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Ásia

Por condomínio, China quer demolir cidade histórica

30 mai 2009 - 19h16
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Michael Wines

Do New York Times


Mil anos atrás, o ramo norte e o ramo sul da Estrada da Seda convergiam aqui em Kashgar, uma cidade oásis à beira do deserto de Taklamakan. Mercadores de Delhi e Samarcanda, esgotados depois de semanas de travessia das cadeias montanhosas mais assustadoras do planeta, descarregavam aqui suas bestas de carga, e vendiam açafrão e alaúdes nas ruas movimentadas da cidade. Os mercadores chineses, conduzindo camelos carregados de seda e porcelana, faziam o mesmo.

Moradores caminham pelas ruas históricas da cidade de Kashgar
Moradores caminham pelas ruas históricas da cidade de Kashgar
Foto: The New York Times

Agora, os mercadores contam com a companhia de turistas que desejam conhecer os becos estreitos um dia percorridos por carrinhos puxados a burro e as edificações de barro e palha que foram primeiro visitadas e depois saqueadas por Gengis Khan e Tamerlão. E Kashgar está a ponto de ser saqueada uma vez mais.

Cerca de 900 famílias já foram removidas da Cidade Velha de Kashgar, "o exemplo mais bem preservado de uma cidade islâmica tradicional que se pode encontrar em qualquer parte da Ásia Central", como definiu o arquiteto e historiador George Michell em um livro sobre a cidade publicado em 2008.

Ao longo dos próximos anos, dizem as autoridades municipais, pelo menos 85% desse emaranhado pitoresco, ainda que mal conservado, de lojas e casas será demolido. Muitas das 13 mil famílias que o habitam, muçulmanos de um grupo étnico de raízes turcas, os uighurs, serão transferidas.

No lugar das edificações demolidas emergirá uma nova Cidade Velha, misturando edifícios de apartamentos de altura média, becos alargados em forma de avenidas e reproduções da antiga arquitetura islâmica, "a fim de preservar a cultura uighur", disse o vice-prefeito de Kashgar, Xu Jianrong, em entrevista por telefone.

A demolição é considerada urgentemente necessária, porque um terremoto pode atingir a região em breve e causar a queda de edifícios seculares e a morte de milhares de pessoas. "Toda a região de Kashgar é parte de uma área especial de risco de terremotos", disse Xu. "Pergunto: o governo de que país deixaria de proteger seus cidadãos contra o perigo de um desastre natural?"

Os críticos da decisão se preocupam mais com um desastre de outra ordem. "Da perspectiva cultural e histórica, o plano deles é estúpido", disse Wu Lili, diretor executivo do Centro de Proteção Cultural de Pequim, uma organização não governamental dedicada à preservação histórica. "Da perspectiva dos moradores locais, é uma crueldade".

A reconstrução urbana durante o longo boom da economia chinesa já destruiu os centros históricos de muitas cidades, e isso inclui os antigos becos e as moradias construídas em torno de pátios na capital chinesa, Pequim.

Kashgar, no entanto, não é uma cidade chinesa típica. Os serviços de segurança chineses a consideram como o ponto focal de um pequeno mas persistente movimento separatista uighur que, segundo Pequim, tem conexões com a jihad internacional. Por isso, a reconstrução do centro urbano desse antigo polo da cultura islâmica vem acompanhada de um certo matiz de conformidade cultural forçada.

Funcionários do governo chinês oferecem explicações ocasionalmente incompreensíveis sobre os planos. Xu define Kashgar como "um exemplo clássico de rica história cultural e ao mesmo tempo um grande polo de turismo na China". Mas o plano de demolição reduziria a destroços a principal atração turística de Kashgar, que serve de ímã a muitos do mais de um milhão de visitantes anuais que a cidade recebe.

A China apoia um plano internacional que faria dos pontos focais da Estrada da Seda parte do Patrimônio Cultural da Humanidade, protegido pela ONU - o que representa forte atrativo para turistas e um poderoso incentivo para que os governos responsáveis por esses locais preservem as áreas históricas.

Mas Kashgar não consta da lista de locais propostos pela China para preservação. Um funcionário de governo estrangeiro, pedindo que se seu nome não fosse revelado por medo de prejudicar as relações entre Pequim e o seu país, disse que o projeto da Cidade Velha conta com apoio incomumente forte nos altos escalões do governo.

A reconstrução, cujo orçamento estimado é de US$ 440 milhões, começou abruptamente este ano, pouco depois que o governo central chinês anunciou que gastaria US$ 584 bilhões em obras públicas, a fim de combater a crise financeira mundial.

O projeto concluiria o desmantelamento gradual da velha Kashgar, iniciado décadas atrás. A muralha da cidade, uma construção de terra batida e oito metros de espessura, com altura de mais de 10 metros, foi em larga medida demolida. Nos anos 80, a cidade pavimentou o fosso que a cercava para criar um anel viário. Depois, inaugurou uma rua principal que atravessava o velho centro.

No entanto, boa parte da Cidade Velha continua como sempre foi. Do topo das 40 pequenas mesquitas, os muezins ainda chamam os fiéis reunidos nas vielas abaixo à oração; eles não usam alto-falantes. Centenas de artesãos continuam a produzir potes de cobre estreitos, artefatos de madeira entalhada, cimitarras, e a mercadejar toda espécie de produto, de pão feito na hora a rãs secas e gorros de oração muçulmanos.

E dezenas de milhares de uighurs ainda vivem por trás das portas de choupo entalhadas, muitos dos quais em moradias alugadas e precárias, e outros em casas de dois andares que se projetam por sobre as vielas e se abrem para pátios repletos de rosa e bandeiras de tecido.

O governo municipal afirma que os moradores uighurs foram consultados a cada etapa do processo de planejamento. Os moradores alegam que no máximo foram convocados a reuniões nas quais foram informados apenas sobre o cronograma dos despejos e sobre o montante das indenizações que receberiam.

Ainda que a cidade esteja oferecendo aos moradores desalojados moradia no mesmo local de que estão sendo despejados, alguns deles se queixam de que a indenização oferecida não cobriria os custos de reconstrução.

"Minha família construiu esta casa 500 anos atrás", diz Hajji, 56 anos, um homem corpulento e de cabelos grisalhos cortados à escovinha, enquanto a mulher dele servia o chá em sua cada de dois pavimentos em plena Cidade Velha. "As paredes eram de barro. Houve melhorias ao longo do tempo, mas a disposição dos cômodos continua a mesma".

Ao estilo uighur, a casa não tem muita mobília. As paredes são decoradas por tapeçarias, e há tapetes no piso e áreas elevadas utilizadas para dormir e receber visitas. A sala de inverno conta com um forno metálico a carvão, e a garagem foi convertida em uma loja na qual a família vende suvenires e doces. Com nove cômodos no piso inferior e sete no superior, a casa foi se expandindo ao longo dos séculos e, nos padrões de Kashgar, pode ser considerada como uma mansão.

Mas Hajji e sua mulher gastaram todo o dinheiro que tinham economizado para cuidar do tratamento de um filho doente, e a indenização da prefeitura pela demolição da casa não cobriria o custo de reconstrui-la. A escolha que lhes resta é a mudança para um apartamento distante, o que os forçará a fechar sua loja, a única fonte de renda da família.

"A casa nos pertence", disse a mulher de Hajji, que não quis revelar seu nome. "Nesse tipo de casa, muitas e muitas gerações podem viver, uma a uma. Mas se nos mudarmos para um apartamento, a cada 50 ou 70 anos aquele edifício será derrubado". "Esse é o maior problema em nossas vidas. Como podemos deixar um apartamento para herança aos nossos filhos?", ela diz.

Os inspetores de edificações consideraram a maior parte das grandes edificações da Cidade Velha como inseguras, entre as quais todas as construções de barro e palha, a forma mais antiga e tradicional de construção. Elas serão demolidas e, em muitos casos, reconstruídas de maneira resistente a terremotos, mas ainda em estilo uighur, prometem as autoridades municipais.

No entanto, três dos sete setores em que a Cidade Velha se divide foram considerados inadequados para arquitetura em estilo uighur e serão ocupados por edifícios de apartamento em estilo decididamente genérico. Duas mil outras casas serão demolidas para a construção de praças públicas e escolas. Os moradores pobres, que vivem nas casas menores, já estão sendo permanentemente transferidos a apartamentos em edifícios quadradões de concreto, parte dos conjuntos habitacionais populares construídos na periferia de Kashgar.

Não se sabe ao certo o que restará da velha Kashgar. Xu disse que "edifícios importantes e áreas da Cidade Velha que já estejam incluídas na lista de preservação especial do país" não serão afetados.Não há fiscalização das demolições por arqueólogos, segundo ele, porque o governo já sabe tudo sobre a velha Kashgar.

Os funcionários da prefeitura têm bons motivos para se preocupar com terremotos. Em outubro passado, um abalo de magnitude 6,8 aconteceu a cerca de 150 quilômetros de distância da cidade. Em 1902, um terremoto de magnitude oito, um dos mais intensos do século 20, causou a morte de 667 moradores de Kashgar.

Alguns moradores afirmam preferir um ambiente mais moderno. A forma de construção e o estilo milenares da cidade são charmosos mas dificultam atividades básica como a coleta de lixo e a instalação de esgotos e hidrantes de incêndio. Na opinião de Xu, a demolição oferecerá vida melhor aos Uighur e ao mesmo tempo os poupará de desastres.

Isso posto, existe um certo ar de despejo compulsório na demolição, uma urgência que o medo de terremotos não basta para explicar. A cidade está oferecendo prêmios em dinheiro aos moradores que optem por sair antecipadamente de suas casas ¿cerca de US$ 30 para quem sair em 20 dias, e US$ 15 para os que saírem em um mês. As casas são demolidas assim que os moradores as deixam, e algumas das vielas já ostentam diversos terrenos baldios.

Na televisão da cidade, um informercial de 15 minutos veiculado a cada noite alardeia o projeto, misturando projeções assustadoras sobre atividade sísmica a imagens de uighurs felizes dançando diante de seus novos edifícios de concreto.

"Nunca houve acontecimento tão grande e tão importante em Kashgar", pronuncia o locutor. Ele se vangloria de que os novos edifícios "não terão comparação no mundo" e que os moradores "sentirão o carinho e o cuidado do partido" para com a minoria étnica uighur.

O infomercial também aponta que dirigentes do Partido Comunista, de Kashgar a Pequim, estão tão preocupados com a possibilidade de um terremoto que "isso os faz perder o sono".

Tradução: Paulo Migliacci ME

The New York Times
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