PUBLICIDADE

Ásia

China se apodera de um capítulo negro na história do Tibete

27 ago 2010 - 18h02
Compartilhar

A fortaleza branca se agigantava acima dos campos, um reduto decadente, mas ainda imponente, fincada num monte de rocha sobre uma planície de colzas douradas, brilhando com a luz da manhã.

Uma batalha ocorrida aqui em 1904 mudou o curso da história tibetana. Uma expedição britânica liderada por Sir Francis E. Younghusband, o aventureiro imperial, dominou o forte e marchou até Lhasa, a capital, tornando-se a primeira força ocidental a abrir forçosamente o Tibete e arrancar concessões comerciais de seus lamas.

A sangrenta invasão fez com que os líderes manchus da corte da dinastia Qing em Pequim percebessem que eles tinham de controlar o Tibete, em vez de continuar tratando a região como um estado vassalo.

Assim, em 1910, bem depois da partida dos britânicos, 2 mil soldados chineses ocuparam Lhasa. Isso terminou em 1913, após a desintegração da dinastia Qing, introduzindo um período de independência de fato que muitos tibetanos citam como a base moderna para um Tibete soberano.

Os comunistas chineses tomaram o controle do Tibete novamente em 1951, talvez influenciados pela decisão do imperador Qing de assegurar as regiões de fronteira da China.

Hoje em dia, Gyantse parece outras cidades do Tibete central. Suas ruas empoeiradas são cheias de lojas e restaurantes administrados por migrantes da etnia han, a quem muitos tibetanos consideram a onda mais recente de invasores.

No entanto, autoridades chinesas preferem desviar a atenção do mundo de tudo isso, focando nos eventos em Gyantse em 1904, que se encaixam de forma conveniente em sua narrativa sobre a história tibetana e chinesa.

O governo da China insiste que o Tibete é parte "inalienável" da China, e se apropriou da invasão de 1904 como mais um capítulo na longa história de esforços imperialistas para desmantelar a China - o que o sistema educacional comunista chama de "cem anos de humilhação".

Nessa narrativa comunista sobre Gyantse, os tibetanos são substitutos dos chineses que foram vitimados por forças estrangeiras durante a dinastia Qing.

"O povo local resistiu aos britânicos ali", disse Dechu, mulher tibetana do gabinete de assuntos internacionais em Lhasa que acompanhou jornalistas estrangeiros num recente tour oficial. "Eles armaram uma grande resistência, por isso o local é chamado de Cidade dos Heróis".

No final da década de 1990, quando a Grã-Bretanha entregava Hong Kong à China, o governo chinês iniciou uma campanha de propaganda para salientar o tema.

Um filme melodramático sobre a invasão britânica de 1904, Vale do Rio Vermelho, foi lançado em 1997. Foi um sucesso, os chineses ainda deliram com a película. Muitos oficiais do Tibete e crianças em idade escolar também assistiram.

"Também vimos um musical, duas peças de teatro, outro filme longa-metragem e uma novela sobre o mesmo tema, tudo daquela época", disse Robert Barnett, estudioso sobre o Tibete da Columbia University, referindo-se ao final da década de 1990.

Mas ele disse não ter visto nenhuma referência na literatura tibetana a Gyantse como a Cidade dos Heróis antes disso.

Em 2004, no centenário da invasão britânica, oficiais organizaram atividades para celebrar a data, incluindo um musical, o Banho de Sangue no Vale do Rio Vermelho.

Há também o museu do forte. Uma placa em inglês antes o identificava como "o hall anti-britânico". Em 1999, ele exibia -esculturas baratas em relevo de cenas de batalhas, com legendas indecifráveis-, de acordo com Patrick French, historiador que descreveu sua visita aqui em seu livro Tibet, Tibet.

Mas o que realmente aconteceu em Gyantse em 1904?

A expedição de Younghusband foi enviada por Lord Curzon, o vice-rei da Índia, para forçar o 13º Dalai Lama a concordar com concessões comerciais. O Tibete também havia começado a ganhar importância no que ficou conhecido como o Grande Jogo, onde os impérios britânico e russo rivalizavam por influência na Ásia Central.

Oficiais britânicos tinham ouvido falar da presença russa na corte do Dalai Lama e queriam saber a verdade. O significou a levada de oficiais a Lhasa, o que nunca tinha acontecido antes.

Younghusband trabalhou junto ao brigadeiro-general J.R.L. Macdonald para liderar uma forca de Sikkim, na Índia Britânica, passando por Jelap, até o Tibete. Eles cruzaram a fronteira em 12 de dezembro de 1903, com mais de mil soldados, duas armas Maxim e quatro peças de artilharia, de acordo com a obra Trespassers on the Roof of the World, a história dos esforços ocidentais para abrir o Tibete, de Peter Hopkirk. Atrás deles, na neve, 10 mil peões, 7 mil mulas, 4 mil bois tibetanos e seis camelos.

Fora da vila de Guru, eles encontraram um acampamento de 1,500 tropas tibetanas. Ocorreram hostilidades. As tropas britânicas, que incluíam siques e gurcas, abriram fogo. Em quatro minutos, 700 tibetanos fracamente armados caíram, mortos ou feridos.

Mais tarde, num desfiladeiro a apenas 32km de Gyantse, os britânicos assassinaram mais 200 tibetanos.

Os tibetanos fizeram sua última resistência no forte de Gyantse, chamado de dzong, ou Jong, em tibetano. Depois de terem perdido o prazo para se renderem, em 5 de julho, os britânicos atacaram a partir do sudeste do forte.

Uma fila de soldados e oficiais escalou a rocha. "A inclinação era tão grande que um homem que escorregava quase necessariamente carregava também o homem que estava atrás", escreveu Perceval Landon, do The Times de Londres.

Os tibetanos atiraram munições e pedras. Mas um tenente e um soldado indiano conseguiram passar pela brecha, seguidos por outros. Os tibetanos fugiram, com a ajuda de duas cordas.

"A rendição do jong teria um efeito esmagador sobre o moral tibetano", escreveu Hopkirk. "Havia uma superstição antiga de que, se o grande forte caísse nas mãos de um invasor, seria inútil uma maior resistência".

Os britânicos chegaram a Lhasa logo depois. Dois meses mais tarde, na noite antes de deixar Lhasa para sempre, Younghusband foi até uma montanha e observou a cidade antiga, onde sentiu uma curiosa revelação divina que o inspirou a acabar com todos os atos de derramamento de sangue e fundar um movimento religioso, o Congresso Mundial de Fés.

"A euforia do momento cresceu, cresceu, até me eletrizar com uma intensidade enorme", ele escreveu em suas memórias, India and Tibet. "Nunca mais eu poderia pensar em algo mal, ou mesmo ter inimizade com qualquer homem. Toda a natureza e a humanidade foram banhadas num esplendor auspicioso; e a vida para o futuro parecia ser apenas alegria e luz".

The New York Times
Compartilhar
Publicidade