PUBLICIDADE

Mundo

Trabalho escravo é realidade entre diplomatas na Alemanha

12 out 2012 - 10h53
Compartilhar
Clarissa Neher
Direto de Berlim

A questão do trabalho escravo já vem sido discutida no Brasil há anos, entretanto este tema ainda recebe pouca atenção na Alemanha. Nos últimos anos, dois casos chocaram a opinião pública alemã, pois aconteceram em um ambiente inimaginável. Duas mulheres foram trazidas legalmente da Indonésia para a Alemanha para prestar serviços domésticos para diplomatas, porém elas foram obrigadas a trabalhar 18 horas por dia, recebendo um salário de 150 euros por mês e sofreram agressões físicas e psicológicas.

Nivedita Prasad trabalha na Ban Ying, ONG que luta para a prevenção e punição de autores de trabalho escravo
Nivedita Prasad trabalha na Ban Ying, ONG que luta para a prevenção e punição de autores de trabalho escravo
Foto: Divulgação

O grande problema nestes dois casos é a questão da imunidade diplomática, que impede a punição para os atores destes crimes. Essencialmente importante para a libertação destas vítimas foi a orientação da organização Ban Ying (casa das mulheres), que presta ajuda às mulheres imigrantes vítimas de tráfico de pessoas na Alemanha. O Terra entrevistou com exclusividade a pedagoga social indiana Nivedita Prasad, que trabalha desde 1997 na Ban Ying e está engajada na luta para a prevenção e punição de autores deste tipo de crime.

Terra - A partir de quando um trabalho passa a ser considerado escravo? Em quais setores é possível encontrar trabalho escravo na Alemanha?
Nivedita Prasad - Um trabalho é considerado escravo quando as condições de trabalho são completamente diferentes daquelas que foram prometidas. Geralmente a vítima é obrigada a trabalhar mais de 17 horas por dia, recebendo nenhum ou um salário muito pequeno, perde a sua liberdade de ir e vir e tomar decisões e não pode deixar o emprego. Além disso, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos considerou também toda forma de tráfico de pessoas como escravidão moderna. Na Alemanha, existem casos de escravidão em trabalhos domésticos, em restaurantes, na prostituição, na agricultura e na construção civil, pois não é preciso ter formação para trabalhar nestes setores e também são setores muito difíceis de serem controlados.

Terra - Nos dois casos que repercutiram na imprensa os autores do crime eram diplomatas e suas famílias. A utilização de trabalho doméstico escravo é mais frequente neste meio? Ou a maioria dos casos ocorre em casas de famílias alemãs?
Nivedita Prasad - Até hoje só atendemos casos de mulheres que foram escravizadas por famílias de diplomatas, pois devido à imunidade diplomática eles não têm medo de serem julgados, e, para uma família normal, sempre há a possibilidade de o caso vir à tona e eles serem punidos por este crime. Há uma frequência maior de casos entre diplomatas vindos do mundo árabe, mas infelizmente a escravidão não é exclusiva entre diplomatas destes países. O primeiro caso de trabalho escravo que atendi foi de uma mulher que trabalhava para um diplomata dos Estados Unidos.

Terra - De onde vêm estas imigrantes e como elas chegam à Alemanha?
Nivedita Prasad - A grande maioria delas entra legalmente na Alemanha. As mulheres que prestam trabalhos domésticos nas casas dos diplomatas são geralmente das Filipinas e da Indonésia e vêm para cá com um visto de trabalho. No setor da prostituição, as mulheres da Ásia entram no país com um visto de turista e aqui são obrigadas a casar para poder trabalhar legalmente. As que vêm do oeste europeu entram no país pelas fronteiras terrestres e muitas vezes sem documentos. E algumas mulheres da África entram no país com documentos falsos.

Terra - Como estas mulheres são atraídas para cá? O que acontece quando elas chegam aqui?
Nivedita Prasad - As vítimas do tráfico de pessoas são atraídas com várias promessas. No caso do trabalho doméstico, elas são atraídas com um contrato de trabalho e chegando aqui elas descobrem que o contrato que assinaram não tem valor. Muitas delas vêm para cá achando que vão trabalhar normalmente e no final do mês receberão um salário de 200 euros, mas elas não sabem que é impossível viver aqui ganhando 200 euros. Como a prostituição é legalizada no país, muitas mulheres vêm para cá sabendo que vão trabalhar neste setor e outras são enganadas. Nos dois casos elas descobrem que as condições de trabalho são bem diferentes das prometidas e, devido às ameaças, dívidas, falta de informação, esperança de poder se libertar e continuar vivendo na Alemanha, acabam se submetendo a esta condição.

Terra - O que acontece com os autores deste crime quando algum caso de trabalho escravo é descoberto?
Nivedita Prasad - Para que os autores deste crime sejam punidos, as vítimas precisam denunciar, mas, na maioria dos casos, isso não acontece, pois elas têm muito medo das consequências que uma denúncia pode trazer. Os autores deste crime não estão somente na Alemanha, mas também no país de onde elas vieram. Em muitos casos os traficantes usam um método bem mais efetivo: a chantagem psicológica. A maioria delas não contou para seus familiares que está trabalhando com prostituição, e os autores ameaçam contar para suas famílias o tipo de trabalho que elas estão fazendo aqui. Quando elas denunciam, teoricamente deveriam receber uma indenização. Mas isso é difícil de acontecer - a maioria das vítimas prefere voltar ao seu país sem denunciar os seus patrões.

Terra - E no caso dos diplomatas?
Nivedita Prasad - Nós procuramos negociar primeiramente no nível diplomático com a ajuda do Ministério das Relações Exteriores. Na maioria das vezes, conseguimos bons acordos, nos quais os diplomatas pagam indenizações para as vítimas. As indenizações são calculadas com base na lei que estipula um salário mínimo para empregada doméstica de diplomata de 820 euros, mais moradia, comida e plano de saúde. Caso o diplomata se recuse a fazer um acordo, divulgamos na imprensa o caso. Como estas negociações acontecem no nível individual, elas não geram mudanças estruturais.

Terra - O que pode ser feito para mudar o nível estrutural?
Nivedita Prasad - Uma forma seria um caso que sirva de exemplo jurídico. Foi isso que tentamos no caso de Dewi Ratnasari, escravizada por um diplomata da Arábia Saudita. Estávamos processando o diplomata e iríamos recorrer em todas as instâncias até Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Infelizmente não deu certo, pois os advogados do acusado alegaram que ele não é mais diplomata e agora Dewi Ratnasari poderia processá-lo normalmente. Porém, na Arábia Saudita, pois ele não mora mais na Alemanha. Além disso, procuramos também fazer pressão internacional para que a imunidade diplomática em casos de trabalho escravo não tenha valor. Também organizamos campanhas de conscientização, pois as vítimas necessitam de ajuda para se libertarem e por isso é muito importante falar sobre a escravidão, para que as pessoas saibam como reconhecer e ajudar uma vítima.

Fonte: Especial para Terra
Compartilhar
Publicidade