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Estados Unidos

Casal luta para provar que união de 17 anos não é fraude

15 jun 2010 - 16h10
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Nina Bernstein
Do New York Times,em Nova York

No minúsculo e atulhado apartamento em que vivem em Astoria, Queens, depois de quase 17 anos de casamento, Shari Feldman e Inderjit Singh se parecem um pouco com um par de sapatos velhos - desgastados pelo uso mas acostumados aos defeitos um do outro.

Shari Feldman e Indirjit Singh posam para foto no apartamento do casal no Queens, em Nova York
Shari Feldman e Indirjit Singh posam para foto no apartamento do casal no Queens, em Nova York
Foto: The New York Times

"Nossa certidão de casamento é tão velha que amarelou", brincou Feldman, 51 anos, em voz alta o bastante para superar o ruído da trilha sonora de um filme de Bollywood vindo dos alto-falantes do televisor. "Querido, dá pra abaixar o volume?"

No entanto, três petições e cinco entrevistas não bastaram para convencer as autoridades de imigração americanas de que a união do casal não é apenas um truque para permitir que Singh, 45 anos, motorista de um serviço de limusines, obtenha o green card.

No ano passado, depois de contratarem novo advogado para tentar de novo, o Serviço de Cidadania e Imigração se recusou a marcar nova entrevista, mencionando as respostas contraditórias que deram a perguntas sobre a roupa que Singh vestia quando se casaram, em 1993, e se ele havia levado Feldman para jantar fora em seu último aniversário.

O casal talvez seja um caso extremo, mas não são únicos. As autoridades de imigração reforçaram as medidas de repressão a casamentos de conveniência, em meio à centenas de milhares de petições recebidas de cidadãos americanos que solicitam green cards para cônjuges, e com isso o número de casais casados há muito tempo mas deixados no limbo pelas autoridades se multiplicou.

As petições apresentadas por 20.507 cidadãos foram negadas no último ano fiscal, o que equivale a 7,2% do total; das recusas, apenas 5º6 foram por fraude; as restantes incluíam motivos como discrepâncias nas respostas ou ausência em uma entrevista marcada.

Um casal da Flórida passou dois anos lutando pelo reconhecimento de seu casamento, realizado sete anos atrás, e no final tiveram de provar seu amor diante de um tribunal de imigração para impedir que a mulher fosse deportada de volta ao Peru; uma freira testemunhou em benefício dos dois, que trabalham em um mercado de rua em Tampa, Flórida.

Em um caso acontecido no Oregon, foram necessários quatro anos e dois processos federais a fim de forçar a agência a aceitar o casamento entre uma mulher norte-americana e um marido argelino, a despeito de eles terem dois filhos. Na coleta de documentação sobre o processo, surgiu a informação de que o governo detinha centenas de páginas de relatórios sobre a mulher e as pessoas com quem se relacionava.

Os funcionários da imigração afirmam que não têm autorização para discutir casos individuais, mas reconhecem que acontecem erros ocasionais. Apontam, porém, que cabe aos casais provar e que a duração de um casamento pode ser indicador tanto positivo quanto adverso.

"Pessoas casadas há oito ou 10 anos e que nada sabem uma sobre a outra?", questionou Barbara Felska, veterana agente de imigração no escritório de Stokes, Nova York, cujo trabalho é interrogar os cônjuges separadamente e depois cotejar as respostas para determinar se o relacionamento entre eles é real. "Um cônjuge que não sabe que doenças o outro tem, ou se ele sofre de pressão alta?"

O problema de Feldman e Singh reflete o que estudiosos de questões jurídicos definem como tensão crescente nos valores nacionais norte-americanos, entre a proteção do casamento contra a intrusão governamental e a regulamentação do casamento por meio das leis de imigração.

Feldman e Singh apelaram das decisões adversas, mas se preocupam com a possibilidade de que ele venha a ser deportado antes que o apelo seja decidido.

"Não consigo viver sem ele", disse Feldman, uma mulher baixinha e bem humorada que diz que o marido a ajuda a enfrentar o diabetes, asmas e uma série deficiência visual. Ela conta que Singh cuidou de sua convalescença depois de diversas operações nos olhos que ajudaram a restaurar sua visão em 2008, e que ao enxergá-lo bem pela primeira vez disse: "Querido, é você que tem rugas, não eu".

O cirurgião responsável pelo tratamento. Dr. Gary Hirschfield, confirmou que Singh apoiou a mulher. "Posso afirmar com a maior certeza que ele esteve envolvido e interessado, e presente e participando do processo pós-operatório", disse o médico.

Singh entrou nos Estados Unidos ilegalmente em 1992, mas ainda pode receber um green card por matrimônio ¿o que representa o método mais rápido de obter cidadania- sob as leis de imigração mais tolerantes que se aplicam aos imigrantes que se casaram com cidadãos norte-americanos antes de maio de 2001. Ele calcula que já tenha gasto US$ 20 mil em honorários judiciais relacionados à sua situação de imigração, dinheiro em sua maioria emprestado por um tio. Ele não visitou a mãe na Índia quando seu pai morreu, dois anos atrás, por medo de não ser autorizado a voltar para a mulher.

"Às vezes sinto vontade de pular da janela e pôr fim a tudo", ele diz, em inglês imperfeito, enquanto prepara o chá ao lado da imagem de um profeta sikh e de um relógio com a efígie de Jesus que comprou para a mulher em uma loja de US$ 0,99. "Mas sei que ela precisa de mim".

De uma maçaroca de documentos e álbuns de fotografia que estão sobre a cama de casal, eles extraem o contrato conjunto de locação do apartamento, declarações de impostos e extratos bancários. Mas a agência de imigração rejeitou esses documentos em sua mais recente rejeição, em carta datada de 10 de agosto de 2009, apontando, por exemplo, que a conta bancária conjunta aberta por eles em 1997 tinha saldos baixos, US$ 8,11 e US$ 62,15, em dois extratos datados de 2008.

A carta concluía que os documentos não bastam para reverter a discrepância nas respostas que o casal apresentou em sua entrevista de 2006 ¿ela disse, por exemplo, que o aluguel do apartamento era de US$ 677,17, enquanto ele respondeu "cerca de US$ 700".

"Se eu de fato tivesse me casado com ele de forma fraudulenta para conseguir um green card para ele, teria continuado a pedir o documento vezes sem conta?", escreveu Feldman em uma carta de protesto. "Se meu marido tivesse se casado comigo apenas para obter um green card, estou certo de que teria me deixado anos atrás e encontrado uma mulher que se enquadre melhor ao ideal da imigração quanto ao que um casal deve ser".

O casal diz que o mais simples seria que agentes da imigração visitassem seu apartamento a fim de descobrir como conseguem sobreviver com o dinheiro que ela recebe por deficiência física e o salário muito modesto que ele ganha.

Em outros Estados, o serviço de imigração costuma realizar inspeções domiciliares, prática que, na opinião de muitos, viola os direitos de privacidade de um casal sem garantir decisões melhores. Mas em Nova York as chamadas "verificações de cama" são consideradas ilegítimas pela unidade de imigração, que opera sob as restrições de uma decisão judicial federal de 1976 sobre um caso em que agentes da imigração foram acusados de coagir cidadãos a retirar suas petições de green card.

Nos termos do acordo judicial que encerrou o processo, se a primeira entrevista de um casal desperta suspeitas de fraude, a agência precisa conceder aos solicitantes a oportunidade de contratar um advogado antes da segunda entrevista, e permitir que eles expliquem as discrepâncias nas respostas, bem como gravar as entrevistas com vistas a possíveis apelos.

Na mais recente petição do casal, o advogado solicitou que os agentes de imigração encarregados fossem especialmente pacientes, alegando que Singh tem problemas de memória porque levou uma coronhada na cabeça durante assaltos a uma loja de conveniência onde trabalhava.

O serviço de imigração negou a solicitação de uma nova entrevista e em lugar disso reiterou uma longa lista das respostas incompatíveis apresentadas pelo casal em 2006, a começar de relatos sobre seu primeiro encontro, que aconteceu em um parque no verão de 1993. "Era uma noite de música", respondeu Feldman, enquanto Singh disse que não havia sido em um evento especial - talvez, ela disse mais tarde, porque o show musical já tivesse acabado quando os dois começaram a conversar. Feldman contou que pediu o telefone dele mas não quis lhe dar o seu; ele disse que eles trocaram números de telefone.

Na cerimônia de casamento, segundo ela, ele estava de paletó; ele se lembra de ter usado um casaco de couro. Singh não sabia por que a mãe de Feldman não compareceu, enquanto ela disse que era porque sua mãe vivia longe, em Nova Jersey.

Pode-se entender por que os agentes suspeitaram. Nova Jersey não fica longe de Nova York. Por que Singh parece tão distante de sua sogra, e tão inseguro quanto aos detalhes sobre sua cunhada? (Ele arriscou responder que ela mora em "Oahu ou Ohio")

Um telefonema para a irmã, Lauren Stuart, esclareceu um pouco a questão. "Não o suporto", disse Stuart, que morou no Ohio e Havaí mas agora reside no Colorado. "Estão casados, sei disso. Mas ele provavelmente respondeu incorretamente às perguntas porque é um idiota".

Feldman relutou em falar sobre seus parentes mas diz que a família nunca perdoou Singh por beber demais em uma reunião da antiga turma de escola da mulher, em 1994, e ter saído dançando sozinho.

"Ninguém o vê como eu", diz Feldman. "Conheço tudo que ele tem de bom e ruim. Ele é um homem gentil, e provavelmente a única pessoa que realmente pensa sempre em mim".

Mas se o governo não os separar, pelo menos eles poderão rir por último. "Quando observamos as pessoas em torno de nós, todos os casamentos estão se desfazendo", disse Feldman, cuja mãe se casou quatro vezes. "Nosso casamento é tão sólido que para nós isso parece incompreensível".

The New York Times
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