PUBLICIDADE

Mundo

Desalojados por terremoto no Haiti veem suas histórias na TV

11 jun 2010 - 07h29
(atualizado às 07h32)
Compartilhar
DAMIEN CAVE
Do New York Times, no Haiti

A tela de cinema subiu como uma aparição, no meio de uma cidade de tendas, num monte marcado pela chuva. "Under the Sky", dizia o letreiro, e, de fato, uma novela sobre uma família vivendo neste acampamento subitamente apareceu.

Haitianos assistem a uma novela que conta histórias do terremoto que devastou o país no último janeiro
Haitianos assistem a uma novela que conta histórias do terremoto que devastou o país no último janeiro
Foto: The New York Times

Amor e escândalo se seguiram, mas o episódio se concentrou principalmente em um tema: vigaristas nos acampamentos. Após um astuto vilão de óculos escuros tentar vender cartões de registro para os personagens principais do programa, alegando falsamente que eles poderiam ser trocados por dinheiro, oficiais da Organização Internacional para as Migrações aparecem repentinamente para salvar o dia.

"Aquele cara era um ladrão", disse o patriarca da família, interpretado por um dos atores mais famosos do Haiti, Lionel Benjamin. "Sabia que ele era problema."

Primeiro, os haitianos receberam alimento e abrigo, agora imagens em movimento integram a resposta humanitária. Telas de cinema ao ar livre estão aparecendo por toda essa abatida capital, Porto Príncipe, enquanto um grupo de organizações corre para produzir uma programação que entretenha e informe as centenas de milhares de pessoas desalojadas vivendo em acampamentos sem TV ou rádio.

A novela de 16 episódios, financiada pelas Nações Unidas e seus parceiros, por exemplo, é exibida três noites por semana em 16 acampamentos, junto de vídeos musicais e filmes haitianos. Diversos outros grupos - como o FilmAid, fundado por Caroline Baron, produtora de Capote - também estão preparando projetos que passem filmes e preparem os haitianos para filmarem seu próprio povo. E apesar do resultado poder ser divertido, o ímpeto é sério: os organizadores afirmam que os programas vão preencher o vácuo criado por um governo que não consegue se comunicar efetivamente, deixando que boatos e falcatruas se difundam entre aqueles mais desesperados por ajuda.

"Precisamos dá-los boa informação, não desinformação", disse David Wimhurst, porta-voz da ONU no Haiti. "Temos muito o que dizer a eles."Os próximos episódios da novela vão explicar como tornar mais seguras as tendas e barracas que muitos passaram a chamar de lar. Também pode haver lições sobre redes contra mosquitos e vacinação; higiene; e como se manter seguro em acampamentos que não param de crescer.

Cada episódio custa cerca de US$ 6 mil para produzir. Wimhurst disse que o objetivo foi criar algo útil e divertido. Baron, que participa de filmes em acampamentos de refugiados na África há 11 anos, disse que a melhor programação humanitária é aquela que junta diversão e função com um rosto local.

"É muito importante que os filmes que fazemos para a comunidade sejam feitos pela comunidade, para que sejam entendidos de forma fácil e rápida", disse ela numa entrevista após uma reunião com autoridades haitianas. "Não importa qual o assunto, as pessoas se divertem porque podem se identificar com as pessoas na tela."

Mas os desafios aos projetos são imensos. Num dia recente, na locação da "Under the Sky", a experiência de filmagem estava tão reveladora quanto o próprio episódio. Uma frustração seguia a outra.

Primeiro, o diretor da novela, Jacques Roc, 54 anos, que saiu do Haiti aos 14 anos e passou a maior parte de sua carreira em Nova York dirigindo comerciais e compondo jingles, precisou ir a outro acampamento porque um de seus operadores de projeção havia sido agredido.

A diversão gratuita aparentemente prejudicou alguns operadores locais, que cobravam US$ 3 "para uma tela pequena dentro de uma tenda", disse. "Toda vez que estamos por lá, eles não ganham nenhum dinheiro."

Antes de ele voltar, o calor sufocante chegou. Às 11h30, a temperatura superava os 32°C e o set estava úmido. Benjamin se sentou suando e aguardou sua deixa para começar, que finalmente veio uma hora mais tarde.

Era uma cena simples para o episódio da tenda, com autoridades de migração mostrando à família como usar pedras para fortalecer seus abrigos, mas a filmagem bem no meio do acampamento chamava atenção demais.Em certo momento, um pequeno menino começou a chacoalhar um pandeiro na área externa da locação. Mais tarde, a equipe de produção atirou pedrinhas nas pessoas que estavam passando, para evitar que elas se reunissem e perguntassem se podiam conseguir um emprego.

Depois de escurecer, Roc tentou gravar algumas tomadas dentro da tenda verde-oliva que usa como locação. Ela tinha um tapete no chão, uma sala de jantar e bonecos de porcelana em uma cômoda de madeira - um sinal de que a família no centro do drama era de classe média.

Os longos caracóis de Roc apareciam por baixo de um boné de beisebol enquanto ele se preparava para começar, mas, então, começou a chover. Uma chuva tropical se posicionou sobre o país.

A água bombardeava insistentemente, como se um milhão de bolas de golfe fossem jogadas sobre a tenda de uma só vez. Depois, ela começou a penetrar no abrigo, escorrendo ao lado do tapete e em volta da iluminação elétrica.

Roc, que dorme no acampamento algumas noites na semana, já havia visto aquilo antes. A primeira vez em que choveu durante uma gravação, as duas dúzias de funcionários da produção precisaram retirar todo o equipamento do chão. "Se tivéssemos feito esse episódio antes", disse ele rindo, se referindo ao trecho da tenda, "talvez estaríamos preparados".

Em geral, na verdade, é difícil medir o impacto das novelas e outros esforços. O Haiti tem 1.322 acampamentos, com mais de 10 mil tendas e 564 mil barracas cobrindo mais de um milhão de pessoas, de acordo com os oficiais de migração. Algumas dezenas de telas, ou mesmo 300, atingiriam apenas uma pequena porcentagem dos desalojados.

Ao mesmo tempo, a preocupação de grupos humanitários é de que os acampamentos se tornem favelas permanentes. Mark Turner, porta-voz da Organização Internacional para as Migrações, disse que a população dos acampamentos continua a crescer quase cinco meses após o terremoto, em parte porque algumas pessoas os usam como um centralizador de assistência gratuita, mesmo quando suas casas estão intactas.

As telas de cinema, por enquanto pelo menos, são ainda outro atrativo.Por outro lado, quando as telas aparecem numa paisagem praticamente escura, ao ar livre, com uma brisa fresca, é difícil os haitianos não as enxergarem como mágica.

Poucos dias após a chuva em Caradeux, a tela ganhou vida com o trabalho de Roc e depois deu lugar a vídeos musicais evangélicos. Adolescentes se reuniam para assistir e paquerar no início da escuridão da noite, enquanto no topo do monte, Ameniz Auxide, 54 anos, dançava, rezava e cantava com os vídeos.

"Se você ouvir e assistir", disse ela, com seu rosto iluminado pela luz da tela, "você sente como se Deus estivesse com você.

Tradução: Amy Traduções

The New York Times
Compartilhar
Publicidade