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Estados Unidos

Prisão de suspeitos de espionagem choca vizinhos nos EUA

29 jun 2010 - 14h38
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Scott Shane e Charlie Savage
Do New York Times, em Washington

Eles viveram por mais de uma década em cidades e subúrbios norte-americanos, de Seattle a Nova York, onde pareciam ser casais comuns, com empregos convencionais, e conversavam com os vizinhos sobre problemas escolares e sobre filhos adolescentes e barulhentos, pelos quais se desculpavam.

O espião soviético Morris Cohen é transferido de prisão em 26 de outubro de 1966. Ele foi preso em 1961 em um acusado de participar de um esquema de espionagem no Reino Unido desde o fim dos anos 50
O espião soviético Morris Cohen é transferido de prisão em 26 de outubro de 1966. Ele foi preso em 1961 em um acusado de participar de um esquema de espionagem no Reino Unido desde o fim dos anos 50
Foto: Getty Images

Na segunda-feira, porém, promotores públicos federais norte-americanos acusaram 11 pessoas de serem parte de uma organização de espionagem russa, vivendo sob nomes falsos e completo sigilo, como parte de um projeto paciente para penetrar o que uma mensagem em código define como "os círculos decisórios" dos Estados Unidos.

Uma investigação do Serviço Federal de Investigações (FBI) iniciada pelo menos sete anos atrás culminou com a detenção, no domingo, de 10 pessoas, em Yonkers (Nova York), Boston e no norte da Virgínia. Os documentos referentes ao caso detalham o que as autoridades denominam "programa de penetração ilegal", um ambicioso projeto de longo prazo do serviço de espionagem russo, SVR, sucessor do KGB soviético, para plantar espiões russos nos Estados Unidos a fim de recolher informações e recrutar novos agentes.

Os supostos agentes foram instruídos a recolher informações sobre armas nucleares, a política dos Estados Unidos com relação ao Irã, a liderança da Agência Central de Inteligência (CIA), a situação política no Congresso e diversos outros tópicos, de acordo com os promotores. Os espiões russos fizeram contato com um antigo funcionário de primeiro escalão na área de segurança nacional norte-americana e com um pesquisador de armas nucleares, entre outros. Mas as acusações contra eles não incluem espionagem e não está claro que segredos os suspeitos de infiltração -entre os quais cinco casais - conseguiram recolher na realidade.Depois de anos de vigilância pelo FBI, os investigadores decidiram realizar as detenções no final de semana passada, logo depois de uma visita de tom otimista do presidente russo Dmitri Medvedev ao presidente Obama, disse um funcionário do governo norte-americano. Obama não ficou muito contente com o momento da detenção, mas os investigadores temiam que alguns dos alvos de sua operação estivessem a ponto de fugir, disse o funcionário.

As queixas criminais apresentadas em um tribunal federal de primeira instância na segunda-feira parecem saídas de um antiquado romance de espionagem da era da guerra fria: espiões que trocaram malas laranja idênticas ao passarem um pelo outro na escadaria de uma estação de trens; uma identidade obtida usando o nome de um canadense morto; passaportes falsificados enviados por transmissões condensadas de ondas curtas ou com o uso de tinta invisível; uma reserva de dinheiro enterrada por muitos anos em uma pradaria no interior do Estado de Nova York.

Mas a rede dos chamados "residentes ilegais" - espiões operando sob nomes falsos e desprovidos da cobertura diplomática usual - também empregava tecnologia da era cibernética, de acordo com a acusação. Eles incorporavam textos secretos codificados em imagens aparentemente corriqueiras postadas na Internet, e se comunicavam por meio de dois agentes equipados com laptops equipados com software especial para transmitir mensagens entre as máquinas sem que os dois precisassem conversar ou se aproximar muito.

Vizinhos do casal que usava o nome de Richard e Cynthia Murphy, em Montclair, Nova Jersey, ficaram atônitos quando uma equipe de agentes do FBI surgiu na noite de domingo para levar o casal, algemado. Uma pessoa que vive nas imediações os definiu como "o típico casal suburbano norte-americano", e acrescentou que haviam pedido aos vizinhos informações sobre as escolas locais. Outros estavam preocupados com as filhas do casal, em idade de escola primária, que foram levadas embora por amigos da família.Jessie Gugigi, 15, disse que não conseguia acreditar nas acusações, especialmente contra Cynthia Murphy, que era uma jardineira talentosa.

"Não é possível que fossem espiões", brincou Gugigi. "Olhe só o que ela fez com essas hortênsias". Especialistas nos serviços de informação russos expressaram espanto diante da escala, longevidade e dedicação do programa. Apontaram para o fato de que Vladimir Putin, ex-presidente e atual primeiro-ministro russo, que tem antecedentes no serviço de espionagem, trabalhou para restaurar o prestígio e as verbas dos serviços de informações russos depois do colapso da União Soviética, apesar da imagem sombria do KGB.

"A magnitude da operação, e o fato de que houvesse tantos agentes ilegais envolvidos, foram um choque para mim", disse Oleg Kalugin, antigo general do KGB que trabalhou como espião soviético nos Estados Unidos durante os anos 60 e 70, sob cobertura "legal" como diplomata e correspondente da rádio Moscou. "É um retorno aos velhos dias, mas nem mesmo nos piores períodos das guerra fria acredito que houvessem mais de 10 agentes ilegais operando simultaneamente nos Estados Unidos, e possivelmente menos".

Kalugin, que agora é cidadão dos Estados Unidos e vive perto de Washington, disse estar impressionado com a penetração do grupo de espiões pelo FBI. As queixas criminais estão repletas de detalhes vívidos coligidos em anos de vigilância clandestina, que incluía escutas telefônicas, interceptação de e-mails, escutas domiciliares nas casas dos supostos agentes russos e numerosas buscas realizadas de maneira sub-reptícia.

As autoridades também seguiram uma dupla de agentes, que viviam em Yonkers, em viagens a um país sul-americano não identificado, onde foram gravados em vídeo recebendo sacolas de dinheiro e entregando mensagens escritas em tinta invisível a seus controladores russos, em um parque público, de acordo com um documento de acusação.

Os promotores dizem que o programa de infiltração ilegal se estendia a outros países do mundo. Usando documentos fraudulentos, afirmam os documentos de acusação, os espiões ¿assumiam a identidade de cidadãos ou residentes legais dos países nos quais estavam estacionados, entre os quais os Estados Unidos".

"Os residentes ilegais ocasionalmente faziam cursos e obtinham diplomas em universidades de seus países alvos, obtinham empregos e aderiam a associações profissionais relevantes", a fim de aprofundar a cobertura de suas identidades secretas.

Uma mensagem dos comandantes em Moscou, escrita em inglês precário, oferece o mais revelador retrato da missão a eles atribuída:"Vocês foram enviados aos Estados Unidos em uma missão de serviço de longo prazo", afirma o texto. "Sua educação, contas bancárias, carros, casas etc. - tudo isso serve a um propósito: cumprir sua principal missão, ou seja, procurar e desenvolver conexões nos círculos decisórios e enviar relatórios de inteligência sigilosos ao Centro".

Não está claro sobre o que versavam os relatórios de inteligência enviados, ainda que um agente tenha descrito um encontro com um funcionário do governo norte-americano que trabalhava no programa nuclear dos Estados Unidos. Os acusados foram acusados de conspiração, mas não para cometer espionagem. As acusações se referem a conspirar para lavar dinheiro e por não se terem registrado junto às autoridades como agentes de um governo estrangeiro; esses crimes acarretam sentenças de prisão de entre cinco e 20 anos. Eles não foram acusados de obtenção ilícita de materiais confidenciais.

Também havia indicações de que os chefes dos serviços de espionagem russos temiam que seus agentes pudessem estar perdendo de vista o propósito oficial de sua estadia nos Estados Unidos. Agentes radicados em Boston submeteram ao seu comando um relatório de despesas que continha itens bastante vagos, tais como US$ 1.125 por "despesas de viagem para reunião" e US$ 3,6 mil para "educação". Em Montclair, os Murphy queriam adquirir uma casa em nome deles, mas o "Centro Moscou", ou "C", quartel-general de operações do SVR, recusou o pedido.

"Temos a impressão de que o C. vê nossa propriedade de uma casa como desvio quanto ao propósito original de nossa missão aqui", escreveu o casal de Nova Jersey em uma mensagem em código. "De nossa perspectiva, comprar uma casa representa apenas a progressão natural de nossa estadia prolongada por aqui. É uma maneira conveniente de resolver a questão da habitação, e de seguir os costumes locais de uma sociedade que atribui muito valor à propriedade de uma casa".

Boa parte das atividades do grupo de espiões - e da vigilância conduzida pelos investigadores do FBI - transcorria em Nova York e na região circundante. Os supostos agentes foram avistados em uma livraria na região sul de Manhattan, em um banco perto da entrada do Central Park e em um restaurante em Sunnyside, Queens. Trocas sigilosas de materiais foram conduzidas em locais movimentados como a estação da Long Island Railroad em Forest Hills, Queens, onde observadores do FBI testemunharam uma operação de um acusado que ainda não foi detido, Christopher Metzos, em 2004, de acordo com os documentos judiciais.

As detenções causaram espanto em bairros de todo o país, e equipes de investigadores do FBI viraram a noite de domingo vasculhando casas e carros, revistando as áreas vizinhas com a ajuda de lanternas e carregando grande volume de provas quando se foram.

Em Cambridge, Massachusetts, o casal que usava os nomes Donald Heathfield e Tracey Foley, aparentemente na casa dos 40 e pai de filhos adolescentes, vivia em um edifício de apartamentos em uma rua residencial na qual moram alguns alunos e professores da Universidade Harvard.

"Ela era muito cortês, uma mulher muito gentil", disse Montse Monne-Corbero, que vive no apartamento vizinho ao de Tracey Foley. Os filhos do casal removiam neve para ela no inverno, disse Monne-Corbero, mas também davam festas "muito barulhentas".

Lila Hexner, que vive no edifício ao lado, disse que Tracey Foley lhe havia contado trabalhar no ramo imobiliário. "Disse que nasceu no Canadá", conta Hexner.

Outro dos acusados, Mikhail Semenko, que segundo as autoridades usava seu nome real, é um homem bem vestido, com idade próxima aos 30 anos, que dirige um Mercedes S-500, de acordo com Tatyana Day, que vive na casa em frente à dele em Arlington, Virgínia. Ele tinha uma namorada morena, e o jovem casal conversava em russo e "vivia discretamente", diz.

Tradução: Paulo Migliacci ME

The New York Times
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