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Ásia

Desertores expõem miséria da Coreia do Norte

11 jun 2010 - 17h50
(atualizado às 18h48)
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Sharon LaFraniere
Do New York Times, em Yanji, China

O operário de construção norte-coreano vivia na penúria. A empresa estatal da qual é funcionário não o pagava há tanto tempo que ele havia esquecido qual é seu salário. Na verdade, subornou o chefe para que o deixasse funcionar como trabalhador fantasma, de modo a poder deixar o canteiro de obras. Dessa maneira, ele e a mulher conseguiam ganhar a vida a duras penas, vendendo saquinhos de sabão em pó no mercado negro.

O rio Tumen separa parte da China da Coreia do Norte na fronteira entre os dois países
O rio Tumen separa parte da China da Coreia do Norte na fronteira entre os dois países
Foto: The New York Times

Parecia uma vida difícil de piorar. Mas então, certa tarde de domingo, a irmã dele entrou correndo no apartamento do operário, em Chongjin, com notícias chocantes: o governo norte-coreano havia decidido desvalorizar dramaticamente a moeda do país. As economias que a família havia acumulado ao longo de toda uma vida, em valor de cerca de US$ 1,56 mil, passaram a valer o equivalente a US$ 3.

No mês passado, o operário estava refugiado em Yanji, uma movimentada cidade no norte da China, e lastimava os anos de sacrifícios inúteis. Legumes para seus pais, o remédio contra a asma de sua mulher, o abrigo de moletom azul que sua filha queria ¿coisas que ele deixou de comprar por acreditar que, mesmo na Coreia do Norte, valia a pena poupar para o futuro."Ah", ele exclamou, xingando em meio às lágrimas, "como trabalhamos para economizar aquele dinheiro! Pensar sobre isso me deixa louco da vida".

Os norte-coreanos estão acostumados a batalhar e a decepções. Mas a desvalorização cambial de 30 de novembro, aparentemente em tentativa de sustentar uma economia estatal em colapso, representou para alguns o pior desastre desde a fome que matou centenas de milhares de pessoas na metade dos anos 90.

Entrevistas no mês passado com oito norte-coreanos que deixaram recentemente o país - um presidiário fugitivo, comerciantes ilegais, pessoas em exílio temporário para procurar emprego na China, a mulher de um dirigente do Partido dos Trabalhadores (a agremiação governista da Coreia do Norte) que estava em visita ao país vizinho - retratam o desespero no país de 24 milhões de habitantes e o crescente ressentimento contra o errático líder Kim Jong-il.

O que parece estar faltando, ao menos por enquanto, é instabilidade social. As dificuldades generalizadas, a ira popular diante da desvalorização cambial e a crescente incerteza política surgida como resultado dos esforços de Kim para definir seu terceiro filho como sucessor não resultaram em resistência perceptível contra o governo. Pelo menos duas das pessoas entrevistadas na China repetiram a linha da propaganda oficial, que retrata a Coreia do Norte como vítima de inimigos ferrenhos, e a pobreza do país como resultado de um complô ocidental que ameaça a sobrevivência da nação, inspirado por Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão.

A acusação sul-coreana de que a Coreia do Norte afundou uma fragata do país, o Choenan, em março, é apenas uma parte do complô, disse a mulher do dirigente partidário.

"É por isso que estamos sempre à espera de uma invasão", disse uma antiga professor primário. "Meu filho sempre espera que a guerra venha, porque a vida é difícil demais e vamos todos provavelmente morrer de fome".

Eles e outros norte-coreanos se pronunciaram sob a condição de que seus nomes não fossem mencionados, em conversas em larga medida organizadas por igrejas clandestinas que operam na China, logo ao norte da fronteira com a Coreia do Norte. Se forem identificados como visitantes ou moradores ilegais na China, podem ser deportados e aprisionados, e o mesmo se aplica aos seus parentes.

Cerca de metade dos entrevistados disseram que planejam voltar à Coreia do Norte. Os demais esperam conseguir desertar para a Coreia do Sul.

Os relatos que fizeram, apresentados separadamente, coincidem quanto a muitos detalhes. Eles também reforçaram as descrições de economistas e analistas políticos sobre um país em séria crise.

Uma economia em contração

Mencionando fotos aéreas que revelam chaminés de fábricas das quais não sai fumaça, economistas afirmam que cerca de 75% das fábricas da Coreia do Norte estão ociosas. A economia está em contração desde 2006, quando Kim Jong-il se retirou de negociações internacionais cujo objetivo era pôr fim ao programa de armas nucleares da Coreia do Norte. A Coreia do Sul suspendeu praticamente todo o comércio, privando o norte de US$ 333 milhões ao ano em vendas de frutos do mar e outras exportações.

Quando a península coreana foi divida, em 1945, a Coreia do Sul era mais pobre que o país vizinho. Agora, o trabalhador médio sul-coreano ganha 15 vezes mais que a média da Coreia do Norte, com base em dados ajustados pelo custo de vida. O número de desertores que conseguem chegar à Coreia do Sul, passando pela China, vem crescendo firmemente há uma década, e chegou a três mil no ano passado.

A mortalidade infantil e neonatal subiu em pelo menos 30%, entre 1993 e 2008, e a expectativa de vida caiu em três anos, para 69 anos, no mesmo período, de acordo com dados do recenseamento norte-coreano e do Fundo das Nações Unidas para a População.

O Programa de Alimentos das Nações Unidas diz que um terço das crianças norte-coreanas de menos de cinco anos sofrem de desnutrição. Mais de 25% dos habitantes precisam de assistência alimentar, segundo a agência, mas menos de 6% dos norte-coreanos a receberão este ano, em parte porque os doadores relutam em enviar assistência a um país que insiste em desenvolver armas nucleares.

A desvalorização cambial só agravou o sofrimento. O objetivo era desviar os proventos da vasta economia paralela da Coreia do Norte - os mercados de rua - para as empresas estatais, que enfrentam séria deficiências de caixa.

Os mercados são a única fonte de renda para muitos norte-coreanos, mas eles contrariam o credo de socialismo econômico imposto pelo governo.

Teoricamente, todos os cidadãos, exceto os idosos, os menores de idade e as mães de filhos pequenos, trabalham para o Estado. Mas as empresas estatais vêm definhando há 30 anos, e os norte-coreanos fazem todo o possível para evitar trabalhar nelas.

Os agricultores plantam hortas pessoais, enquanto as fazendas coletivas estão tomadas por ervas daninhas. Os trabalhadores urbanos evitam as tarefas estatais a fim de mercadejar toda espécie de produto, de metais surrupiados em fábricas fechadas a televisores contrabandeados da China.

"Se você não comercia, morre", diz a antiga professora, uma mulher de 51 anos, rosto redondo e cabelo preso em rabo de cavalo. Ela deixou de ser uma obediente funcionária do Estado e se tornou uma comerciante ilegal, mas nem assim escapou às dificuldades.

Famintos demais para estudar

Ela lecionou no primeiro grau durante 30 anos, em Chongjin, a terceira maior cidade da Coreia do Norte, que abriga cerca de 500 mil habitantes. O trabalho em tempo integral que ela fazia no passado, em 2004 passou a envolver apenas o período matutino; as escolas fecham ao meio-dia. Pelo menos 15 de seus 50 alunos deixaram a escola ou assistiam apenas à primeira hora de aulas, porque estavam famintos demais para estudar.

"É muito difícil ensinar uma criança faminta", ela disse. "Para elas, até mesmo ficar sentada nas carteiras é difícil".

Os professores também passavam fome. O salário mensal que ela ganhava mal bastava para comprar um quilo de arroz. Ela mesma diplomada em uma universidade, a professora decidiu tirar sua filha da escola no terceiro ano, em 1998, e a enviou a uma vizinha que poderia ensiná-la a costurar.

A professora deixou o emprego em 2004 e começou a vender macarrão diante do principal mercado de Chongjin, um conjunto de barracas e de toldos plásticos que ocupa cerca de meio quarteirão, onde camelôs se reúnem para vender principalmente produtos chineses, entre os quais pasta de dente, máquinas de costura e DVDs de novelas sul-coreanas proibidas.

Mas vender macarrão não dava muito lucro, e ela decidiu tentar um comércio mais arriscado, de mercadorias controladas pelo Estado: pinhas e frutas usadas em um chá popular. O esquema desabou em outubro. Depois que ela e seus sócios haviam recolhido 17 sacos de ingredientes em uma aldeia, um guarda em um posto de controle confiscou todo o material, em lugar de aceitar um suborno e deixá-los passar. A ex-professora ficou com US$ 300 em dívidas.

Como ela, o operário da construção, um homem magérrimo de 45 anos de idade e bom nas contas, calculou que a iniciativa privada era a única salvação para sua família. Mas, por ser homem, era difícil para ele deixar o emprego oficial.

No papel, conta, ele é funcionário de uma construtora estatal em Chongjin. Mas a empresa não conta com suprimentos suficientes, ou caixa para pagar os funcionários. Por isso, como mais de um terço dos funcionários, disse o trabalhador, ele paga cerca de US$ 5 ao mês para bater o ponto como funcionário fantasma nos registros da empresa - e trabalhar em outro lugar.

Pagamentos como esse, muito comuns nas empresas estatais de menor porte, são supostamente a única coisa que as mantêm solventes, disse uma mulher de 62 anos que trabalha como comerciante em Chongjin. Até mesmo uma empresa importante como uma refinaria de metal de Chongjin deixou de pagar salários em 2007, contam essa mulher e outros entrevistados, ainda que os funcionários da companhia recebam rações para 10 dias de alimentação por mês.

"Como as empresas sobreviveriam se não recebessem dinheiro de seus funcionários?", ela questionou, sem ironia.

Recentemente, a construtora da qual o operário é funcionário começou a trabalhar mais. O governo decidiu recapear a única estrada asfaltada em Chongjin e construir um hospital e uma universidade para inauguração em 2012, o centenário de nascimento de Kim Il-sung, pai de Kim Jong-il e fundador do Estado norte-coreano.

Mas o surto de novas obras teve seu custo: cada família de funcionário foi ordenada a entregar 17 sacas de pedregulhos ao mês para o comitê local do partido. O operário da construção civil teve de pedir aos seus idosos pais que vasculhassem leitos de rios e campos em busca de pedras, que a família quebrava com instrumentos manuais para transformar em pedregulhos.

Sem salário do Estado, ele precisa se virar para ganhar dinheiro. A cada mês de outubro, vende lulas que pesca com um barco no qual navega pelas traiçoeiras águas da costa local. Nos demais meses, ele roda cerca de 30 quilômetros ao dia em sua bicicleta, em busca de produtos para vender, geralmente sabão em pó comprador de uma fábrica, que a mulher dele revende com 12% de ágio, sob um toldo púrpura instalado do lado de fora do principal mercado da cidade.

O governo tenta periodicamente reprimir a atuação dos mercados, por meio de regulamentação de preços, horários de financiamento, tipos de produtos autorizados para venda, idade e sexo dos comerciantes e até mesmo se eles transportam os produtos nas costas ou em bicicletas.

Poupança liquidada

Em um comunicado do Comitê Central em 2007, Kim Jong-il se queixava de que os mercados se haviam tornado "o nascedouro de toda espécie de práticas não socialistas". A desvalorização cambial de 30 de novembro os devastou.

O Estado decretou que um novo won, mais valioso, substituiria o velho won, mas que as famílias só estariam autorizadas a converter 100 mil won, o equivalente a US$ 35 pela taxa de câmbio do mercado negro. A medida simplesmente zerou o valor do dinheiro acumulado em mãos privadas como poupança.

Para atenuar o golpe, dizem os trabalhadores, o governo prometeu que seus salários estatais seriam restaurados caso retomassem seus empregos oficiais. Na verdade, dizem o trabalhador da construção civil e outros, eles receberam apenas um mês de salário, em janeiro, e depois os salários voltaram a desaparecer.

Algumas das pessoas dotadas de boas conexões políticas conseguiram evitar o pior. Uma mulher de Hamhung, a segunda maior cidade da Coreia do Norte, disse que o diretor do banco local permitiu que seus parentes convertessem três milhões de won, ou 30 vezes mais que o limite oficial.

A mulher do funcionário do partido, que ostenta cabelos levemente cacheados e uma bolsa que imita um design de grife, se vangloriou da casa de seis aposentos e dos dois televisores que sua família tem. Logo em seguida, elogiou a desvalorização e a definiu como punição merecida àqueles que trapaceiam o Estado, ainda que tenha reconhecido que isso levou o país ao caos e revelado que um importante funcionário da área financeira foi executado por seus erros ao implementar a política.

"Muita gente ruim enriqueceu comerciando ilegalmente com a China, enquanto as boas pessoas das empresas estatais não tinham dinheiro bastante", disse. "Por isso, quem tinha dinheiro teve de dá-lo para quem não tinha".

A ex-professora perdeu tudo. Depois que seus credores levaram todo o dinheiro que tinha, conta, certa noite ela atravessou a pé o rio Tumem, que estava congelado, e entrou na China em busca de ajuda de seus parentes que vivem no país. Faminta e aterrorizada, ela diz que saiu batendo às portas de desconhecidos até que um deles a ajudou a fazer contato com a família.

Agora segura na casa dos parentes, diz, ela se admira com os luxos de que desfrutam, por exemplo comer pepinos no inverno. Mas o fato de que tenha deixado para trás seu filho e filha, os dois com mais de 20 anos, lhe causou tamanha sensação de culpa que ela ocasionalmente não consegue engolir a comida que encontra diante dela. "Não sei seu os meus filhos conseguiram obter algum dinheiro, ou se terminaram por morrer de fome", diz, com os olhos marejados de lágrimas.

Para o operário da construção civil, a notícia dada pela irmã quanto à desvalorização iminente deflagrou uma furiosa corrida para salvar as economias da família. Ele esvaziou a gaveta no armário da sala na qual as economias estavam guardadas e dividiu o dinheiro com a mulher e a filha, instruindo que "comprem tudo que puderem, o mais rápido possível".

Os três foram com toda pressa ao mercado de Chongjin, em suas bicicletas. "Era como um campo de batalha", conta.

Milhares de pessoas estavam batalhando ferozmente para transformar o dinheiro que em breve perderia o valor em algo mais tangível. Certos preços subiram em 10 mil %, ele conta, antes que os comerciantes fechassem suas barracas, ao compreenderem que, em breve, seus lucros também seriam inúteis.

A família voltou para casa com 30 kg de arroz, uma cabeça de porco e 100 kg de feijão. A filha do operário havia conseguido comprar uma pequena mesa de corte e um par de calças usadas. Juntos, conta, eles gastaram US$ 860 na compra de produtos que teriam valido US$ 20 um dia antes.

A filha tentou reconfortá-lo. "Pai, eu vou usar essas calças até morrer", ela prometeu. Ele disse que a mesa de corte seria seu presente de casamento.

"Naquele momento, eu tinha vontade real de me matar", diz. Fez um gesto na direção da janela da casa em que está refugiado e da cena noturna em Yanji, do outro lado, as luzes brilhantes e o tráfego intenso. "Não é como aqui", diz. "Aqui, ganhar dinheiro não é muito difícil. Lá, temos sofrimento e mais sofrimento; sacrifício e mais sacrifício".

Ele conta que passou muitas noites sem dormir, depois da desvalorização, pensando no moletom azul que sua filha tanto queria. Ela havia dito que a roupa seria muito melhor que suas calças e suéter de inverno. Mas o pai preferiu rejeitar a compra porque o produto custava US$ 15. Quando ela insistiu no assunto, ele a xingou e gritou que "as pessoas dessa casa precisam comer, primeiro!"

"Nem consigo descrever o quanto é terrível o sentimento que tenho por não ter comprado o que ela queria", ele diz, com um tremor na voz.

Um profundo isolamento

Os norte-coreanos que jamais cruzaram a fronteira não têm como compreender o grau de seu sofrimento. Não existe Internet. Os televisores e rádios só recebem canais do Estado. Nem a mulher do dirigente do partido tem telefone, e lamenta sua falta de contato com o mundo externo. A primeira pergunta que fez em seu contato com um estrangeiro foi "eu sou bonita?"

No entanto, as informações começam lentamente a entrar no país. Comerciantes que visitam a China reportam que as pessoas são mais ricas e comparativamente mais livres, e que os sul-coreanos vivem supostamente ainda melhor. Alguns dos comerciantes têm celulares conectados às redes chinesas de telefonia móveis, e permitem que as pessoas os utilizem, por preços exorbitantes.

A punição por assistir a filmes e programas de TV estrangeiros é severa. O comerciante disse que um vizinho de 35 anos de idade passou seis meses em um campo de trabalho no ano passado depois que foi apanhado assistindo a "Twin Dragons", um filme de ação humorístico produzido em Hong Kong e estrelado por Jackie Chan. Mas, para a preocupação da antiga professora, seu filho de 26 anos de idade corre riscos semelhantes.

A irmã dela é casada com um funcionário do governo na capital, Pyongyang, diz, mas nenhum dos dois é fã de Kim Jong-il. Em sua mais recente visita, conta, a irmã sussurrou que "as pessoas o seguem por medo, e não por amor".

Desde a desvalorização cambial, ela e outros entrevistados dizem, as pessoas vêm fazendo comentários mais ousados.

"Agora, quando você vai ao mercado, as pessoas falam mais", disse o operário da construção civil. "Dizem que o governo é ladrão - à luz do dia, até".

A mulher dele não está entre esses críticos, conta. Nas semanas que se seguiram à desvalorização, diz, ela passava o dia deitada em uma esteira no chão da sala, imobilizada pela depressão. "Eu não tinha a força necessária a lhe dizer coisa alguma", ele afirma.

Por fim, ele disse que ela precisava se levantar. Era hora de recomeçar.

The New York Times
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