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Europa

Perseguido pela Stasi, músico alemão teve carreira prejudicada

10 nov 2009 - 09h16
(atualizado às 16h02)
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Julia Dócolas
Direto de Berlim

Sociedade controlada pelo governo, marcação cerrada à liberdade de expressão, autoritarismo político. George Orwell pode mesmo ser considerado um profeta. A obra 1984 soa como uma profecia sobre o que se tornaria rotina para mais de 16 milhões de pessoas que viviam na Alemanha Oriental na época da Guerra Fria, entre 1949 a 1990. A perseguição e vigilância da Stasi, a polícia secreta alemã, é o tema da segunda reportagem da série especial sobre os 20 anos da queda do Muro de Berlim que o Terra publica ao longo desta semana.

Christoph Kulicke na ponte Bösebrücke, na Bornholmer Strasse, primeira fronteira a ser aberta em Berlim
Christoph Kulicke na ponte Bösebrücke, na Bornholmer Strasse, primeira fronteira a ser aberta em Berlim
Foto: Julia Dócolas / Especial para Terra

Além da obra de Orwell, o longa-metragem A Vida dos Outros (2006), vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, é ainda mais fiel à realidade da República Democrática Alemã (RDA, ou DDR - Deutsche Demokratische Republik, alemão). O filme apresenta o minucioso trabalho do Ministério para a Segurança do Estado - a Stasi - de vigiar quem era suspeito de agir contra as ideologias da nação. Grampos telefônicos, microfones escondidos, câmeras, interrogatórios e ameaças eram algumas das medidas para encontrar supostos traidores.

A descoberta dessa perseguição em massa veio à tona anos mais tarde após o fim do regime - simbolizado pela queda do Muro de Berlim em 1989 - com a liberação dos arquivos repletos de informações, relatórios e documentos dos cidadãos que sustentavam a sociedade oriental alemã.

O controle começava cedo, ainda na escola, como conta o músico berlinense da antiga Orquestra Sinfônica de Berlim (atual Konzerthausorchester Berlin) Christoph Kulicke, 41 anos. Filho de um editor de livros e sem uma relação estreita com a política vigente, Kulicke, ainda na quinta série, teve de lidar com a pressão silenciosa por não ser membro dos movimentos juvenis do Estado.

"Para poder entrar na escola de música, tive que fazer duas provas. Uma com os conteúdos do currículo e outra sobre política. Tirei o segundo melhor resultado na primeira, mas não fui aceito na escola por não participar de nenhuma organização socialista. Meus pais recorreram, mas o recurso foi negado. Foi necessário acionar membros da Igreja Protestante. Eles contataram a direção do partido alegando que na RDA todos os cidadãos eram supostamente iguais. Depois de um ano, consegui entrar na escola, mas não como aluno oficial", conta.

Em função desta indiferença política, Kulicke e sua família foram perseguidos pela Stasi. Mas isso não os surpreendeu. Ser vigiado era algo normal.

"Quase todo mundo tinha uma pasta com relatórios de investigação, interrogatórios, pedidos de viagem, mandados de busca. Na minha ficha, tinha até a letra de uma música que um amigo meu escreveu e eu ajudei a corrigir, em 1987. De acordo com a Stasi, eu era um 'simpatizante da oposição'", relembra Kulicke, que tem guardado uma cópia de tudo que foi arquivado ao seu respeito.

O controle era feito em casa. Em cada edifício havia um síndico responsável pela administração do Hausbuch, o "livro da casa". Nesse livro, uma espécie de controle interno, constavam informações sobre a rotina dos moradores. Quem vinha visitar ou dormir lá, com que frequência viajavam, entre outros dados supostamente privados. Uma rotina parecida com a vivida por Georg Dreyman, de A Vida dos Outros.

Na obra dirigida por Florian Henckel von Donnersmarck, o personagem de Sebastian Koch, um famoso dramaturgo da Alemanha Oriental, começa a ser vigiado de perto pelo regime comunista, mesmo que, aparentemente, seja um cidadão "ideal" e não tenha nada a esconder.

"Como minha mãe tinha mais cinco irmãos em Berlim Ocidental, quando ela viajava, a Stasi vinha e perguntava se o casamento estava bem, se estávamos vendendo móveis, por exemplo. Eles desconfiavam que podíamos estar querendo fugir. Sorte que nós tínhamos um bom relacionamento com a vizinhança", conta.

E passar para o outro lado do muro não era uma tarefa fácil. Apenas um membro da família era autorizado a viajar e, mesmo assim, era necessário pedir o visto com seis semanas de antecedência, correndo o risco ainda de ele ser negado.

"O visto era concedido em determinados acontecimentos, como enterros e aniversários. Em 1972 a minha avó morreu e minha mãe não pode atravessar a fronteira para enterrá-la."

A vontade de viajar foi um dos motivos que fez o músico entrar para a Orquestra Filarmônica de Berlim. Dentro da Alemanha Oriental, apenas seis orquestras tinham permissão para viajar em turnê. E a rotatividade era grande. A cada viagem, era normal quando dois componentes fugiam.

Aos 21 anos, a primeira pizza
Mas os planos de cruzar a fronteira da Alemanha Oriental estavam mais próximos de Kulicke do que ele imaginava. Três meses depois de entrar para a orquestra, boatos sobre o fim da República Democrática da Alemanha eram cada vez mais frequentes. Até o dia em que Günter Schabowski (do Partido Socialista da Alemanha) declarou em uma coletiva de imprensa que a partir daquele momento as pessoas teriam "Reisefreiheit", liberdade para viajar pro oeste ou pra outros países.

Nesse dia, 9 de novembro de 1989, Kulicke, que ainda morava com os pais, acompanhou tudo pela TV até que o telefone tocou. Era uma amiga que morava em Berlim Ocidental. Eles combinaram de se encontrar em Bornholmer Str., a primeira fronteira aberta em função da pressão dos berlinenses do leste.

"Tinha muita gente lá. Os oficiais não tinham instrução do que fazer. Ou eles deixavam passar ou atiravam em todo mundo. Não precisei mostrar meu passaporte. Aos 21 anos, comi minha primeira pizza", lembra.

Mesmo com toda a liberdade de ir e vir e o alívio de não ser vigiado por ninguém, 20 anos depois, alguns alemães orientais, os "ossis", sentem falta da estabilidade social da RDA: todos tinham trabalho e o suficiente para viver, sistema de saúde e educação a preços acessíveis.

"Todo mundo estava feliz e se abraçando só naquele dia. Em seguida veio a realidade capitalista. O que ocorreu na verdade não foi uma reunificação, mas uma anexação", lamenta.

Não é apenas Kulicke que sente essa "ostalgia". Nas últimas eleições ocorridas em setembro, a maioria dos bairros que formavam Berlim Oriental votou a favor do Die Linke, o partido de esquerda. Em Treptow-Köpenick, por exemplo, o partido obteve 44,7% dos votos, enquanto a coalisão CDU (da chanceler Angela Merkel) e SPD alcançaram 20,8% e 18,2% respectivamente, segundo o jornal Berliner Morgenpost.

Mesmo com opiniões contrárias, celebrar os 20 anos da queda do muro no foi uma vontade unânime. A cidade se preparou desde o começo do ano para comemorar um fato que se tornou um símbolo de liberdade, para uma nação, de ossis e wessis, cheia de cicatrizes da história.

Fonte: Especial para Terra
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