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Ásia

China: lei do filho único cria geração de "pequenos imperadores"

5 ago 2011 - 17h33
(atualizado às 17h55)
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Fernanda Morena
Direto de Pequim

Desde que implementada em 1978 pelo então presidente Deng Xiaoping, a política de filho único mudou o sistema organizacional familiar chinês, invertendo a pirâmide confucionista de cabeça para baixo. Quem manda agora são os filhos - os pequenos imperadores, agora chamados também de "geração de vampiros" -, que mantêm pais e avós sob rédeas curtas e pressão financeira.

Crianças brincam com os pais e avós em fonte do Shopping Village, em Sanlitun (Pequim)
Crianças brincam com os pais e avós em fonte do Shopping Village, em Sanlitun (Pequim)
Foto: Fernanda Morena / Especial para Terra

"Como só se pode ter um filho na China, as crianças passam a ser o centro da nossa atenção, e fazemos tudo por elas", conta Ren Jie, 39 anos, mãe de um casal. "Meus filhos têm tudo que eu não pude ter", diz Jie, que é representante da nova classe média alta chinesa, cujo poder aquisitivo permite ultrapassar a lei do país e pagar pelas despesas do segundo filho de forma integral.

Para ela, a grande diferença entre o que sua geração pode oferecer aos filhos é um maior escopo de opções. "Eu não tinha bonecas. Meu presente de aniversário eram os livros que eu usaria na escola". Crianças como as de Ren Jie dão então nome à nova geração de chineses de classe média, os "pequenos imperadores". São crianças que gozam de privilégios econômicos e dificilmente recebem um não de seus pais.

"Às vezes eu penso que eu deveria dizer não quando eles pedem um brinquedo novo ou doces antes do jantar. Mas eles são meus filhos, estudam tanto, e não consigo me controlar", confessa.

Filhos vampiros, mães tigre

A alcunha "geração vampiro" é dada no ambiente online chinês com referência direta às novas gerações que "sugam" os pais, em vez de prover-lhes com cuidados quando adultos. Essas crianças e jovens nascidos no final do século XX (pós-1980) experimentam o abismo cultural deixado entre si e seus pais pela mistura da filosofia confucionista, a ideologia Maoísta e o sistema político comunista.

No início deste ano, a advogada sino-americana Amy Chua causou frisson internético ao lançar no diário norte-americano The Wall Street Journal o artigo "Por que as mães chinesas são superiores". O texto era um excerto do livro de sua autoria, O hino de batalha da mãe tigre (em tradução livre), no qual Amy critica os ensinamentos liberais dados pelos pais ocidentais e louva a educação opressora mandarim.

Não é difícil encontrar exemplos na China de crianças e jovens que pouco têm em comum com as filhas de Amy, que se dizem gratas pela educação que recebem. A geração dos "vampiros" fica bem mais longe das rédeas curtas propostas pela escritora e, em muitos casos, acaba sendo a verdadeira rainha do lar.

No site Douban, a versão chinesa do MySpace, há uma comunidade chamada "antipais", onde usuários relatam desde maus tratos até mesmo críticas à pressão familiar por uma vida que dizem ser "antiquada". Com pouco menos de 40 mil membros (eram 19 mil em abril deste ano), o grupo reúne chineses e estrangeiros e gera discussões entre as diferentes comunidades - como foi o caso do embate de opiniões sobre o conceito da "mãe tigre", criado por Amy Chua em seu livro.

Entre discussões acerca de qual sistema de educação é mais efetivo - o opressor chinês ou o liberal ocidental -, centenas de chineses inscritos no Douban convocam para uma "revolução dos filhos tigre", aqueles que têm total controle sobre suas próprias vidas independentemente do que os pais falem.

Mas casos de mães partidárias do sistema educacional de Amy, na China, há aos montes. No início deste mês, ficou famosa a história de Xiao Qihua (que significa "pequena flor exótica"), quando a estudante do primeiro ano do Ensino Médio postou em fórum online um pedido para que um adulto com mais de 35 anos a acompanhasse a uma reunião em sua escola. Ela estava aterrorizada em deixar os pais saberem que suas notas estavam abaixo da média de sua classe, e temia uma repressão ainda maior. Por isso resolveu contratar um pai substituto.

E não foi a primeira vez que casos assim ocorreram; um internauta respondeu ao post de Qihua dizendo já ter pago 20 yuans (cerca de R$ 5) para que um estranho fosse com ele à sua escola em uma reunião com os professores devido a suas notas baixas.

Também na semana passada, o jornal China Daily, ligado ao governo central, divulgou abertamente o caso de suicídio coletivo organizado por alunos do Conservatório de Pequim, que seriam expulsos do estabelecimento por terem rodado em diversas matérias. Conforme a Comissão Municipal de Educação de Pequim, alunos de escolas técnicas podem ser expulsos caso não passem nas provas de recuperação de mais de metade das matérias pela terceira vez consecutiva.

Quando os estudantes, de idades entre 8 e 16 anos, teriam falhado em passar em 2/3 de suas 15 matérias - que é o parâmetro indicado pelo Conservatório -, eles receberam um comunicado da diretoria sobre sua expulsão. Um dos alunos, uma menina de 16 anos, tomou pílulas para dormir e foi hospitalizada. Os demais participantes do pacto voltaram para casa depois de permanecerem desaparecidos por mais de 24 horas.

Fim do confucionismo familiar?

A cultura confucionista, que liderou ideologicamente as famílias chinesas até 1949, quando Mao Tsé-tung declarou a República Popular da China, foi posta na ilegalidade com o Maoísmo. O sistema ditatorial de um único partido político colocava pais e filhos em um mesmo patamar: os filhos do comunismo. Todos eram tratados da mesma forma, e a lei confucionista da piedade filial (que dizia que filhos deveriam obedecer sempre aos mais velhos, e em especial às figuras masculinas) deu lugar à devoção a Mao.

O distanciamento da cultura milenar de Confúcio não desapareceu quando o filósofo, nascido no século IV a.C, voltou à legalidade no Império do Meio. Pelo contrário, só aumentou a diferença entre as gerações. Os avós chineses, jovens ainda quando Mao assumiu o poder, lutam hoje pelo reconhecimento e apoio dos filhos e netos. Os pais dos filhos únicos, da geração pós-1980, lutam por manter os filhos ligados aos estudos e ao desenvolvimento profissional. A geração pós-1980 é ligada a estrangeirismos, à experimentação cultural e social e ao mundo globalizado.

Tensão entre jovens e idosos

Em janeiro deste ano, o governo chinês criou uma emenda - ainda à espera de aprovação - que tornaria legal para os idosos processarem seus filhos e netos por negligência e abandono financeiro e sentimental.

Com uma população que envelhece vertiginosamente desde a implementação da lei do filho único, o governo mandarim se vê pressionado a reformar seu sistema de previdência social de forma a contemplar seu número de aposentados. Cerca de 1/8 da população chinesa (13,26%) tem mais de 60 anos, e mais da metade deles vive sozinho, indica a pesquisa censo desenvolvida em 2010 e liberada parcialmente em 28 de abril deste ano.

A reestruturação da pirâmide etária chinesa não só oferece riscos à manutenção do crescimento econômico do país, como cria um problema sério de provisão da previdência social para o governo. A lei então apareceu como uma medida para conter a pressão sobre os caixas governamentais na hora de cuidar de uma população que não pode ser economicamente produtiva.

Lei do filho único

Conforme a legislação chinesa, alterada no final da década de 1970 para controlar a alta taxa de natalidade, cada casal pode ter um filho sem que isso incorra em despesas extras. Essas crianças são beneficiadas pelo sistema de assistência social mandarim, que hoje garante assistência médica gratuita até os três anos, bem como o Ensino Fundamental.

O alto nível de natalidade era causado pela predominância de moradores rurais na China, que contavam com o apoio da prole no cuidado com a terra - a agricutura e a pecuária. Isso se somava à falta de um plano de assistência social, que deixava os pais dependentes dos filhos quando idosos e incapazes de seguir trabalhando.

Desde a abertura da China ao capital estrangeiro e a consequente industrialização do país, a renda per capita aumentou, e houve a migração das populações rurais para as cidades. Reformas no sistema de ensino e a possibilidade de acumulação de riqueza - que possibilitou a saída de estudantes para o exterior - também interferiu na construção de uma sociedade mais livre do setor primário.

"Para a primeira geração de pais pós-reforma, era muito caro ter filhos. Passados agora 30 anos, é possível arcar com escolas e assistência médica privadas", explica Ren Jie. Seus dois filhos, de três e cinco anos, frequentam um jardim de infância privado, onde ficam por seis horas diárias e recebem educação bilíngue (mandarim e inglês): "Eu ainda os coloco em aulas de inglês particulares, dança, pintura e o que mais eu puder¿.

Filhos únicos, ao se casarem, podem ter mais de uma criança, porém perdem os benefícios oferecidos pelo governo. No caso dos "novos ricos", como Ren Jie, os casais optam por gerar mais de um descendente sem que os custos da criação da criança sejam determinantes em suas escolhas.

"Eu quero ser uma mãe diferente da que eu tive, mas também sigo alguns de seus exemplos na hora de educar meus filhos, como a necessidade de uma educação formal rígida e de qualidade", ressalta Jie. Ela disse nunca ter lido o livro da advogada Amy Chua, mas diz conhecer o princípio da mãe tigre. Para ela, a teoria pouco condiz com a realidade chinesa de hoje. "Acho que ela se embasou na educação que recebeu de seus pais, e não no que acontece hoje. Tenho certeza que os dentes dos meus filhos são mais afiados em comparação a essa mãe tigre aqui, que não consegue lhes negar nada".

Medidas tomadas pelo governo chinês para conter a emancipação da juventude inclui a volta do ensinamento da filosofia confucionista em escolas particulares, além da promoção da ideologia comunista na rede pública.

Fonte: Especial para Terra
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