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Mundo

Metade da assistência alimentar à Somália é desviada, diz ONU

10 mar 2010 - 16h28
(atualizado às 16h44)
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Jeffrey Gettleman e Neil MacFarquhar
Do New York Times

Até metade da assistência alimentar enviada à Somália é desviada das pessoas que mais necessitam dela para uma rede de intermediários corruptos, militantes radicais islâmicos e funcionários locais das Nações Unidas, de acordo com um novo relatório do Conselho de Segurança da ONU.

Homem carrega um saco de comida de um armazém de Mogadíscio; metade dos alimentos doados é desviada
Homem carrega um saco de comida de um armazém de Mogadíscio; metade dos alimentos doados é desviada
Foto: The New York Times

O relatório, que ainda não foi divulgado, foi mostrado por diplomatas ao New York Times e delineia diversos problemas graves a ponto de levar seus autores a recomendar ao secretário geral da organização, Ban Ki-moon, que inicie uma investigação independente sobre as operações do Programa Mundial de Alimentos no país. O estudo sugere que o programa reconstrua o sistema de distribuição de alimentos - que atende a pelo menos 2,5 milhões de pessoas - a partir do zero, para destruir o que descreve como um cartel corrupto de distribuidores somalis.

Além do desvio de assistência alimentícia, as autoridades somalis colaboram com piratas que sequestram navios ao largo das costas desprotegidas do país, segundo o relatório, e ministros somalis leiloaram vistos diplomáticos para viagens à Europa a qualquer interessado - alguns dos compradores podem ter sido piratas ou insurgentes.

As autoridades somalis negaram que houvesse um grave problema com vistos, e dirigentes do Programa Mundial de Alimentos afirmaram não ter visto o relatório mas que investigariam suas conclusões assim que o texto fosse apresentado ao Conselho de Segurança, em 16 de março.

O relatório surge no momento em que o governo de transição da Somália está se preparando para uma grande ofensiva militar com o objetivo de recapturar a capital do país, Mogadíscio, e combater um movimento insurgente islâmico conectado à Al-Qaeda. Os Estados Unidos estão fornecendo assistência militar, enquanto as Nações Unidas tentam reverter as duas décadas de anarquia que o país vinha vivendo.

Um funcionário do governo dos Estados Unidos reconheceu recentemente que "a melhor esperança" da Somália era o novo comandante militar do governo, um antigo oficial de artilharia de 60 anos de idade que, até alguns meses atrás, estava trabalhando como subgerente de um McDonald's no subúrbio de uma cidade alemã.

Os investigadores que prepararam o relatório haviam sido originalmente instruídos a averiguar violações do embargo de armas imposto pela ONU à Somália, mas suas atribuições foram expandidas.

Diversos dos autores do relatório receberam ameaças de morte, e a ONU recentemente os transferiu do Quênia para Nova York a fim de proteger sua segurança.

Possíveis obstruções à assistência são um tema incômodo na Somália ao longo dos últimos 12 meses, e contribuíram para o adiamento de embarques pelo governo dos Estados Unidos e para recentes suspensões dos programas de alimentação em determinadas áreas, sob ordens de funcionários da ONU.O relatório destaca o Programa Mundial de Alimentos, a maior das agências assistenciais em operação em um país em perpétua crise, como especialmente problemático.

"Alguns recursos humanitários, especialmente a assistência alimentar, foram desviados para uso militar", afirma o relatório. "Uns poucos intermediários somalis empregados pelas agências de assistência formaram um cartel e se tornaram influentes, e alguns deles canalizam seus lucros -ou até mesmo o material de assistência - diretamente para grupos armados de oposição".

Essas alegações quanto a desvios de assistência alimentar surgiram inicialmente no ano passado, e o Programa Mundial de Alimentos vem negando constantemente a descoberta de indícios de delitos, e afirmou que uma auditoria interna sobre a questão não havia identificado quaisquer abusos mais graves.

"Ainda não tivemos acesso ao relatório do Grupo de Monitoração da Somália pela ONU", disse Amir Abdulla, diretor assistente do Programa Mundial de Alimentos, na terça-feira. "Mas investigaremos todas as alegações, como sempre fizemos no passado, quando surgiram questões sobre as nossas operações".

Os investigadores que redigiram o atual relatório questionam a independência da auditoria mencionada e pedem por uma nova investigação externa sobre a agência das Nações Unidas.

"Temos de dizer a essas pessoas que não se pode continuar assim para sempre, que sabemos o que elas estão fazendo e que elas não estão nos enganando, e deveriam parar", disse o presidente Ali Bongo Ondimba, do Gabão, que estava nas Nações Unidas, onde seu país preside o Conselho de Segurança este mês.

O relatório também acusa autoridades somalis de vender lugares em viagens à Europa e de que muitas das pessoas apresentadas como parte de comitivas governamentais, em viagens oficiais de autoridades somalis ao exterior, eram na verdade piratas ou membros de grupos militantes disfarçados.

O relatório afirma que funcionários somalis usaram suas conexões com governos estrangeiros a fim de obter vistos e documentos de viagem para pessoas que de outro modo não poderiam viajar ao exterior, e que muitas dessas pessoas desapareciam na Europa e não retornavam mais.

"Ministros, parlamentares, diplomatas e 'corretores independentes' somalis transformaram o acesso a vistos para o exterior em uma indústria próspera, comparável apenas à pirataria, na economia do país, vendendo vistos por entre US$ 10 mil e US$ 15 mil", afirma o relatório.

Os autores do relatório estimam que dezenas, senão centenas, de somalis tenham ganho acesso à Europa ou outras áreas por meio desse método clandestino de obter vistos.

"Talvez tenha acontecido um caso ou dois ao longo dos anos", disse Mohamed Osman Aden, um diplomata somali estacionado no Quênia. "Mas são apenas boatos. Essas alegações estão circulando há anos".

O relatório também toma por alvo alguns dos mais ricos e influentes empresários somalis, os chamados "senhores do dinheiro". Um deles, Abdulkadir Nur, conhecido pelo apelido Eno, é casado com uma mulher que desempenha papel importante em uma agência local de assistência, cuja função supostamente é a de verificar se os alimentos doados são efetivamente entregues.

Essa "potencial lacuna" de fiscalização poderia "oferecer o potencial de desvios em larga escala", afirma o relatório. O texto acusa Nur de forjar o sequestro de seus próprios caminhões e de mais tarde vender os alimentos que eles transportavam.

Em mensagem de e-mail ao New York Times, Nur disse ter encaminhado aos investigadores muitos documentos que "demonstram com grande clareza que as fofocas e rumores que estão investigando são falsos", incluindo o suposto sequestro de cargas e quaisquer conexões com os insurgentes.

Ele disse que sua mulher era simplesmente membro do conselho de uma agência local de assistência, e que apenas "uma minúscula fração" dos alimentos que ele transportava eram dirigidos a essa agência.

Em setembro, o presidente somali xeque Sharif Sheik Ahmed, escreveu uma carta ao secretário geral Ban defendendo Nur como "uma pessoa muito conscienciosa, diligente e trabalhadora", e alegando que, não fosse o trabalho desses intermediários, "muitos somalis teriam perecido".

O relatório questiona os motivos para o Programa Mundial de Alimentação direcione 80% de seus contratos de transporte na Somália, avaliados em cerca de US$ 200 milhões, a três empresários somalis, especialmente porque todos eles são suspeitos de conexões com os insurgentes islâmicos.

O relatório afirma que a fraude é onipresente, e que cerca de 30% da assistência é desviada pelos parceiros locais e funcionários locais do Programa Mundial de Alimentação, outros 10% pelos encarregados do transporte terrestre e entre 5% e 10% pelo grupo armado em controle de cada área. Isso significa que até metade dos alimentos não chegam às pessoas que precisam deles de forma desesperada.

Em janeiro, os Estados Unidos suspenderam dezenas de milhões de dólares em embarques de assistência ao sul da Somália devido ao medo de desvios, e funcionários do governo norte-americano acreditam que parte da assistência do país possa ter sido desviada para o Al Shabab, o mais militante dos grupos insurgentes somalis.

O relatório também afirma que o presidente de Puntland, uma região semiautônoma no norte da Somália, tem fortes laços com os piratas locais, que canalizam para ele parte do dinheiro ganho com o sequestro de navios.Não foi possível contactar as autoridades de Puntland na terça-feira, mas Mohamed, o diplomata somali, descartou as alegações, afirmando que o governo local aprisionou mais de 150 piratas e que não havia recebido "um centavo" deles.

"É lastimável que esse grupo de monitoração acredite que possa jogar toda a culpa sobre os somalis", afirmou.

Tradução: Paulo Migliacci ME

The New York Times
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