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Oceania

Austrália: CPI traz à tona traumas causados por padres a crianças

8 dez 2012 - 17h59
(atualizado em 10/12/2012 às 09h14)
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Liz Lacerda
Direto de Sydney

Trinta e oito anos depois, Nicky Davis ainda chora desesperadamente ao lembrar do padre deitado sobre seu corpo miúdo na sala da casa da família, em um subúrbio de Sydney. Naquele dia, enquanto o homem se esfregava no corpo da filha, a mãe de Nicky saiu da sala. "Para meus pais, era motivo de orgulho ter uma autoridade da igreja visitando nossa casa", lamenta. Ela tinha apenas 11 anos quando começou a sofrer abuso sexual por parte do religioso.

Nicky Davis, hoje com 49 anos, segura uma foto de quanto tinha 11 anos: quase 40 anos depois, ela ainda chora
Nicky Davis, hoje com 49 anos, segura uma foto de quanto tinha 11 anos: quase 40 anos depois, ela ainda chora
Foto: Liz Lacerda / Especial para Terra

O padre coordenava o grupo de jovens da igreja frequentada pela família. Nicky não fazia parte do grupo, mas não escapou da violência. Durante seis anos, os abusos continuaram. "Ele começou a agir como um amante. Beijava meu pescoço, sussurrava no meu ouvido e tocava nos meus seios na frente dos meus pais. Cada vez que eu tentava sair de perto, eles me mandavam voltar e ser 'boazinha' pra ele", conta.

Aos 12 anos, Nicky também foi violentada pelo irmão mais velho, que presenciava o comportamento do religioso e sabia da tolerância dos pais. "Fui estuprada muitas vezes depois disso, porque eu não tinha defesas e aprendi que nunca poderia dizer 'não'. Fui uma vítima fácil", explica a profissional de marketing, hoje com 49 anos, que sempre pensou em suicídio. "Se você é continuamente tratado como se não valesse nada, você acredita. Como a vida era um fardo muito pesado para mim, eu queria acabar com minha dor", falou.

O casal Anthony e Chrissie com suas três filhas

Sedativos no refrigerante

Foi o que fez Emma Foster, outra vítima de abuso sexual. Aos 26 anos, em janeiro de 2008, ela se matou com uma overdose de comprimidos, em Melbourne. Duas das três filhas do casal Anthony e Chrissie foram violentadas pelo padre da escola católica escolhida pelos pais. "Levei minhas filhas (Emma e Katie) para um colégio religioso, porque fui criada na igreja e achava que elas estariam seguras ali", conta a mãe, que escreveu o livro Hell on the Way to Heaven (Inferno a Caminho do Paraíso), ainda sem tradução para o português.

Longe dos olhos dos colegas e acima de qualquer suspeita das famílias, a inocência das crianças se perdia no silêncio das salas da escola ou na casa paroquial, onde meninos e meninas eram forçados a praticar sexo oral e violentados pelo padre, que colocava sedativos no refrigerante. Emma tinha apenas 6 anos de idade quando o abuso começou, mas ela só entendeu a dimensão da violência aos 13 anos, quando leu as acusações contra o padre no jornal. Ficou anoréxica, foi internada duas vezes em clínicas psiquiátricas e desistiu de viver. Já a irmã Katie começou a beber. Sob efeito do álcool, foi atropelada, passou um ano internada, permanece com deficiência e precisa de cuidados 24 horas por dia.

Desde então, a mãe luta por justiça. "A religião Católica protege os agressores. Para manter a imagem da igreja, os crimes são acobertados, os padres são apenas transferidos de paróquia e, às vezes, tem até o nome trocado", acusa. Segundo Chrissie, as crianças são forçadas ao silêncio. "Eles viram drogados, alcoólatras e depressivos, sofrem de distúrbios psicológicos e desordens alimentares e acabam vivendo uma vida de miséria sem conseguir estabelecer relacionamentos com ninguém", avalia.

Iniciativas contra os abusos

O aumento no número de denúncias de abuso sexual contra crianças forçou o Parlamento do Estado de Vitória a criar uma CPI apenas para investigar os casos envolvendo a Igreja Católica, onde 620 ocorrências foram registradas. Porém, o número de vítimas pode ser dez vezes maior. "Estimativas mostram que apenas 10% das vítimas de abuso sexual registram queixa. Com base nesse dado, acreditamos que haja cerca de seis mil vítimas da igreja", diz a advogada Judy Courtin.

O governo federal também anunciou, pela primeira vez na história da Austrália, a criação de uma Royal Commission, uma comissão pública nacional de inquérito para investigar os casos. As normas de trabalho, que ainda estão sendo discutidas, devem ser divulgadas até o final deste mês. "Esperamos que, finalmente, os abusadores sejam identificados, processados e condenados, e as vítimas, indenizadas. Também queremos acabar com as investigações internas da Igreja, que protegem apenas os religiosos, porque devemos garantir que a verdade seja dita e a justiça seja feita, para que nunca mais aconteça", declarou.

Courtin também dá um conselho às vítimas brasileiras: "Conversem com alguém de confiança, denunciem às autoridades, procurem grupos de apoio e pressionem por investigações. Não peçam ajuda na igreja porque eles querem manter tudo em segredo", pondera. No Brasil, o telefone do Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes atende pelo número 100.

Em nota oficial, a Arquidiocese de Sydney diz que o fato de que "alguns padres católicos, membros de ordens religiosas e funcionários leigos da igreja tenham abusado de crianças é motivo de muita vergonha", mas ressalta que "a grande maioria dos sacerdotes e religiosos são pessoas de fé que compartilham da tristeza da sociedade quando casos de abuso sexual vem à tona". A Arquidiocese nega, ainda, qualquer tipo de proteção aos agressores e garante que todas as denúncias são encaminhadas à polícia. Conforme a nota, o programa "Towards Healing" ("Em direção à cura", criado pela Igreja em 1996) oferece uma investigação independente e compensação financeira às vítimas.

Fonte: Terra
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