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América Latina

Dançarina haitiana que perdeu a perna luta por tratamento

14 abr 2010 - 10h15
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Fabienne Jean, dançarina profissional que perdeu a perna direita no terremoto do Haiti, estava saltitando pelo empoeirado pavilhão do Hospital Geral da capital, Porto Príncipe, a caminho de um raio-X muito importante.

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Quando chegou à seção de radiografia, Jean, 31 anos, em um vestido preto e justo e uma espessa gargantilha azul, se acomodou à mesa de exame com pose de modelo. O técnico entrou e posicionou a porção não amputada de sua perna direita na máquina a fim de obter raios-X que serão encaminhados a Nova York, o destino que Jean também deve tomar, se tudo correr bem.

"Talvez minha sorte esteja mudando para melhor", ela declarou durante o exame, mais de dois meses depois de ter conseguido sobreviver a uma infecção descontrolada e letal ao aceitar, relutantemente, uma amputação.

Mas logo em seguida começou uma disputa entre dois fornecedores de serviços de saúde sobre quem se encarregaria de reabilitar Jean. O trabalho ficaria com o grande hospital de Nova York cujo diretor de tratamento intensivo salvou a vida da bailarina cinco dias depois do terremoto? Ou com a pequena companhia de próteses da Nova Inglaterra cuja fundação vem batalhando desde então para reabilitá-la? Ou as duas organizações encontrariam forma de colaborar?

Entre os milhares de haitianos que sofreram amputações como consequência do abalo, Jean, tema de reportagem do New York Times em fevereiro, foi selecionada para oportunidades especiais devido a uma sucessão de coincidências, à atenção da mídia e ao seu potencial como símbolo do poder de recuperação do Haiti: se a bailarina que quase morreu puder voltar a dançar, isso terá importância psicológica para todo o país, consideram os responsáveis pelo tratamento.

Mas a situação de Jean também coloca em destaque a maneira pela qual muitos haitianos, como seu país, agora dependem da caridade internacional. Na opinião de Jean, isso é em larga medida uma vantagem -"Graças a Deus pelos estrangeiros", ela afirma -, mas também pode ser complicado e desconfortável.

O Mount Sinai Medical Center, o hospital de Nova York em questão, deseja estender o envolvimento de sua equipe com Jean por meio de uma oferta de cirurgia corretiva e reabilitação. O hospital está apelando ao governo Obama para que conceda a Jean um visto humanitário de entrada nos Estados Unidos. Também conseguiu que médicos e enfermeiras ofereçam serviços voluntariamente, e um alojamento gratuito para Jean na casa de uma enfermeira norte-americana de origem haitiana, em Brooklyn, durante seu tratamento.

A New England Brace Company Foundation, por outro lado, acredita que Jean possa e deva ser tratada no Haiti, onde ela viverá. Especialistas em próteses do grupo estavam se preparando para voar a Porto Príncipe esta semana para instalar uma prótese temporária, e o grupo sediado em New Hampshire não deseja perder Jean como paciente, por motivos pessoais e profissionais. A fundação deseja contar com a ajuda de Jean em seus esforços de arrecadação de fundos, e está estudando fazer dela sua porta-voz oficial.

Para Jean, uma bailarina no Teatro Nacional haitiano, a tragédia se transformou em uma oportunidade que a deslumbra. Durante o terremoto de 12 de janeiro, um muro de pedra desabou sobre sua perna. Nos dias seguintes, ela ficou longo tempo esperando entre as legiões de feridos conduzidos ao Hospital Geral, para onde o Dr. Ernest Benjamin, diretor de tratamento intensivo do Mount Sinai, foi enviado com uma equipe especializada do hospital.

Jean implorou a Benjamin, nascido no Haiti, que salvasse sua perna, argumentando que precisava dela para ganhar a vida. Mas era tarde demais. "Não foi uma decisão fácil, amputar, mas ela estava em estado crítico e postergar a cirurgia poderia ter custado sua vida", afirma Benjamin, especialista em tratamento intensivo. "De fato, a despeito da amputação nós temíamos perdê-la. Jean foi o primeiro paciente a sofrer convulsões depois de uma cirurgia. Foi um momento doloroso, e prometemos a nós mesmos que faríamos tudo para ajudar se ela sobrevivesse".

Não muito tempo depois da amputação, porém, o Hospital Geral a transferiu a uma clínica nos subúrbios de Porto Príncipe. Foi esse o momento em que Benjamin perdeu contato com ela - e também o momento em que Dennis Acton, do grupo de New Hampshire, a localizou em um local que ele descreve como "uma espécie de esquálido abrigo de moradores de rua, ocupado apenas por pacientes de amputações".

Comovido, Acton prometeu que ajudaria Jean a andar - e dançar - de novo. "Fabienne tem uma atitude excelente", diz. "Eu percebi que ela seria uma paciente forte, que se recuperaria rapidamente e serviria como exemplo positivo aos demais pacientes de amputações".

Com uma equipe de especialistas em próteses norte-americanos agora comprometida a tratar cerca de 50 pacientes de amputações no Haiti, a Fundação Nebco, um grupo organizado recentemente que angaria doações em seu site, assumiu a responsabilidade pelo caso, com uma mensagem que afirma: "Não estamos recebendo verbas das grandes organizações que arrecadaram mais de US$ 1 bilhão; precisamos de sua ajuda para continuar".

O artigo do New York Times sobre Jean comoveu dezenas de leitores a ponto de eles oferecerem doações. Ao mesmo tempo, Benjamin, depois de localizá-la de novo por conta da reportagem, propôs que o Mount Sinai a levasse aos Estados Unidos a fim de continuar seu tratamento, e começou a preparar um pedido de visto humanitário. (O Departamento de Segurança Interna concedeu vistos humanitários por razões médicas a dezenas de haitianos, desde o terremoto, afirma Matthew Chandler, um porta-voz do departamento.)

Ao saber da iniciativa do Mount Sinai, Acton inicialmente ficou irritado, porque havia sido aconselhado por especialistas em Porto Príncipe a tratar os haitianos no Haiti. De fato, a Handicap International, uma das principais organizações internacionais de assistência a deficientes físicos, que está presente no Haiti, não aprova que haitianos sejam enviados ao exterior para reabilitação, ainda que "não exista um sistema de reabilitação no Haiti", disse Lee Radick, porta-voz do grupo.

Os pacientes haitianos de amputações precisam de próteses de baixa tecnologia que possam ser reparadas e substituídas no Haiti, ela afirmou, acrescentando que "o trabalho que nos aguarda envolve construir uma capacidade local, de modo que os haitianos vitimados tenham acesso a serviços essenciais pelo resto de suas vidas".

Os médicos do Mount Sinai dizem que Jean precisa de nova cirurgia antes da reabilitação. A perna amputada termina em uma cicatriz espessa mas mal fechada que pode se abrir em contato com uma perna prostética, o que a deixaria vulnerável a novas infecções, de acordo com o pedido de visto. Embora exista a possibilidade de que Jean obtenha cirurgia desse tipo em seu país, os recursos locais são mínimos, e o Mount Sinai está oferecendo tratamento e reabilitação "de classe mundial", disse Benjamin.

Acton, depois de levar esse aspecto em conta, concordou hesitantemente em que ir a Nova York pode ser a melhor solução para Jean. Ele escreveu em mensagem de e-mail, no final de março, que inicialmente estava "defensivo (e talvez com algum ciúme?)", mas que "Fabienne jamais conseguirá o tratamento de que precisa no Haiti".

Por algum tempo, Acton e o Mount Sinai pareciam estar trabalhando em paralelo. Ele se ofereceu para assinar um depoimento em apoio ao pedido de visto humanitário para Jean. Mas posteriormente condicionou essa oferta à manutenção de seu grupo como fornecedor de próteses, e disse que o conselho de sua organização estava preocupado com a possibilidade de que o Mount Sinai roubasse uma paciente conhecida.

A cooperação foi suspensa.

Depois de uma semana frustrante no Haiti, Benjamin afirmou acreditar que o grupo da Nova Inglaterra estivesse bloqueando seus esforços de obtenção dos documentos necessários ao visto de Jean. O grupo, disse ele, embora provavelmente estivesse "realizando um trabalho maravilhoso", tinha um investimento em Jean e não desejava perdê-lo.

"A capacidade dela de voltar a dançar lhes propiciará lucros", ele escreveu a seus colegas em Nova York, propondo que eles "joguem a toalha" quanto ao plano de levar Jean ao Mount Sinai. Acton declarou que garantiria que a bailarina receba todo o tratamento necessário. E acrescentou que rejeitava a implicação de que sua organização estivesse explorando Jean, a quem ele disse considerar como amiga e "parceira igual", com "o poder de decidir como deseja trabalhar conosco em sua futura carreira, se é que o desejará".

Ele acrescentou que "estou aprendendo a duras penas que a zona de desastre é mais que destruição e pessoas feridas, e que envolve uma mistura complexa de política, egos e disputas de poder, igualmente". Por fim, o Mount Sinai decidiu que continuaria tentando conseguir um visto médico para Jean. Acton, de sua parte, estava se preparando para viajar ao Haiti com a nova prótese da bailarina.

E, entre eles, Jean, grata mas estressada, tenta não escolher um lado. Mas deseja ir a Nova York para se tratar, se possível. Ela declarou, em creole: "Eu quero! Eu quero! Eu quero!"

Tradução: Paulo Migliacci

The New York Times
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