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Europa

Caso de abuso oferece vislumbre da política do Vaticano

3 mai 2010 - 14h19
(atualizado às 16h14)
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Daniel J. Walkin e James C. McKinley Jr.
Do New York Times

Dois antigos seminaristas mexicanos foram ao Vaticano em 1998 para reportar pessoalmente sobre um caso que envolvia décadas de abuso sexual por um dos mais poderosos líderes da Igreja Católica, o reverendo Marcial Maciel Degollado.

Quando partiram, encontraram o homem que um dia teria o destino de Maciel em suas mãos, o cardeal Joseph Ratzinger, e beijaram-lhe o anel. O encontro não aconteceu por acaso. Ratzinger queria conversar com eles, de acordo com declarações posteriores de testemunha, e o caso que apresentaram não demorou a ser aceito.

Contudo, pouco mais de um ano depois, surgiu a notícia de que Ratzinger - o futuro Papa Bento XVI - havia suspendido a investigação. "Não é prudente", ele havia dito a um bispo mexicano, de acordo com duas pessoas que conversaram com o bispo posteriormente.

Por cinco anos, o caso se manteve paralisado, possivelmente por ação dos poderosos protetores de Maciel na Cúria, a organização de governo do Vaticano, e da poderosa influência que ele exercia sobre a Santa Sé.

De qualquer forma, Ratzinger - que àquela altura já se havia tornado papa - só conseguiu coibir os abusos de Maciel em 2006, oito anos depois que o caso lhe foi apresentado. O acusado foi afastado de seus deveres pastorais e condenado a uma vida de silêncio e penitência, mas sem que surgisse reconhecimento público dos males que praticou ou do sofrimento de suas vítimas.

No último sábado, quatro anos depois disso, o Vaticano anunciou que Bento XVI apontaria um delegado especial para dirigir a poderosa ordem mundial fundada por Maciel, os Legionários de Cristo.

Observar de perto o histórico do caso demonstra que ele se caracteriza pelos mesmos atrasos e cautela burocrática que emergiram quanto ao tratamento de outras investigações de abuso sexual que passaram pelo gabinete de Bento XVI.

Defensores das vítimas de Maciel afirmam que a investigação que o Vaticano terminou por conduzir sobre o caso e os resultados desse trabalho são insuficientes, ainda que tardios.

O padre Alberto Athie Gallo, um sacerdote mexicano que em 1998 tentou levar alegações de abuso sexual praticadas por Maciel à atenção de Ratzinger, disse que o Vaticano havia permitido a Maciel, falecido em 2008, levar uma vida dupla por décadas.

"A Santa Sé tolerou esse comportamento por anos", disse Athie. "Nesse sentido, creio que a Santa Sé não seja capaz de chegar a uma definição sobre esse assunto, porque teria de criticar sua própria autoridade".

Antigos seminaristas da Legião denunciaram Maciel por abusos contra eles do começo dos anos 40 ao começo dos anos 60, quando tinham entre 10 e 16 anos de idade.

Por anos, Maciel cultivou poderosos aliados entre os cardeais, por meio de presentes e doações em dinheiro, de acordo com artigos de Jason Berry na revista National Catholic Reporter.

O principal desses aliados foi o secretário de Estado do Vaticano ¿ em virtude de seu cargo, o segundo mais poderoso homem do Vaticano no pontificado de João Paulo II - o cardeal Angelo Sodano, hoje presidente do Colégio de Cardeais e defensor escancarado de Bento XVI.

"Até que o Papa Bento XVI encare o problema do papel de Sodano no acobertamento a Maciel, não consigo ver de que modo ele poderá escapar à crise que cerca seu pontificado", disse Berry. O jornalista informou que Ratzinger recusou dinheiro oferecido pelos Legionários.

Sodano não respondeu a solicitações de entrevista apresentadas por escrito. Expor a verdade sobre o que aconteceu com Maciel se complica ainda mais dado o sigilo que o Vaticano mantém sobre sua vida política e seu processo decisório interno. Também é difícil dada a reverência por João Paulo II, que acolhia positivamente a defesa da ortodoxia católica pela Legião, e sua capacidade de atrair jovens para a vida sacerdotal.

Maciel fundou os Legionários de Cristo no México, em 1941. A organização se tornou uma potência dentro da Igreja e hoje opera escolas, grupos de caridade e veículos de mídia em 22 países. A ordem terminou por se transformar em uma espécie de culto de personalidade, com fotos de Maciel expostas em posição proeminente em todos os seus edifícios.

Os problemas de Maciel com o Vaticano datam de 1956, quando seu secretário pessoal o acusou de uso de drogas e de incompetência financeira. Ele foi suspenso por dois anos, durante uma investigação, mas terminou inocentado e reconduzido ao seu posto em 1959.

"Daquele momento em diante, ele passou a ser completamente protegido pelos mais altos dignatários do Vaticano", disse Fernando González, sociólogo que escreveu um livro sobre o caso Maciel.

As alegações de problemas na ordem persistiram, entre as quais acusações de abuso sexual encaminhadas ao Vaticano no final da década de 70. Em 1997, nove antigos seminaristas da Legião detalharam os abusos que sofreram por parte de Maciel em uma série de artigos publicados por Berry e Gerald Renner no jornal Hartford Courant. No mesmo ano, o jornal La Jornada, da Cidade do México, publicou investigações semelhantes.

No ano seguinte, oito dos homens envolvidos apresentaram uma queixa formal à Congregação para a Doutrina da Fé, à qual Ratzinger presidia então.

José Barba Martin, historiador na Universidade Itam, no México e outra das vítimas se reuniram com o padre Gianfranco Girotti, um dos secretários de Ratzinger, em 17 de outubro de 1998. Barba disse que sua advogada canônica, Martha Wegan, delineou o caso sobre os abusos sexuais sofridos pelos oito homens, diante de Girotti. Quando deixaram o edifício, disse Barba, o grupo foi apresentado a Ratzinger e beijou-lhe o anel. O caso não foi discutido na presença do então cardeal. Mais tarde, Wegan afirmou que Ratzinger é que havia desejado ser apresentado a eles, de acordo com Barba.

Em fevereiro de 1999, a Congregação anunciou ter aceito oficialmente o caso, de acordo com carta a Wegan. Mais ou menos no momento em que o caso foi aceito, Athie, que havia tomado interesse pelo caso e estava ajudando as vítimas de Maciel, escreveu uma carta delineando outro caso de abuso e a encaminhou ao bispo Carlos Talavera, no México, que disse a ele ter entregue a carta a Ratzinger.

Na entrevista, Athie disse que Talavera - já falecido - o havia informado de que o cardeal tinha lido a carta e decidido não levar adiante o caso. "Ratzinger disse que um inquérito não podia ser aberto porque o acusado era alguém a quem o Papa muito amava", em referência a Maciel, e que "havia feito muito pela Igreja". Ele também teria dito "lamento, mas isso não é prudente", disse Athie.

Saul Barrales, professor que trabalhou no passado como secretário de Maciel e é primo de Talavera, disse ter ouvido o mesmo relato sobre a conversa, da parte do bispo.

Pouco antes do Natal de 1999, a advogada Wegan escreveu a Barba para lhe transmitir "notícias tristes". Ela informou que Girotti havia lhe dito que a Congregação havia decidido encerrar o inquérito, "por enquanto".

Barba disse que, em conversa posterior com Wegan, ela o informou que era melhor que oito homens inocentes sofressem do que causar uma perda de fé que poderia afetar milhões de pessoas. Em outubro de 2002, Barba disse a Wegan que Sodano havia pressionado Ratzinger, que aparentemente havia se declarado favorável a manter a investigação, para que este abandonasse o caso. Wegan não aceitou pedidos de entrevista.

Diversos antigos legionários também declararam que Sodano, o presidente do Colégio de Cardeais, era amigo estreito de Maciel e que pode ter desempenhado um papel em impedir que informações sobre ele chegassem a João Paulo II ou de outra forma trabalhado para dificultar a investigação.

"Ficou muito claro que Angelo Sodano faria tudo que estivesse em seu poder para proteger tanto Maciel quanto os Legionários de Cristo", disse Glenn Favreau, um dos representantes dos antigos Legionários e antigamente diácono da ordem e empregado de seus escritórios em Roma. Favreau recorda lautas refeições para Sodano e seus parentes servidas nos edifícios da Legião. "Nós os alimentávamos com o que havia de melhor", relata.

Outros fatores também retardaram a tomada de medidas mais concretas. Havia quem questionasse os relatos sobre os abusos. Um dos nove queixosos originais retirou sua acusação e os Legionários de Cristo espalharam boatos de que diversos deles haviam sido interrogados, mas não haviam revelado coisa alguma durante as investigações conduzidas nos anos 50.

Havia também quem suspeitasse de ciúme pelo sucesso de Maciel. "As acusações eram vistas como realmente infundadas e como uma vendeta contra ela", disse Sandro Magister, um jornalista italiano que acompanhou o caso de perto.

Mas alguma coisa mudou. Em dezembro de 2004, Ratzinger iniciou uma investigação canônica e disse a Wegan que havia decidido "levar a cabo a investigação", de acordo com seus clientes. Magister diz acreditar que, à medida que o cardeal descobria mais sobre a magnitude do problema, ordenou que os antigos caso fossem reabertos.

Os partidários de Maciel continuaram lutando para bloquear a investigação. Passados cinco meses da retomada do caso, os Legionários de Cristo em Roma anunciaram que o inquérito estava concluído - com base em um fax do gabinete de Sodano.

Mesmo assim, a demissão de Maciel foi anunciada em 19 de maio de 2006. Mas foi só neste sábado que o Vaticano informou oficialmente o motivo: o "comportamento objetivamente imoral" de Maciel incluía atos criminosos, e revelava "uma vida desprovida de escrúpulos e de sentimentos religiosos autênticos".

Tradução: Paulo Migliacci

The New York Times
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