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Mundo

Especialistas: lei antiburca aumentará tensões com muçulmanos

13 jul 2010 - 14h48
(atualizado às 16h16)
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Lúcia Müzell
Direto de Paris

A aprovação pelos deputados franceses do projeto de lei que proibirá a "dissimulação do rosto" nos espaços públicos através do uso do chamado véu integral - como a burca e o niqab utilizados pelas muçulmanas - vai aumentar as tensões já fortes entre os fiéis ao Islã e o restante da população da França. A constatação é de dois especialistas ouvidos pelo Terra logo após a votação ocorrida na Assembleia Nacional, em Paris, que acatou o projeto por 335 votos contra um. O projeto é de autoria do partido do presidente Nicolas Sarkozy, o UMP.

Mulher usando o niqab caminha pelas ruas de Lyon
Mulher usando o niqab caminha pelas ruas de Lyon
Foto: AFP

"Não acredito que chegaremos a ter tumultos violentos, mas o fato é que essa lei vai ampliar o sentimento de comunitarismo dos muçulmanos, bem ao contrário do que pretende a lei. Ao querer forçar as muçulmanas a se portarem de outra forma, o Estado atua como agente autoritário, e não conciliador", constata Fabrice Dhume, especialista em racismo e discriminações do Instituto Social e Cooperativo de Pesquisas Aplicadas, com sede na Alsácia. "É um processo que vem se amplificando na França desde os atentados de 2001. Os muçulmanos são cada mais vistos sob suspeitas, ao invés de serem respeitados como são."

Para o pesquisador, o Estado francês está sendo autorizado a "se armar contra os civis" ao propor e aprovar medidas que cerquem as liberdades da população. "É muito perigoso o que está acontecendo. O Estado não está pronto para aceitar o choque de civilizações de que está sendo palco e procura meios para encerrá-lo à força", alega Dhume. Ele aposta em um aumento da resistência das muçulmanas face à obrigatoriedade de abandonar a roupa negra e acha que o governo poderá sofrer uma reação oposta: o número de mulheres que adotam a vestimenta poderá aumentar, apenas por contestação à lei.

A França é o país que abriga o maior número de muçulmanos além da África e do Oriente Médio: estima-se entre 5 e 6 milhões o número de fiéis ao Islã no país, o que faz da religião a segunda da França, atrás do catolicismo. Além disso, a cada ano 3,6 mil novos franceses se convertem ao Islã, fenômeno que já atingiu 60 mil convertidos nas últimas décadas. Apesar do alto número de fiéis, a estimativa de mulheres que usam burca ou niqab ainda é pequena: seriam em torno de 2 mil, conforme pesquisas encomendadas pelo governo.

A polêmica cerca o projeto de lei desde que começou a ser discutido, em 2008. A controvérsia é tamanha que os principais partidos da oposição, como o Partido Socialista, se abstiveram da votação de hoje. Nas últimas semanas, lideranças do partido anunciaram que concordavam com a natureza da lei, em nome dos direitos das mulheres, mas a sigla acabou recuando de concordar com o governo para não ser acusado de se alinhar à política sarkozista. A justificativa mais adotada pelos conservadores para defender o projeto é em relação à falta de segurança inspirada por pessoas que circulam com o rosto coberto, argumento com o qual os socialistas discordam. Ambos, no entanto, defendem juntos o respeito à laicidade - separação completa do Estado da religião e proibição de exibição de sinais religiosos em repartições públicas -, que é um dos pilares da República francesa.

Laicidade não justifica medida, diz analista

A defesa da laicidade, no entanto, não serve como argumento para Raphaël Liogier, diretor do Observatório das Religiões, ligado à respeitada instituição Sciences Po. O pesquisador especialista nesta questão defende que uma lei baseada nos princípios da República poderia, no máximo, prever a interdição da burca nas instituições públicas, como já acontece desde 2004 com o véu islâmico comum. Liogier acha que, ao aprovar uma lei proibindo completamente o uso da burqa e do niqab e ainda aplicando penas para quem descumpri-la, a França está se igualando aos países orientais que tanto critica em termos de direitos humanos.

"Que diferença existe entre obrigar alguém a usar um véu, como na Arábia Saudita, e obrigar alguém a retirá-lo, como a França quer fazer? É uma arbitrariedade sem paralelo no país que de diz berço dos Direitos Humanos", afirma o especialista. "Eu acho que os franceses não se dão conta, em razão de uma islamofobia crescente e epidêmica no país, de o quanto essa lei fere o princípio da igualdade republicana."

Para Liogier, o medo do desconhecido e das diferenças, representado pelas mulheres de burca passeando em plena avenida Champs-Elysées, não pode ser confundido com o respeito ao direito do outro de usar o que bem entender, em um país que se diz livre como a França. E mais: ao invés de propagar a igualdade, o governo francês está, sustenta o professor, acirrando as diferenças, ao não respeitá-las de uma forma justa.

Assim como Dhume, Liogier também crê na desobediência civil das mulheres adeptas da burca, em reação a uma lei considerada discriminatória pela população muçulmana. Outras, alerta o pesquisador, vão se confinar ainda mais em suas casas, consequência "de uma frustração por não serem reconhecidas como são em seu próprio país".

O projeto de lei agora deverá ser encaminhado para votação final no Senado, em setembro. Se aprovado, vai estipular multa de 150 euros e participação em um "estágio de cidadania" para quem for pego na rua usando burqa ou niqab - véu integra que deixa apenas os olhos à mostra, enquanto a burca cobre todo o rosto. Pessoas que forem acusadas e obrigar outras a utilizar o adereço arcarão com penas mais severas, de 30 mil euros, valor que pode ser dobrado em caso de ocorrência com menores de idade. Em caso de aprovação definitiva, a lei passará a vigorar a partir de abril de 2011.

Fonte: Especial para Terra
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