Crise na Tunísia escancara conivência da França com ditadores
22 jan2011 - 08h29
(atualizado às 08h59)
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Lúcia Müzell
Direto de Paris
Sidi Bouzid, região centro-oeste da Tunísia. Um jovem desempregado, Mohamed Bouazzi, 26 anos, faz do próprio corpo uma tocha humana, em protesto contra o desemprego no país. O ato, que provocou a morte de Bouazzi, acorda a população contra o governo do presidente Zine El-Abidine Ben Ali e a revolta popular acua o ditador a tal ponto que, pela primeira vez em 23 anos, ele cogita deixar o poder. Na França, silêncio.
Os dois países, no entanto, mantêm relações estreitas, a Tunísia tendo sido colônia da França até 1956 e até hoje confiando à França o posto de seu maior parceiro econômico. Mesmo assim, os distúrbios no Magreb vinham sendo tratados com estranho descaso pelas autoridades francesas. O presidente Nicolas Sarkozy se abstém de comentários. Enquanto isso, alguns de seus colaboradores, especialmente no Ministério das Relações Exteriores, emitem comunicados lembrando que os franceses acompanham "de perto o está acontecendo na Tunísia", sem qualquer juízo de valor, na mais completa imparcialidade.
A ministra Michèle Alliot-Marie chega a propor, diante da Assembleia Nacional, que a França ofereça uma "cooperação de segurança" ao regime de Ben Ali, três dias antes que o ditador fosse obrigado a deixar o país, como um foragido. A justificativa era a de que a revolta das ruas estava se tornando cada vez mais violenta e colocando a vida da população em risco. A esquerda, estarrecida, organiza manifestações de apoio ao povo tunisiano nas ruas de Paris e Marselha. Mais de 600 mil tunisianos vivem na França, e entre 21 e 22 mil franceses moram na Tunísia, que também é um dos destinos favoritos de férias dos franceses.
Não à toa, o primeiro local onde se especulou que o ex-presidente colocaria os pés após a sua deposição foi em Paris. Por fim, ele acabou refugiado na Arábia Saudita.
Encerrada a censura à imprensa, as televisões francesas enviam imediatamente dezenas de correspondentes para cobrir os acontecimentos no país, e o assunto passa a ocupar as manchetes de todos os jornais, revistas e canais de rádio e televisão. O âncora de um dos principais telejornais do país, David Pujadas - o Willian Bonner francês -, chegou a apresentar a edição da última segunda ao vivo da capital Túnis.
Com toda a repercussão e a reviravolta nos fatos, o governo francês é obrigado a recuar no silêncio. Coube ao ministro da Defesa francês, Alain Juppé, reconhecer a falha: "A França subestimou a exasperação do povo tunisiano face a um regime policial e a uma repressão severa", afirmou Juppé, na segunda-feira. Deste momento em diante, as frases de apoio e de admiração pelo que fez a população tunisiana começaram, enfim, a florir em território francês. "Cabe aos tunisianos escolher o seu futuro, um futuro democrático, em eleições livres", afirmou um comunicado do Ministério das Relações Exteriores.
Em documentos diplomáticos secretos divulgados em dezembro pelo site WikiLeaks, os Estados Unidos demonstravam preocupação com a forma como a França e a Itália se negam a pressionar a Tunísia a realizar uma reforma política, com vistas à democracia. "Nós devemos trabalhar para levá-los a fazer pressão no governo tunisiano, e a fazer deste assunto uma condição para nossas colaborações futuras", diz um dos despachos americanos.
A culpa pela relação duvidosa entre o "país dos Direitos Humanos" e um Estado ditatorial, no entanto, não pode ser atribuída apenas a Sarkozy: desde a independência da Tunísia, os dois países se apoiam e a França faz vistas grossas ao regime nada democrático que se instalou no seu ex-território, exatamente como ainda faz com a Costa do Marfim, o Gabão ou o Marrocos. Seu predecessor, Jacques Chirac, certa vez foi recebido calorosamente por Ben Ali no aeroporto da capital Túnis, em 2003. Na ocasião, disse: "o primeiro dos direitos humanos é o de comer, o de receber atendimento médico e educação. Neste ponto de vista, temos de reconhecer que a Tunísia está bastante avançada."
Para o especialista em Mundo Árabe e Muçulmano Vincent Geisser, a França prefere se manter em uma espécie de "cegueira ideológica" por julgar que Ben Ali, apesar de se perpetuar no poder à base da força e impor limitações ao direito de expressão, era capaz de reprimir os extremistas islâmicos com eficiência. O temor de ascensão talibã ao poder era mais forte do que a vergonha de não repreender um governante autoritário. Além disso, em troca de apoio, Ben Ali ainda combatia a imigração clandestina à Europa, se tornando ainda mais simpático aos líderes franceses.
"A França desapontou a sociedade tunisiana ao apoiar, até o fim, o regime de Ben Ali. Os democratas tunisianos jamais vão se esquecer que a França não esteve ao lado deles no momento em que mais precisaram", avalia o pesquisador. "Eu acho que isso trará consequências graves para a relação entre os dois países daqui para frente, e diria até que os Estados Unidos poderão se aproveitar desta falha para reforçar a sua inserção na região. Mas a França ainda tem a oportunidade de se redimir, oferecendo o seu mais forte apoio para a formação de um novo regime democrático", disse Geisser.
Momento histórico
A Tunísia começou a viver um forte turbulência social em meados de dezembro, quando jovens e estudantes iniciaram protestos contra os altos índices de desemprego na ruas da capital Túnis. As manifestações logo tomaram vulto e assumiram uma conotação política, criticando a falta de liberdade política no país.
O governo se viu obrigado a agir. Em meio a pedidos de calma à população, o então presidente Ben Ali anunciou o fechamento de universidades e escolas, enquanto o Exército saía às ruas para frear as manifestações. Passaram a haver confrontos regulares, gerando um número ainda incerto de mortos, mas que já passa de 70, segundo dados do governo.
As medidas não foram suficientes, e Ben Ali se viu obrigado a deixar a Tunísia no dia 14 de janeiro, passando o controle do país para o Exército e o comando interino do governo para o primeiro-ministro, Mohammed Ghannouchi. Com a fuga, encerra-se um longo período de governo, iniciado em 1987 e durante o qual Ben Ali se reelegeu diversas vezes.
Sem a presença do ex-ditator, a Tunísia começa a caminhar na direção de um novo cenário político. Na segunda-feira, 16 de janeiro, o comando interino tunisiano convocou a formação de um governo de união nacional para funcionar durante o período transitório até as próximas eleições, convocadas para dentro de seis meses. Presos políticos também receberam anistia, e todos os partidos políticos serão legalizados.
Manifestante joga bomba de gás lacrimogêneo durante confronto com policiais em Regueb
Foto: AFP
Manifestantes atiraram pedras contra as forças de seguranças tunisianas
Foto: AP
Estudante passa mal após entrar em confronto com forças de segurança em Regueb
Foto: AFP
A revolta popular na Tunísia contra o alto custo de vida deixou neste fim de semana entre 14 e 20 mortos
Foto: AP
Unidades antimotins tentaram dispersar a manifestação de estudantes
Foto: AFP
Distúrbios e protestos ocorrem contra a carestia da vida e o desemprego desde meados de dezembro
Foto: AP
Militares montam guarda em frente ao palácio do governo no bairro Cite Ettadhamen em Túnis, na Tunísia
Foto: AFP
Manifestantes entram em confronto com a polícia em região próxima a capital, Túnis
Foto: Reuters
Tanque blindado patrulha a praça principal de Sidi Bouzid, perto da capital Túnis
Foto: Reuters
quipes de resgate evacuam feridos durante os violentos distúrbios em Túnis
Foto: AP
27 de dezembro de 2010 - Manifestantes entram em confronto com membros das forças de segurança de Túnis
Foto: AFP
27 de dezembro de 2010 - Pessoas, uma deles segurando um pão, protestam em Túnis para mostrar sua solidariedade com os habitantes de Sidi Bouzid, que realizaram manifestações contra o desemprego e as más condições de vida
Foto: AFP
09 de janeiro - Pneu é queimado nas ruas de Regueb, cidade perto de Sidi Bouzid, durante confronto de manifestantes com as forças de segurança
Foto: AFP
09 de janeiro - Fumaça é vista nas ruas de Regueb, cidade perto de Sidi Bouzid, durante confronto de manifestantes com as forças de segurança
Foto: AFP
10 de janeiro - Membro das forças de segurança da Tunísia mira na direção de um manifestante tunisiano que se prepara para atirar uma pedra em direção a eles durante os confrontos entre manifestantes e forças de segurança em em Regueb, cidade perto de Sidi Bouzid
Foto: AFP
10 de janeiro - Manifestante tunisiano se prepara para lançar gás lacrimogêneo durante confrontos com as forças de segurança em Regueb, cidade perto de Sidi Bouzid
Foto: AFP
12 de janeiro - Militares montam guarda em frente ao palácio do governo no bairro Cite Ettadhamen em Túnis, onde manifestantes queimaram veículos e atacaram escritórios do governo na noite anterior
Foto: AFP
13 de janeiro - Tunisianos se reúnem na frente de um shopping que foi incendiado no bairro de Cite Ettadhamen em Túnis, onde manifestantes queimaram veículos e atacaram escritórios do governo na noite anterior
Foto: AFP
13 de janeiro - Policiais militares montam guarda no centro de Túnis após tentativa de protesto que aconteceu no início do dia
Foto: AFP
14 de janeiro - Manifestante protestam em frente ao ministério do Interior na avenida Habib Bourguiba, em Túnis, após o discurso do presidente tunisiano Zine El Abidine Ben Ali à nação
Foto: AFP
14 de janeiro - Fumaça é vista depois de confrontos entre forças de segurança e manifestantes em Túnis, após o discurso do presidente tunisiano Zine El Abidine Ben Ali à nação
Foto: AFP
14 de janeiro - Manifestantes confrontam-se com a polícia na avenida Mohamed V em Túnis
Foto: AFP
14 de janeiro - Manifestantes jogam pedras durante confrontos com forças de segurança na avenida Mohamed V em Túnis
Foto: AFP
14 de janeiro - Manifestantes jogam pedras durante confrontos com forças de segurança na avenida Mohamed V em Túnis
Foto: AFP
14 de janeiro - Soldados enfrentam manifestantes em tanque blindado na avenida Mohamed V em Túnis
Foto: AFP
15 de janeiro - Centenas de soldados e tanques de guerra patrulharam as ruas de Túnis, capital da Tunísia, após os violentos protestos no país
Foto: Zohra Bensemra / Reuters
15 de janeiro - Tunisianos que moram na França saíram para protestar contra o presidente do país africano, Zine al-Abidine Ben Ali
Foto: Robert Pratta / Reuters
Fumaça era vista em mercado francês e tunisiano na cidade de La Gazella
Foto: AFP
Transeunte na Tunísia observa carro que acabou queimado após onda de protestos na cidade de La Gazella
Foto: AP
Funcionários limpam estação de trem prejudicada durante manifestação que ocorreu noite a dentro na Tunísia
Foto: AFP
Imigrantes da Tunísia protestam na Bélgica contra o presidente Zine Abidine El Ben Ali
Foto: AP
Mulher segura cartaz de Zine Abidine El Ben Ali com a escrita de "procurado", em manifestação ocorrida na França
Foto: AP
Após protestos, soldados garantem a segurança do prédio onde fica o parlamento da Tunísia
Foto: AP
Presidente interino da Tunísia, Fued Mebaza, tomou o cargo após o líder do país Zine El Abidine Ben Ali fugir
Foto: AP
17 de janeiro - Policial corre atrás de manifestante que protestava, no centro de Túnis
Foto: Reuters
17 de janeiro - Homem protesta enquanto militares soltam gás lacrimogêneo para dispersar a manifestação, em Túnis
Foto: Reuters
17 de janeiro - Homem grita enquanto soldado tenta remover manifestantes, na capital Túnis
Foto: AP
17 de janeiro - Soldados tentam dispersar manifestação, no centro de Túnis
Foto: AFP
17 de janeiro - Manifestantes protestam contra o ex-presidente Zine El Abidine Ben Ali, em Túnis
Foto: AP
17 de janeiro - Em Marselha, na França, homem grita em protesto contra o presidente tunísio, Ben Ali, em frente ao consulado da Tunísia
Foto: AFP
17 de janeiro - Mulher tenta beijar soldado durante protesto contra o ex-presidente Ben Ali, nas ruas da capital do país
Foto: AP
17 de janeiro - Manifestante enfrenta policiais nas ruas de Túnis
Foto: AFP
17 de janeiro - Em visita aos Emirados Árabes Unidos, o Secretário-Geral das Nações Unidas pediu o restabelecimento da ordem na Tunísia
Foto: AP
17 de janeiro - O premiê Mohamed Ghannouchi anuncia novo governo de união nacional durante entrevista coletiva em Túnis
Foto: Reuters
17 de janeiro - Polícia tenta conter manifestantes em Túnis: mesmo após a renúncia de Ben Ali, protestos contra o ex-presidente persistem na capital
Foto: Reuters
17 de janeiro - Leila Ben Ali, mulher do presidente deposto da Tunísia, é suspeita de ter retirado uma reserva 1,5 tonelada de ouro do país e levado consigo na partida em direção aos Emirados Árabes Unidos. A foto acima é de outubro de 2008
Foto: AP
17 de janeiro - Retratos dos ex-presidentes Ben Ali e Habib Bourguiba são encontrados em edifício oficial da capital Túnis, no mesmo dia do anúncio do governo de "união nacional"
Foto: EFE
18 de janeiro - Tunisianos protestam na Avenida Roma, em Túnis. A polícia usou gás lacrimogêneo e entrou em confronto com os manifestantes, que protestavam contra o novo governo do país
Foto: AFP
18 de janeiro - Policiais dispersam manifestantes que protestavam contra novo governo na avenida Roma, em Túnis
Foto: AFP
18 de janeiro - Policial cobre o rosto após terem lançado gás lacrimogêneo contra manifestantes que protestavam contra o novo governo em Túnis
Foto: AFP
18 de janeiro - Tunisianos protestam na avenida Roma, em Túnis, contra o novo governo do país
Foto: AFP
19 de janeiro - Manifestantes são empurrados para trás por policiais durante uma manifestação na cidade de Túnis
Foto: Reuters
19 de janeiro - Protesto compara o governo do presidente Zine al-Abidine Ben Ali com o nazismo; família de Ben Ali também virou alvo
Foto: Reuters
20 de janeiro - Soldado empurra manifestante em frente à sede do partido de Ben Ali, a Agrupação Democrática Constituicional (RDC)
Foto: Reuters
20 de janeiro - Soldado empunha arma com flor, durante manifestação na capital Túnis
Foto: Reuters
20 de janeiro - Manifestantes tunisianos entregam flores aos militares durante protesto contra o governo de Ben Ali
Foto: AP
20 de janeiro - Enrolada na bandeira da Tunísia, mulher protesta em frente à sede do partido do presidente deposto, Bel Ali
Foto: Reuters
24 de janeiro - Depois de desafiar o toque de recolher, manifestantes entraram em confronto com a tropa de choque na região central de Túnis
Foto: AFP
25 de janeiro - Moradores de Sidi Bouzid and Kasserine, na região central da Tunísia, fazem protesto em frente ao palácio governamental de Túnis
Foto: AFP
25 de janeiro - Soldados fazem guarda em frente ao escritório do premiê Mohammed Ghannouchi
Foto: AFP
25 de janeiro - Carcereiros e parentes de prisioneiros islamitas protestam dentro do Ministério da Justiça, em Túnis
Foto: AFP
25 de janeiro - Soldado tunisiano fala com manifestante enrolado na bandeira nacional durante protesto na frente do palácio do governo
Foto: AFP
25 de janeiro - Moradores da região de Sidi Bouzid and Kasserine, fazem protesto em frente ao escritório do premiê Ghannouchi
Foto: AFP
25 de janeiro - Moradores de Sidi Bouzid and Kasserine, na região central da Tunísia, incendeiam imagem do presidente deposto Ben Ali
Foto: AFP
26 de janeiro - Moradores da região de Sidi Bouzid, no centro da Tunísia, entram em confronto com as forças de segurança em frente ao gabinete do primeiro-ministro Mohammed Ghannouchi em Túnis
Foto: AFP
26 de janeiro - Morador de Túnis atira uma pedra enquanto um policial lança gás lacrimogêneo em manifestantes na frente do gabinete do primeiro-ministro Mohammed Ghannouchi em Túnis
Foto: AFP
26 de janeiro - Manifestante ferido é evacuado após confrontos com a polícia durante protesto na frente do escritório do primeiro-ministro em Tunis
Foto: AFP
26 de janeiro - Moradores da região de Sidi Bouzid, em Túnis, atacam um oficial em um carro da polícia, durante as manifestações o governo interino
Foto: AFP
5 de maio - Policial com roupas discretas desfere chute contra manifestante durante repressão a protesto em Tunis, onde centenas de manifestantes cobraram do governo da Tunísia as reivindicações feitas durante a revolução que derrubou, no início do ano, o ex-presidente Ben Ali, após mais de 23 anos de poder
Foto: AP
5 de maio - Agente sem uniforme policial chuta manifestante que já está caído, durante manifstação para cobrar exigências da revolução, em Tunis
Foto: AP
5 de maio - Policial enfrenta manifestante que tenta dialogar, em rua de Tunis
Foto: AP
5 de maio - Policial reprime protesto e bate em manifestantes caidos em calçada, na capital Tunis
Foto: AP
5 de maio - Manifestante é arrastado por policial após ser preso em protesto que cobrou cumprimento das reivindicações da revolução e questionou boato sobre suposta preparação de golpe militar para julho
Foto: AFP
5 de maio - Manifestantes carregam jovem ferida durante repressão das forças de segurança da Tunísia a protesto, na região central de Tunis