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Ásia

Uzbequistão recebe cerca de 80 mil refugiados do Quirguistão

23 jun 2010 - 10h53
(atualizado às 10h55)
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Clifford J. Levy
Do New York Times, em Karasu, Uzbequistão

"Tenho três filhos - nove, sete e quatro anos - e eles estão em choque", afirmou uma mulher chamada Ursanoy Mamadaliyeva na segunda-feira. "O mais novo me disse: 'Mamãe, se voltarmos ao Quirguistão, então você vai ter que comprar uma arma automática pra mim.'"

Homem observa os destroços de sua casa em área de maioria uzbeque na cidade de Osh, no Quirguistão
Homem observa os destroços de sua casa em área de maioria uzbeque na cidade de Osh, no Quirguistão
Foto: The New York Times

"Você acha isso normal?", perguntou. "A criança tem quatro anos. E diz, 'Eu também vou atirar'. Isso é normal?"

Lágrimas escorriam de seus olhos. "Não quero que meus filhos vivam assim", disse ela.

Quase 80 mil uzbeques étnicos como Mamadaliyeva, 30 anos, fugiram dos conflitos étnicos deste mês no Quiguistão e cruzaram a fronteira para esta parte do Uzbequistão, frequentemente chegando com nada além de lembranças horríveis, após seus lares terem sido pilhados e incendiados.

O êxodo em massa criou uma das mais severas crises de refugiados na antiga União Soviética desde o colapso do comunismo há quase duas décadas.

É incomum o fato de mais de 90% das pessoas nos acampamentos do Uzbequistão serem mulheres e crianças, com o restante sendo, sobretudo, formado de homens idosos, afirmam autoridades. Quase metade dos refugiados são crianças. Cinco por cento são bebês e duas mil mulheres estão amamentando, segundo o UNICEF.

Homens saudáveis da etnia uzbeque ficaram para trás no Quirguistão defendendo suas comunidades arruinadas, e muitos disseram a suas famílias para permanecer no Uzbequistão, porque é perigoso demais retornar. Os alertas parecem ter sido confirmados pela nova onda de violência na segunda-feira no sul do Quirguistão, com dois uzbeques mortos em confrontos com forças de segurança quirguiz.

Os campos de refugiados no Uzbequistão estão cheios de mulheres ansiosas que querem desesperadamente voltar para casa, mas, temendo mais derramamento de sangue, não vão embora. As crianças também mostram sinais de trauma.

O acampamento em Karasu criou uma grande tenda de atividades para os jovens. Na segunda-feira, uma pilha de seus desenhos estava exposta. Uma criança usou lápis de cor para desenhar um tanque que atacava uma multidão de civis em fuga, um cadáver na rua estava rabiscado de vermelho. Outra desenhou sua casa em chamas e uma figura de palitos chorando ao lado.

Algumas mulheres perderam parentes ou amigos próximos e estão dominadas pela dor, ainda mais lancinante por estarem tão longe de casa.

"Meu filho morreu, ele tinha só 23 anos, atiraram nele. E eu fugi porque não conseguia ajudá-lo", disse Zukhra Korchkarova, 48 anos. "Eles o enterraram e não posso ver seu túmulo."

Apesar dos refugiados uzbeques serem praticamente todos civis do Quirguistão, o fraco governo interino quirguiz não realizou nenhuma campanha significativa para ajudá-los ou encorajá-los a voltar. Ele parece muito mais preocupado em retomar o controle do sul do Quirguistão.

Muitos uzbeques afirmam que foram atacados em suas comunidades por militares quirguizes, incluindo soldados com armas automáticas em veículos blindados de transporte de tropas. Membros do governo provisório quirguiz, que nega o envolvimento de qualquer soldado, em geral culpam o presidente quirguiz afastado, Kurmanbek S. Bakiyev, por fomentar a violência. Ele nega as acusações.

Os acampamentos, geridos pelo governo uzbeque com a assistência de grupos humanitários internacionais, parecem ser bem organizados e limpos. Mas grupos humanitários se preocupam que, enquanto a crise se arrasta, o governo uzbeque fique cada vez mais limitado financeira e logisticamente. Como os refugiados chegaram em junho, as autoridades puderam usar as escolas em recesso para abrigá-los.

Uzbeques étnicos formam apenas cerca de 15% da população do Quirguistão, mas estão principalmente concentrados no sul do país, próximo ao Uzbequistão. Quando os combates começaram, muitos uzbeques viram o Uzbequistão como um refúgio natural.

Milhares de pessoas deixaram os acampamentos para retornar ao Quirguistão, mas a maioria parece relutante em fazer isso. Mulheres dizem que avaliam todos os dias os riscos de voltar em contraposição à angústia de estarem afastadas de seus maridos.

"Todo mundo está muito assustado", disse Raimah Nizamova, 48 anos, professora do maternal que tem dois netos no acampamento. "Anteontem, recebemos um aviso de lá que dizia: 'Não retornem, eles estão atirando de novo, estão assassinando de novo.' Estamos todos muito tensos."

Zulfia Satvoldiyeva, 34 anos, com três filhos no acampamento, disse que muitos estão sem esperança porque seus lares e negócios foram destruídos. "A ideia de retornar é horrível para muita gente", disse ela. "Por que o governo do Quirguistão não diz, 'por favor, retornem, nós vamos ajudar vocês, cuidaremos de vocês, vamos garantir sua segurança'? Porque não vão fazer isso."

Savita Naqvi, porta-voz do UNICEF no Uzbequistão, afirma ser extraordinário uma crise de refugiados na qual a vasta maioria deles é de mulheres e crianças. Mas, segundo ela, essa composição pode indicar que a emergência tem chances de ser solucionada rapidamente se o Quirguistão ficar mais estável.

"Famílias foram separadas, então existe muita motivação para voltar", disse ela.

Na tenda de atividades, Mukhlisa Mashirapova, 15 anos, disse que muitas crianças estavam abaladas por seus pais estarem em perigo no Quirguistão. Ela disse que quer partir, mas não pode.

"Conversei com meu pai e ele me disse: 'Não venha para cá, porque as pessoas estão passando fome por aqui'", disse ela. "Muitas crianças choram no acampamento, elas viram muita coisa em primeira mão. Para a maioria delas, os pais ainda estão do outro lado."

Sua mãe, Mutabar Kadiraliyeva, 49 anos, professora de artes, disse que não está impressionada com os desenhos tão sombrios. Ela afirma que conseguiu persuadir as crianças a desenhar imagens mais felizes.

"Elas veem todo esse horror, e você sabe como as crianças são, elas desenham o que viram", disse. "No primeiro dia em que chegaram e viram os soldados uzbeques posicionados em frente ao acampamento, elas saíram correndo e se esconderam nas tendas. Elas não compreendem a diferença, que os soldados estão aqui para protegê-las."

Tradução: Amy Traduções

The New York Times
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