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Mundo

Somália: "terra de ninguém" percorre e divide Mogadíscio

28 jun 2010 - 15h51
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Jeffrey Gettleman
Do New York Times, em Mogadíscio, Somália

Há um lugar nessa cidade devastada pela guerra onde reinam silêncio e fertilidade improváveis, onde as árvores são velhas, as vinhas florescem, os ramos se entrelaçam por sobre as ruas, criando um toldo que de alguma maneira atenua o sol feroz do trópico. As folhas aqui parecem mais brilhantes, mais lisas, do que no restante da cidade. As folhas de grama são longas e espessas e servem como perfeito esconderijo.

Soldado somali patrulha cercanias do Parlamento antigo na capital Mogadíscio, em março de 2010
Soldado somali patrulha cercanias do Parlamento antigo na capital Mogadíscio, em março de 2010
Foto: The New York Times

É a linha de frente da guerra em Mogadíscio: uma terra de ninguém com talvez 60 m de largura, marcadas por ruínas de edifícios explodidos e por vegetação crescendo sem controle, e dividindo a cidade com um traço irregular que separa o enclave sitiado que vive sob o controle do governo dos milhares de combatentes islâmicos radicais posicionados no restante da capital. Parte do território em disputa cruza o bairro de Taleex, que no passado era um dos mais elegantes da cidade, um "distrito para pessoas de posses", nas palavras de um jovem somali, abrigando grandes casas em estilo italiano agora abandonadas e com as paredes marcadas por disparos.

Mas a beleza fantasmagórica dessa faixa de terreno é ilusória. Centenas de homens, dos dois lados da divisão, estão posicionados por trás de troncos de árvores e paredes parcialmente ruídas, contemplando o lado oposto pela mira de suas armas. O silêncio costuma ser destruído subitamente por disparos ensurdecedores de bazucas que fazem o chão tremer e levam os pássaros a abandonar as árvores, lançando gritos de aviso.

"Melhor tomar cuidado", diz Mohamed Mahamoud, comandante de uma unidade de soldados do governo. "Os soldados do Shahab estão a apenas 50 m de nós".

O bairro está deserto e mal conservado porque já há anos vem servindo como linha de frente para os combates e todos os seus moradores fugiram.

E a geografia tem uma história a contar: a despeito de milhões de dólares em assistência dos Estados Unidos e das Nações Unidas; a despeito do fato de que os insurgentes estão venenosamente divididos e são alvo de grande hostilidade por parte do restante da população; e a despeito de o presidente, xeque Sharif Sheikh Ahmed, ter chegado ao poder um ano atrás trazendo as melhores esperanças quanto a um novo líder desde o colapso do governo central da Somália em 1991, a linha de frente praticamente não se alterou.

Uma ofensiva governamental pela libertação de Mogadíscio está sendo aguardada há muito, mas ainda não ocorreu. O governo somali continua refugiado no palácio, no topo de uma montanha na periferia da capital, e luta pela sobrevivência entre os bairros arruinados lá embaixo, como em Taleex. Não fosse a presença de milhares de soldados de Uganda e Burundi, parte das forças de paz que operam em Mogadíscio, o palácio mesmo cairia, e provavelmente em prazo de apenas algumas horas.

Não há muitas notícias positivas vindas do palácio hoje em dia. Algumas semanas atrás, certos líderes vistos como muito próximos ao presidente renunciaram de forma abrupta, entre os quais Hassan Moallim Mohamoud, um confidente educado no Ocidente e altamente religioso que parecia acreditar genuinamente na liderança islâmica moderada de Sharif. Não muito tempo atrás, Hassan era figura proeminente na residência presidencial, servindo pratos de tâmaras e copos de suco de manga gelado aos visitantes e explicando de que maneira o governo de transição liderado por Sharif diferiria das 14 administrações de transição fracassadas que o precederam.

Os diplomatas ocidentais agora soam desanimados - bem como completamente frustrados. Quando um deles foi perguntado, recentemente, por que a ofensiva do governo ainda não havia começado, respondeu que "esses caras simplesmente não conseguem organizar coisa alguma. É assim simples".

A sede do Legislativo somali, que fica em uma rua especialmente marcada pelos combates, no centro de Mogadíscio, foi pintada pela primeira vez em anos, recentemente. Mas está completamente arruinada, por dentro. Os legisladores se viram apanhados em uma disputa interna especialmente feroz (que envolvia em parte decidir sobre o que fazer quanto ao primeiro-ministro, a quem o presidente recentemente tentou depor, mas depois recuou). Muitos dos legisladores agora estão se deixando influenciar pelo xeque Hassan Sheik Adan, um comerciante de gado analfabeto e astuto que foi eleito presidente do Legislativo no mês passado. Considerado como um dos homens mais poderosos do país e muito próximo à Etiópia, ele parece ter pouco interesse, ou experiência, em construir instituições democráticas.

Outro potencial revés é a partida iminente de Ahmedou Ould-Abdallah, o principal enviado das Nações Unidas à Somália. Por quase três anos, Ould-Abdallah vem sendo um dos mais apaixonados defensores da Somália, organizando uma sucessão de conferências e realizando frequentes visitas a Nova York a fim de manter o Conselho de Segurança atento ao país, bem como coordenando os esforços de todos os interessados na situação somali - um grupo disperso que inclui Estados Unidos, União Europeia, Etiópia, Liga Árabe e União Africana, para mencionar apenas alguns. Seu substituto será um diplomata tanzaniano pouco conhecido mas experiente em assuntos humanitários, o que serve como possível indicação de qual será o futuro foco dos esforços internacionais.

Por enquanto, todas as atenções continuam concentradas no campo de batalha.

E na linha de frente, em posição junto com as forças do governo, não é difícil perceber que faltam rádios, paramédicos, suprimentos, serviços de surprimento e transporte, oficiais e oficiais superiores. O comando das tropas está dividido entre dois homens grisalhos que são mencionados pela designação "comandante", e suas forças são formadas por centenas de combatentes de infantaria, entre os quais diversas crianças - o que revela ainda outro problema gritante (e não estou falando das crianças soldados): não existem escalões intermediários de liderança.

Na opinião de Ken Menkhaus, professor do Davidson College, na Carolina do Norte e especialista em assuntos somalis, o governo da Somália é como uma ampulheta, "com um monte de ministros no topo, um monte de soldados no fundo e nada no meio".

Os amigos da Somália estão tentando ajudar o país a preencher essa lacuna. Por exemplo, a União Europeia está treinando centenas de oficiais não comissionados em Uganda, em um esforço para preparar uma base de comando mais firme que reforce as fileiras de soldados rasos somalis.

Há alguns vislumbres de esperança, ou ao menos de normalidade. Há agentes de câmbio operando uma vez mais no aeroporto, o que pode representar sinal de que há visitantes e dólares chegando a Mogadíscio. Pela primeira vez em anos, uma loja duty free está aberta no aeroporto, vendendo iPods e óculos de sol.

Mas a realidade - tal como demonstrada pela persistente linha de frente, ocupada em muitos locais não por soldados formalmente treinados e sim por milícias aliadas ao governo e comandadas de maneira muita frouxa - é a de que o governo provisório somali continua a sobreviver com a ajuda de aparelhos.

E a impressão convencional, de que os Estados Unidos e outros países apoiarão o governo provisório até o limite de suas forças porque têm medo do que poderia surgir em seu lugar - uma Somália governada pelo Shahab, o principal grupo insurgente do país, abertamente alinhado à Al-Qaeda -, pode estar mudando.

Alguns analistas de questões somalis agora contemplam uma nova abordagem definida como "afastamento construtivo", que levaria a comunidade internacional a se distanciar das questões políticas somalis sem deixar de fornecer assistência humanitária ou conduzir ataques ocasionais de forças especiais contra terroristas conhecidos.

"Fazer menos é melhor do que fazer estragos", afirmou Bronwyn Bruton, em relatório especial para o Conselho de Relações Exteriores.

Bruton argumenta que os esforços externos para dar forma à política somali fracassaram de maneira miserável e que pode em breve chegar a hora de os somalis decidirem a questão em luta aberta.

"A menos que haja mudanças decisivas na política dos Estados Unidos, ONU e dos países da região", ela afirmou, "interferências externas pouco efetivas ameaçam prolongar e agravar o conflito, radicalizar ainda mais a população e aumentar a chance de que a Al-Qaeda e outros grupos extremistas venham a encontrar refúgio seguro na Somália".

The New York Times
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