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FHC: The Elders lutam por dignidade, não crescimento econômico

10 set 2012 - 11h02
(atualizado às 11h50)
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Após deixar a presidência, em 2002, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso passou a fazer parte de diversas organizações internacionais. Entre elas, o The Elders se tornou uma de suas atividades mais caras. Fernando Henrique é o único sul-americano a fazer parte do grupo, criado em 2007 a partir de uma conversa entre o músico britânico Peter Gabriel e o seu compatriota bilionário Richard Branson sobre o papel dos sábios na sociedade atual.

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O sul-africano Nelson Mandela, um ícone da paz e um dos homens que mais incorpora o conceito de sábio visualizado por Branson e Gabriel na concepção do grupo, assumiu a tutela do The Elders e se encarregou de convidar outros ex- líderes mundiais que compartilhassem os ideais de busca constante pela paz e compromisso com a humanidade. Ao receber uma carta-convite de Mandela, Fernando Henrique juntou-se ao grupo no momento de sua criação.

Atualmente, dez notáveis formam o grupo - Mandela, por sua idade avançada, ocupa apenas o cargo de membro honorário. Além de FHC, fazem parte do The Elders o ex-primeiro-ministro argelino e enviado da ONU Lakhdar Brahimi, a ex-presidente irlandesa Mary Robinson, a ex-premiê norueguesa Gro Brundtland, a atual mulher de Mandela e ex-ministra de Educação moçambicana Graça Machel, a ativista pelo direito das mulheres indiana Ela Bhatt, o ex-presidente americano Jimmy Carter, o ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, o ex-presidente finlandês Martti Ahtisaari, o arcebispo sul-africano Desmond Tutu (atual presidente do grupo). Os quatro últimos são vencedores do Prêmio Nobel da Paz.

No dia 3 de setembro, Fernando Henrique recebeu uma equipe do Terra para uma entrevista exclusiva em sua residência na zona sul de São Paulo. Um apartamento amplo, mas sóbrio, tal qual a figura de seu ilustre proprietário. Durante uma hora, o ex-presidente falou sobre sua participação no The Elders, o mensalão, a presidência de Dilma Roussef, a descriminalização das drogas e como lida com a idade, entre outros temas.

Confira trecho da conversa do Terra com o ex-presidente, em que ele fala sobre as atividades e causas defendidas pelo The Elders:

Terra - Quais são as características necessárias para se tornar um Elder?

FHC - Tem que ser pessoas que já realizaram algo, que sejam reconhecidos, que sejam independentes, que tenham coragem de dizer as coisas e que não tenham medo, não tenham rabo preso, possam dizer as coisas tal como acham que são, sem se preocupar com as consequências econômicas, se agrada o governo, se agrada o partido. (Um elder) Se sente mais livre, mais independente e fala sempre do lado do mais fraco. Pode ser um grande escritor, que chegue a um momento em que diga: 'bom, agora eu vou me dedicar a questões sociais, a defesa da paz'.

Terra - Algum brasileiro tem esse perfil?

FHC - O escritor mais conhecido é o Paulo Coelho, mas ele ainda está muito interessado na própria obra. Eu não sei se haverá outros líderes que se disponham e que tenham um reconhecimento mais amplo. Se o Lula não fosse se dedicar à campanha, ele poderia. Mas enquanto ele estiver nessa volúpia de poder, não.

Terra - Qual é a importância de um grupo de ex-líderes mundiais no contexto atual?

FHC - É grande, porque o mundo de hoje é cada vez mais globalizado. Requer que pessoas que tenham voz se façam presentes, e que não se deixe tudo por conta dos governos e de outras organizações formais. Pode ajudar - como tem ajudado - a chamar a atenção para certas questões. Por exemplo, quem se preocupa com o que está acontecendo no Sudão? Ou em Sri Lanka? Ou, antes, na Birmânia (atual Mianmar)? Pouco a pouco, a gente vai martelando, martelando, e vai se formando uma preocupação na opinião pública que pode mover para uma ação positiva.

Terra - Quais resultados práticos decorrem da atuação do The Elders?

FHC - Por exemplo, no caso da Birmânia, a líder Suu Kyi (líder da oposição à Junta Militar birmanesa, Ang San Suu Kyi se elegeu parlamentar após passar duas décadas em prisão domiciliar), nós a consideramos membro do grupo quando ela estava presa, isso ajuda a dar uma certa força. Em outros casos, por exemplo, no Sudão, sobretudo o envolvimento direto do ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, do Kofi Annan (ex-secretário-geral das Nações Unidas) e da Graça Mandela (ex-ministra da Educação de Moçambique e mulher de Nelson Mandela), ajudou muito as negociações. Nós não conseguimos na questão do Mugabe (Robert, presidente), no Zimbábue, que ele sequer nos autorizasse a entrar lá. Mas já foi um bom caso, porque cria um certo barulho. Pela primeira vez foi possível para um grupo - formado por Carter, Gro Brundtland (ex-premiê da Noruega) e a Mary Robinson (ex-presidente da Irlanda) - ir à Coreia do Norte.

Em outro plano, quando se trata de ações sociais, há um movimento grande que estamos apoiando para evitar discriminação de gênero. Para especificar mais diretamente, nos concentramos no casamento de crianças negociado pelas famílias.

Terra - O senhor escreveu em um artigo para o site do The Elders afirmando que sete em cada dez meninas se casam antes dos 15 anos em certos países em desenvolvimento, e que isso afetaria negativamente seis das oito metas do milênio (metas estabelecidas pela ONU em 2000 para serem atingidas até 2015). Em que medida o casamento infantil é um entrave para o desenvolvimento?

FHC - Em vastas áreas da África, da Ásia, da América Central, e até mesmo do Brasil, onde não há essa negociação de casamentos, o casamento precoce tira a criança da possibilidade de estudar, porque está casada. Por outro lado, precipita doenças, porque são pré-adolescentes e já estão casadas. É difícil lidar com essa questão, porque, por um lado, existem questões econômicas. A negociação do casamento se dá em termos de preservação da capacidade de sobrevivência de certas crianças, de certas famílias. Por outro lado, há questões religiosas, então é muito complicado. A gente não pode simplesmente decretar que está proibido o casamento de menores de 18 anos e vai se resolver a questão. É preciso um trabalho contínuo de mostrar os malefícios que isso causa.

Terra - O que vem primeiro, desenvolver o país economicamente ou a transformação cultural?

FHC - Vem junto, é muito difícil você obter progresso em uma situação de desespero econômico. Por outro lado, muitas vezes você tem o progresso econômico, mas se você não muda a cabeça das pessoas, não há uma sociedade decente. No nosso caso, estamos muito mais preocupados com a criação de formas de vida condignas, do que com o desenvolvimento econômico.

Terra - Qual a importância de uma figura como Nelson Mandela?

FHC - Eu diria que o Mandela é único pela exemplaridade dele. Uma pessoa que levou 28 anos na cadeia, ao sair, em vez de transbordar de ódio contra os seus opressores, ele propôs a democracia, convivência pacífica, com o reconhecimento das culpas. Isso é uma coisa extraordinária. Não é fácil encontrar outro Nelson Mandela. Ele é um símbolo. Quando Nelson Mandela começa a falar, tudo se transforma, porque ele tem uma aura de grandeza tão grande, que é quase um profeta. E isso não se faz por decreto.

Em relação a Peter Gabriel e Richard Branson, que ajudaram a fundar o grupo, qual o papel deles?

O papel deles é duplo. Um, eles financiaram e dão recursos, juntamente com outros filantropos. Mas eles também são conselheiros. Cada vez que o grupo se reúne, eles estão presentes.

Terra - À medida que os governos parecem cada vez mais engessados, qual o papel desses filantropos na promoção de muitas dessas causas?

FHC - É grande. Sobretudo depende de que tipo de dinheiro. Esses ganharam dinheiro nas artes. São pessoas que têm certa sensibilidade. Outros ganharam no mercado financeiro, onde houve muita riqueza nova que se fez rapidamente, e de gente jovem. Esses também têm uma sensibilidade mais aguda. Eles se sentem responsáveis por terem ganhado tanto em pouco tempo, querem dar algo em troca.

Terra - Quais são os procedimentos do Elders? Como ele se organiza, escolhe causas?

FHC - Em geral são reuniões fechadas para tomar decisões, que se fazem com muita participação de todos. É um grupo muito diversificado. Por exemplo, há uma senhora chamada Ela Bhatt. É uma líder da Índia que tem um banco para apoiar mulheres. Existem cerca de 3 milhões de pessoas associadas a ela - que foi muito importante na questão do casamento infantil. Ela disse: 'cuidado, prestem atenção: às vezes a questão do casamento infantil está enraizada porque é uma maneira de sobrevivência. Então vocês não podem vir só com o moralismo, tem que vir com uma visão de compreensão da cultural local'.

Lakhdar Brahimi, que agora vai substituir o Kofi Annan nas negociações na Síria, é uma pessoa que negociou muito a paz no Afeganistão, sabe das dificuldades que isso implica e conhece muito o mundo islâmico. Ele foi ministro na Argélia, mora em Argel, então é muito ativo para compreender esse mundo islâmico. Outros têm uma visão de mundo mais nórdica. Por exemplo, o finlandês Martti Athtisaari (ex-presidente da Finlândia), que é Prêmio Nobel (da Paz). Junto com ele tem a Gro Brundtland, da Noruega. Esse pessoal tem uma visão de um mundo em que os ricos têm comprometimento com os países pobres e defendem muito a paz.

Nós discutimos muito cada passo. Por exemplo, o que fazer na questão Israel/Palestina. Eu fui chefiando a delegação do The Elders (FHC liderou uma comitiva do The Elders que visitou Israel e a Cisjordânia em 2009). Como atuar nisso aí? Como você entra numa questão tão delicada como essa? Só tem um jeito, é falar como todos. Almoçamos com Shimon Peres, (presidente de Israel). Como também falamos por telefone com o primeiro-ministro de Gaza, do Hamas. Depois estivemos em Ramallah. A nossa presença é sempre para mostrar que o caminho é de negociação, que não se pode levantar muros assim a torto e a direito. Visitamos aldeias dos dois lados. Vimos a cooperação entre árabes e israelenses para mostrar que isso é possível.

Terra - Na questão de Israel, em 2009 o senhor escreveu que aquele era o momento de se negociar a paz. Não aconteceu. Em 2011, o senhor escreveu um artigo que está no site do The Elders falando que a reconciliação entre Hamas e Fatah era um passo importante e que era o momento de negociar a paz. Passou mais um ano e não aconteceu. O senhor acha que esses momentos de otimismo estão passando? Há como evitar o ceticismo em relação à paz?

FHC - Tem que manter a ideia da possibilidade da paz. É muito difícil. Como a gente sabe, tem razões históricas que levam a essas tensões. O nosso papel é de dizer 'por aí não vai dar certo'. Mesmo se eles forem para o outro lado. Por exemplo, abrindo canais. O presidente Carter esteve conversando com o pessoal do Hamas lá na Síria. São missões delicadas, imagine o ex-presidente americano ir à Coreia do Norte para abrir canais em um momento em que o governo dos EUA é contra. Precisa ter muita independência para isso. E eu acho que isso é um exemplo de que nós não podemos nos submeter cegamente aos interesses políticos estabelecidos. Porque há um valor maior que é a humanidade, e a paz é uma precondição essencial para que as pessoas possam viver em conjunto.

Terra - É possível conciliar o crescimento econômico com o desenvolvimento sustentável?

É necessário. Você não pode parar o desenvolvimento econômico, os países pobres precisam de desenvolvimento, mas pode moderar o dos mais ricos, pelo menos no estilo de consumismo deles. Você pode perguntar, 'e o que aconteceu na Rio+20? Foi uma decepção?' De certo ponto de vista, sim, de outro, não. Qual não? Foi um happening. Muita gente foi lá e passou a tomar consciência. O que não avançou? A negociação dos governos, porque eles têm mais dificuldade de avançar, cada um tem seu egoísmo nacional. Mas é sempre assim.

Terra - O senhor acha que, em momentos de crise, líderes com visão global são substituídos por líderes com visão mais local?

FHC - É possível, porque o interesse imediato leva a que você tome decisões sem pensar nos grandes temas. Mas isso não faz desaparecer os líderes globais. Globais não no sentido de mercado, mas da respeitabilidade de todos os lados, que são importantes.

Fonte: Terra
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