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Ásia

Politicamente reprimidos, birmaneses se expressam nas artes

27 mar 2010 - 13h42
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Uma música dançante explodia em meio à multidão de milhares de fãs bêbados, passando por pavilhões, onde mulheres magras de saltos altíssimos giravam em postes de metal, e por ruas cheias de táxis levando os festeiros a esse show gratuito e regado a uísque no parque. "Nossos pais não permitem, mas fazemos mesmo assim", disse Zun Pwint Phyu, uma das dançarinas que foi alvo de olhares lascivos por horas.

O músico Thxa Soe se apresenta na cidade de Yangon
O músico Thxa Soe se apresenta na cidade de Yangon
Foto: The New York Times

Mianmar é um país onde ter um fax sem autorização é ilegal, onde mesmo as reuniões mais espontâneas com mais de cinco pessoas são tecnicamente proibidas e onde críticos do governo são regularmente presos por décadas em minúsculas celas. Contudo, apesar da repressão, ou talvez em parte por causa dela, os jovens daqui estão desafiando os limites do que o governo militar, sem falar nos pais, considera aceitável na arte e no entretenimento.

Exposições de arte, algumas mostrando arriscadas mensagens políticas ocultas, abrem toda semana em Yangon, principal cidade de Mianmar. Yangon tem um festival de música underground, que inclui bandas punk, duas vezes ao ano. Fãs dos mais populares gêneros musicais, como hip-hop e música eletrônica, usam calças largas de cintura baixa nos shows rotineiros daqui.

U Thxa Soe, um artista popular que mistura "danças espirituais" tradicionais com algo que lembra música eletrônica, disse acreditar que o governo tolerou shows selvagens nos anos recentes em parte porque isso era conveniente à sua estratégia de controle. "É preciso reprimir e soltar, reprimir e soltar", ele disse.

"Vivemos com medo", ele disse. "Vivemos sob uma ditadura. As pessoas precisam de ar fresco. Elas liberam sua raiva, sua energia".

O sucesso de artistas como Thxa Soe questiona a imagem muitas vezes monocromática de Mianmar como um lugar de liberdade zero. Esse país, anteriormente conhecido como Burma, é em muitos aspectos um lugar brutalmente autoritário - grupos de direitos humanos estimam que existam 2,1 mil prisioneiros políticos. Mas, segundo as pessoas daqui, mesmo com a imposição dos generais, o governo provavelmente não conseguiria chegar ao tipo de totalitarismo da Coreia do Norte. A sociedade birmanesa é muito rebelde, desorganizada e corrupta; as pessoas são muito criativas, o clima é quente demais para uma repressão de 24 horas.

A polícia é notoriamente brutal, mas também sofre com o torpor tropical: é comum ver policiais cochilando atrás de um caminhão. Nos últimos dois anos, as opções de entretenimento se expandiram rapidamente para os moradores das maiores cidades do país.

O governo apoiou a criação de uma liga de futebol, após anos sem qualquer partida organizada. Jogos de futebol são notoriamente ruidosos, com fãs lançando injúrias contra o lado adversário, ignorando as exortações do governo para ser "educado".

O número de estações de rádio FM em Yangon, antes conhecida como Rangoon, passou de um há alguns anos para vários, que tocam tanto música birmanesa quanto ocidental. No ano passado, uma companhia privada iniciou o primeiro canal de TV dedicado a videoclipes.

"O governo está tentando distrair as pessoas da política", disse um empresário birmanês de educação ocidental que não quis ser identificado por achar que isso prejudicaria seus negócios. "Não há pão suficiente, mas há muito circo".

O contraste entre o autoritarismo pesado do governo militar e a cena de entretenimento surpreendentemente desinibida pode ser gritante. No início deste mês, o líder da junta militar governante, general Than Shwe, celebrou o Dia dos Camponeses, um feriado nacional em homenagem aos agricultores, com uma mensagem ao "Estimado Campesinato".

"Desejo a você, camponês, bem-estar físico e mental e mais sucesso na agricultura", a mensagem dizia.

Em contraste, enquanto a noite caía no espaço de eventos ao lado de um lago em Yangon, seguranças encontravam dificuldade para conter milhares de fãs, que se amontoavam como camponeses em revolta. Os policiais ocasionalmente levantavam seus cacetetes em ameaça, mas eram em grande parte ignorados pela multidão, que havia vindo para assistir a um grupo de artistas populares tocar música que variava do metal ao pop.

Um analista de longa data de Mianmar disse que o governo tolera a política com p minúsculo - reuniões de intelectuais e membros de grupos políticos menores. Mas reprime a Política, com P maiúsculo, que o analista definiu como qualquer um que questionasse a legitimidade dos governantes militares, como grupos que apoiam Daw Aung San Suu Kyi, líder da oposição e ganhadora do prêmio Nobel. O analista, como este repórter que vos fala, não quis ser identificado porque a junta militar não tolera jornalistas, agentes humanitários ou acadêmicos estrangeiros que trabalham no país sem autorização, que é muitas vezes negada.

Thxa Soe disse que vivenciou tanto a rigidez linha dura do governo quanto seu peculiar lado laissez-faire. Ele é um dos músicos mais perseguidos do país, constantemente repreendido por censores, que proibiram nove das 12 faixas de seu disco recente. Eles ordenaram que Thxa Soe apagasse outras músicas de DVDs e CDs ao longo dos anos e aprovaram uma lei no ano passado proibindo seu estilo musical inovador.

Contudo, num sinal notável das complexidades da sociedade birmanesa, sua música intensa é popular entre os funcionários públicos. Ele às vezes brinca com oficiais da inteligência militar designados para espionar seus shows. Eles também são fãs, ele disse. Ele foi convidado para a inauguração do zoológico na nova capital do país, Naypyidaw, há muitos anos, e voltou a ser convidado mais três vezes para fazer apresentações. "Algumas pessoas do governo gostam de mim, outras me odeiam", Thxa Soe disse.

Suas músicas incluem We Have No Money, um título que parece ter passado despercebido pelos censores. A pobreza é um assunto delicado em Mianmar, porque muitos culpam a má administração do governo e a corrupção pelo desempenho econômico ruim do país.

Especular sobre que tipos de atividade o governo irá tolerar é um assunto comum das conversas no país, especialmente entre aqueles que desafiam limites.

Artistas dizem que o processo de aprovação dos censores muitas vezes parece aleatório e inconsistente. U Thu Myat Aung, 24, artista que diz se inspirar no grafiteiro britânico Banksy, foi anfitrião da primeira mostra de grafite do país este mês, na véspera do Dia dos Camponeses.

"Queríamos fazer isso desde 2003, mas não tínhamos permissão", Thu Myat Aung disse na exposição, onde mulheres e homens pintaram peças de madeira compensada com spray. U Nyein Chan Su, artista cujo trabalho foi muitas vezes reprovado pelos censores, disse que o governo parecia ser particularmente desconfiado da arte abstrata.

"Minha opinião é que eles permitem apenas arte que eles entendam", disse. "Eles temem que os artistas estejam fazendo política ao usar a arte contemporânea". Nyein Chan Su cita o exemplo de um artista cuja pintura, mostrando imagens de mulheres com expressões contemplativas, foi rejeitada pelos censores. "Eles disseram, 'por que você não pinta mulheres sorrindo?'"

Tradução: Paulo Migliacci

The New York Times
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