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Mundo

Ilha comparada a Guantánamo vira polêmica na Austrália

5 nov 2009 - 12h58
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Norimitsu Onishi
Do New York Times, na ilha Christmas, Austrália

Nas profundezas da selva da pequena ilha Christmas, perdida no Oceano Índico, o novo centro de refugiados australiano, construído ao custo de US$ 370 milhões, atinge o seu efeito máximo depois que as luzes se acendem, no crepúsculo. Posicionado entre a selva, o mar e colinas íngremes, ele surge das trevas que o circundam e se torna visível da única porção habitada da ilha, localizada a cerca de 16 km de distância.

O centro, inaugurado alguns dias antes do Natal mas agora quase lotado de refugiados do Afeganistão e do Sri Lanka, passou a simbolizar aquilo que muitos consideram com um dos maiores medos australianos: a chegada ao país de refugiados vindos da Ásia.

Todos os refugiados que chegam à Austrália por via marítima são trazidos inicialmente para a ilha Christmas, cerca de 350 km ao sul da Indonésia mas 1,5 mil km distante da principal ilha australiana, e a maioria deles está abrigada no centro de refugiados, construído e operado com enorme custo e protegido por cercas de arame farpado eletrificadas de cerca de quatro metros de altura.

Mas mesmo que novos barcos cheguem a cada semana, os defensores dos refugiados e até mesmo a comissão de direitos humanos do governo estão instando as autoridades a fechar o estabelecimento e fazer a triagem dos refugiados na Austrália propriamente dita. Eles comparam a ilha Christmas à baía de Guantánamo, ou a descrevem como reencarnação das muitas ilhas que serviram como presídios no passado da Austrália, uma nação cuja população branca inicial consistia de prisioneiros ingleses degredados.

"Eles instalaram esse centro aqui, em uma ilha distante, e mesmo assim o construíram em uma região muito, muito, muito isolada, na ilha, em meio à floresta", diz Charlene Thompson, assistente social que trabalha na ilha e presta assistência às pessoas que buscam asilo. Ela compara o novo centro a Port Arthur, uma colônia penal estabelecida no século XIX na ilha da Tasmânia, a mais meridional da Austrália. "É uma cadeia, uma cadeia de alta segurança, e a impressão é a de que as pessoas que buscam asilo estão sendo tratadas como criminosos".

O influxo de refugiados asiáticos, uma questão que já decidiu eleições australianas passadas, está causando abalos no governo do primeiro-ministro Kevin Rudd, um ano antes de uma nova eleição. Rudd foi recentemente acusado pela oposição de tratar com leniência os imigrantes ilegais, e apelou pessoalmente ao presidente da Indonésia, Susilo Bambang Yudhoyono, pela interceptação de um barco de madeira vindo da Malásia, que transportava 260 cidadãos do Sri Lanka em busca de refúgio na Austrália.

Caso esses refugiados, hoje detidos na Indonésia, tivessem sido trazidos ao centro de detenção da ilha Christmas, a capacidade total de 1,2 mil pessoas das instalações provavelmente teria sido excedida. E isso, por sua vez, poderia ter forçado o governo a receber na ilha principal da Austrália os refugiados que chegam por mar.

"Não me desculpo, de forma alguma, pela linha dura que assumi contra a imigração ilegal para a Austrália", disse Rudd, que inicialmente conquistou elogios dos defensores dos refugiados ao reverter algumas das mais severas medidas de repressão à imigração instituídas por seu predecessor, John Howard, entre as quais estava a prática de cobrar das pessoas que buscam asilo os custos de hospedagem em instalações governamentais.

Rudd decidiu continuar a enviar os refugiados para cá, onde são registrados e abrigados provisoriamente. Também manteve a política de "excisão" de seu predecessor, segundo a qual os refugiados em busca de asilo encaminhados a centros como o da ilha Christmas perdem o acesso ao sistema judiciário australiano para revisão de seus casos. Inicialmente relutante quanto ao uso do novo centro de processamento de refugiados, visto como símbolo das políticas de seu predecessor, Rudd preferia alojar os refugiados em uma instalação mais antiga, mas também na ilha Christmas.

No entanto, a forte elevação no número de pessoas em busca de asilo, nos últimos 12 meses, forçou as autoridades a colocar o novo centro em uso. Cerca de dois mil refugiados que se encaminhavam à Austrália por mar foram enviados à ilha Christmas este ano, e no momento o número total de refugiados é calculado como equivalente ao de moradores regulares dailha: em torno de 1,1 mil.

Os refugiados que chegam por via marítima representam cerca de 10% do total de pessoas que procuram asilo na Austrália, de acordo com funcionários do serviço nacional de imigração; a maioria chega ao país de avião. E a probabilidade de que os refugiados que chegam por via marítima sejam reconhecidos como refugiados políticos é maior, depois que seus pedidos de asilo passam por revisão, o que costuma demorar entre três e quatro meses na ilha Christmas.

Mesmo assim, a chegada de barcos ilegais lotados de asiáticos evoca um temor primordial entre os australianos, que foi insuflado pelas passadas décadas de medidas de repressão à imigração asiática e continua a ser estimulado pelos políticos conservadores.

"Existe considerável ansiedade sobre as pessoas que chegam em barcos ao país, vindas do norte", disse Bernadette McGrath, diretora do Serviço de Assistência e Reabilitação a Sobreviventes de Tortura e Trauma, que passou seis meses investigando o tratamento do governo aos refugiados em Christmas. "É algo que está profundamente enraizado na psique do país".

Assim, por mais que um barco se tenha aproximado da Austrália propriamente dita, as autoridades australianas forçam cada embarcação a se encaminhar primeiro à ilha Christmas, ligada a Perth, 2,65 mil km distante, na ilha principal, por quatro voos semanais de quatro horas de duração. Um navio de abastecimento chega a ilha a intervalos de cinco ou seis semanas. Os jornais são entregues com 10 dias de atraso. A Internet continua a ser lenta e muito cara.

Batizada por um navegador britânico, que avistou a ilha no dia do Natal(Christmas) de 1643, ela era desabitada até cerca de um século atrás, quando foram localizados depósitos de fosfatos na ilha. Os britânicos transportaram trabalhadores asiáticos à ilha para explorar o material, e Christmas veio a se tornar parte da Austrália meio século atrás. Até os anos 80, existia uma estratificação racial na ilha, com administradores australianos brancos comandando uma força de trabalho formada por asiáticos e impedida de residir nos bairros brancos.

Alguns refugiados que foram entrevistados declararam que estavam surpresos por terem sido encaminhados a uma ilha da qual jamais haviam ouvido falar.

"Quando estudamos geografia, nossos professores nunca nos falaram sobre a ilha Christmas, diz um jovem de 17 anos, da província de Ghazni, no Afeganistão. O jovem, da etnia hazara, chegou à ilha com seus pais, dois irmãos e três irmãs. Se contemplarmos no mapa, a ilha Christmas fica escondida. É muito pequena".

Por conta da distância, a construção e operação do centro de detenção custa muito mais caro do que seria o caso de instalações construídas na Austrália propriamente dita, de acordo com reportagens da imprensa australiana.

"A distância também serve para manter os ativistas, os advogados e a mídia distantes dos refugiados", diz Gordon Thomson, que administra o território da ilha Christmas. O governo proibiu visitas de jornalistas ao centro. Até agora, apenas dois deles foram autorizados a entrar na sala de visitantes, onde puderam entrevistar alguns dos refugiados.

De acordo com um recente relatório da Comissão de Direitos Humanos australiana, uma organização governamental, o novo centro "se parece com uma prisão, e desperta sensações semelhantes às de uma prisão". A comissão considera que as medidas de segurança são "excessivas e inapropriadas à recepção de refugiados em busca de asilo". Do lado de dentro da cerca principal, o relatório aponta, cada composto fica envolvo por uma cerca separada, e os caminhos entre eles "são envoltos por estruturas em forma de gaiola".

O Departamento de Imigração rejeitou a recomendação da comissão para que o uso da ilha Christmas como local de detenção fosse abandonado, e descreveu o uso desse tipo de ilha como "componente essencial de um controle de fronteira mais forte".

Cerca de 50 refugiados em busca de asilo, em sua maioria famílias com crianças, foram autorizados a se instalar nos bairros residenciais da ilha. A despeito de algumas queixas locais sobre o influxo de refugiados e de funcionários da imigração, os primeiros disseram se sentir bem vindos.

"As pessoas aqui são todas boas", disse um homem iraniano de 35 anos que estava hospedado com a mulher e dois filhos em um bloco de apartamento ocupado também por refugiados do Sri Lanka e Afeganistão.

O iraniano, que como outros entrevistados pediu que seu nome não fosse revelado por medo de que isso cause problemas à sua família no Irã, disse que ele e a mulher se sentiam ameaçados depois que se converteram ao cristianismo, quatro anos atrás, e aderiram à versão iraniana da Assembleia de Deus. Ele diz que pagou US$ 70 mil para que sua família pudesse deixar Teerã, via Malásia e Indonésia, e por fim, embarcasse em uma viagem de barco de 11 dias rumo à Austrália, interrompida quando a embarcação foi interceptada pela marinha de guerra australiana.

Essa é a rota mais comum para os refugiados que estão em Christmas. Mas mais recentemente, desde o fim da guerra civil do Sri Lanka, em maio, muitos membros da etnia tamil, do norte da ilha, embarcaram diretamente para a Austrália, que fica a quase 5 mil km de distância.

Uma família de quatro pessoas, vinda do Sri Lanka, ainda estava a espera dos resultados de seu pedido de asilo, e contou ter passado um mês no mar, em companhia de 70 outras pessoas, antes de ser encaminhada à ilha.

Certa manhã recente, na escola pública local que os filhos dos refugiados frequentam diariamente, os jovens imigrantes estavam estudando inglês, jogando hóquei ou fazendo biscoitos de chocolate.

"O conhecimento dessas crianças sobre a Austrália é bastante limitado", disse Mary Ford, 29 anos, que começou a lecionar aqui cinco meses atrás, vinda da ilha principal australiana. "Elas não conhecem os nomes das principais cidades da Austrália.

"Nenhuma delas havia ouvido falar da ilha Christmas. Bem, a maioria dos australianos tampouco. Eu nem sabia onde ela ficava, geograficamente, antes de me mudar para cá. As pessoas me perguntavam onde afinal ficava essa tal de ilha Christmas".

Tradução: Paulo Migliacci ME

The New York Times
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