que os aproximou foi o desejo de combater nos americanos sua pretensão de se mover no Iraque como um país conquistado.

"Tivemos um confronto memorável com Bremer a respeito do controle do recursos do Iraque. A resolução 1.483 previa que essa operação deveria ser supervisionada pelo Banco Mundial, FMI, ONU e pelo Fundo Árabe de Desenvolvimento (FAD), mas Bremer não se importava nem um pouco. De qualquer maneira, conseguimos derrotá-lo", conta Ghassan Salamé, sorrindo.

Mas foi a controvérsia sobre a Constituição, sobretudo, que provocou a ruptura de 29 de junho de 2003, seis semanas antes do atentado que custaria a vida do enviado especial da ONU. Nesse dia, o grande aiatolá Ali Sistani, guia espiritual da comunidade xiita, recebeu Sérgio e Salamé em sua casa na cidade santa de Najaf. Um fato excepcional, pois Sistani raramente recebia estrangeiros.

Ghassan me contou que, naquele momento, o grande aiatolá disse a eles: "eu soube que Bremer encarregou advogados americanos da redação de uma Constituição. Se não retirarem esse documento nos próximos três dias, convocaremos a rebelião. A Constituição deve ser escrita por uma assembleia eleita de iraquianos, e não por advogados americanos".

Sérgio Vieira de Mello se reuniu com Bremer que, vermelho de raiva, afirmou que não cederia às ameaças de um aiatolá, alegando que ele deveria se ocupar apenas de questões religiosas. "Eu transferi a resposta de Bremer a Sistani, que publicou sua fatwa", o decreto religioso, no qual convocou uma rejeição ao texto americano, completou Ghassan.

Os xiitas, que chegaram a ver com bons olhos a intervenção dos americanos, ficaram muito perto de mudar de ideia. Bremer, então, recuou e mandou a equipe de advogados de volta para os EUA.

No dia do atentado, ocorria na ONU uma entrevista coletiva sobre as minas. O jornalista da AFP que devia cobri-la demorou no almoço - o que, no final das contas, acabou salvando-lhe a vida.

Às 16h (horário local), houve uma enorme deflagração. Um caminhão de cimento cheio de explosivos foi jogado contra um muro de proteção e explodiu, provocando a queda de uma ala do prédio. Era exatamente lá que ficava o escritório de Sérgio Vieira de Mello.

Um homem totalmente ensanguentado saiu do hotel, apoiando-se em outro. Duas iraquianas, uma delas idosa e coberta com o véu islâmico, insultavam "Saddam e seus partidários".

Sérgio agonizou um longo tempo antes de morrer. Chegou a pedir água, com um fio de voz, a um guarda de segurança.

Seu escritório ficava no segundo andar do prédio. Com o impacto da explosão, Vieira de Mello foi parar no térreo. Uma barra de cimento imobilizava por completo suas duas pernas.

"Eu subi para o segundo andar e o vi lá embaixo, imobilizado. Eu gritei: 'Sérgio, Sérgio', e ele me respondeu 'Ghassan'", lembrou Salamé.

"Voltei a subir e lhe disse: 'Sérgio, fique tranquilo que vamos tirar você daqui", acrescentou.

Um segurança conseguiu fazer um buraco por trás do prédio e, com a mão, retirou os escombros. "Quando chegou até o Sérgio, seu corpo já estava frio. Ele tinha sangrado pelas pernas".

Ghassan Salamé conseguiu escapar da morte, porque estava na outra parte do edifício. Ele voltou para o hotel coberto de poeira e esgotado. Havia envelhecido dez anos de uma só vez. Passou as duas semanas seguintes percorrendo os hospitais de campanha americanos para tentar identificar membros do pessoal da ONU.

Esse atentado - que depois seria seguido por outro, contra a Cruz Vermelha Internacional - marcou o início de uma guerra impiedosa que esgotou o país e custou a vida de milhares de iraquianos. E que continua até hoje.

* Sammy Ketz é, atualmente, chefe do escritório da AFP em Beirute.

AFP Todos os direitos de reprodução e representação reservados. 
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