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Europa

Italianos se irritam com prêmio de corrida sagrada

9 jul 2010 - 16h32
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Nenhuma corrida de cavalos é mais sagrada na Itália do que o Palio, que remete a uma linhagem de 700 anos. Neste ano, porém, a contestada corrida sofreu uma reviravolta inesperadamente ecumênica.

Pela primeira vez, foi solicitado que um pintor muçulmano produzisse o Palio, ou estandarte, que o vencedor leva para casa no final da corrida, que é conduzida em dois dias por ano ao redor da praça em Siena com formato de concha.

Nem todos ficaram felizes com a escolha - embora isso não tenha ficado claro em 2 de julho, quando os moradores do distrito vencedor, ou "contrada", como são conhecidos os 17 bairros de Siena dentro dos muros da cidade, pularam a cerca ao redor da praça para agarrar o Palio, chorando e gritando de emoção.

O cavalo representando sua contrada havia vencido a corrida, e eles não pareciam especialmente preocupados com o fato de o estandarte ter gerado controvérsias na mídia local e internacional nas últimas semanas - sobre o que alguns chamaram de "profanação" da tradição local.

O artista Ali Hassoun, 46 anos, que nasceu no Líbano, mas se mudou em 1982 para a Itália, onde ganhou cidadania, pintou São Jorge como um cavaleiro usando um pano árabe preto e branco. Acima do rosto da Virgem Maria, em árabe, vem o título do 19o capítulo do Corão, que é dedicado à Virgem. Em sua coroa, um crescente árabe - o símbolo do Islã - aparece em um lado da cruz; uma estrela de Davi - símbolo do judaísmo - vem do outro lado.

"Meu Palio fala sobre a espiritualidade em geral, sobre religiões, sobre o encontro possível entre as três religiões monoteístas que nos permitem transcender nossa própria fé", explicou Hassoun numa entrevista por telefone.

A administração local, que solicitou o estandarte, escolheu Hassoun porque sua arte é tradicional, altamente simbólica e fácil de apreciar, segundo o prefeito de Siena, Maurizio Cenni, numa coletiva de imprensa algumas horas antes da corrida.

Tradicionalmente, o Palio de seda retangular homenageia a Virgem Maria. As leis de Palio, aprovadas pela administração local, dizem que o desenho exige a imagem de Maria na parte superior, a data da corrida, o escudo preto e branco de Siena, e possivelmente os símbolos das 10 contradas selecionadas para competir em cada corrida.

A tradição de ter o estandarte pintado por um artista de fora de Siena começou na década de 1970. Desde então, artistas nacionais e internacionais, como Renato Guttuso, da Itália, e Fernando Botero, da Colômbia, já fizeram as honras. Alguns dos estandartes foram criticados como seculares demais.

Quando o estandarte foi apresentado na prefeitura em 26 de junho, mais de seis meses depois que seu desenho foi solicitado pela administração local, o arcebispo de Siena, Colle Val d'Elsa e Montalcino, Monsenhor Antonio Buoncristiani, indicou que a representação tinha de lembrar o rosto da madona de Provenzano, a quem essa corrida de julho é dedicada.

Buoncristiani disse que apreciava totalmente o estandarte de Hassoun, mas pediu que, no futuro, seu gabinete pudesse visualizar o desenho preliminar para dar opiniões sobre os aspectos religiosos - já que o produto final é abençoado e exibido na igreja.

Em seguida os jornais começaram seu ataque, começando com o diário "La Padania", o órgão interno da Liga Norte. A manchete de um de seus artigos dizia: "As mãos do Islã no Palio de Siena".

O La Nazione, maior jornal diário da região, publicou uma carta de dois cidadãos pedindo que o arcebispo não permitisse que "uma imagem não-cristã" fosse abençoada na Igreja de Santa Maria de Provenzano, parte de uma tradição na noite anterior à corrida.

E o especialista em Vaticano Antonio Socci escreveu no jornal conservador Libero que "algo sério" estava acontecendo em Siena, "do ponto de vista espiritual e simbólico".

O gabinete do arcebispo respondeu ao acalorado debate com uma declaração reconhecendo que inserir símbolos das três religiões monoteístas na coroa da Virgem era "problemático", e que usar um trecho do Corão "gera automaticamente uma discussão". A declaração ainda dizia que, após a corrida, o arcebispo faria um comentário oficial sobre o assunto.

O norte da Itália, junto à Toscana historicamente esquerdista, não é inexperiente em tais confrontos religiosos, frequentemente orquestrados por partidos políticos. Durante anos, em Colle Val d'Elsa, ao norte de Siena, a construção de uma mesquita tem colocado a administração de esquerda contra um grupo de cidadãos que formaram um comitê antimesquita.

O comitê ajudou a eleger dois membros do conselho locais, que trouxeram pressão e conseguiram atrasar as obras. Em diversas ocasiões, cabeças de porcos foram encontradas no local da construção. A mesquita foi terminada, mas ainda espera por autorizações e mobília antes de ser usada para serviços religiosos.

Em maio, a Liga Norte, alegadamente honrando a memória da escritora toscana Oriana Fallaci - uma opositora veemente do Islã nos últimos dias de sua vida -, iniciou uma nova campanha contra a construção de uma mesquita em Greve in Chianti. Mas o prefeito de Greve, Alberto Bencista, afirmou que a liga estava exagerando. Uma associação local havia oferecido aos muçulmanos apenas uma sala para que se reunissem, segundo ele; não existiriam planos para construir uma mesquita. Ainda assim, a Liga Norte emitiu um referendo não-oficial contra a construção de mesquitas na pequena cidade.

O Palio é uma festa medieval dedicada à Virgem Maria com profundas raízes religiosas, especialmente em Siena, onde a Virgem é particularmente venerada. Ela permite brechas no decoro da igreja: os cavalos, por exemplo, são levados a igrejas - onde eles e os jóqueis são abençoados pelos padres dos distritos locais. O estandarte, ou "pano", como é conhecido em Siena, é um objeto de devoção não só durante os dois dias da corrida, 2 de julho e 16 de agosto, mas também ao longo do ano todo.

"Não ligamos de verdade para a pintura", afirmou Francesco Bartali, de 25 anos. "Para o povo das contradas, tudo o que importa é ganhar o estandarte. Mesmo que fosse um pano em branco, ainda assim choraríamos por ele".

The New York Times
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