Num memorando visto como passo importante por ativistas da legalização e especialistas, o Departamento de Justiça (DOJ) recomendou que procuradores federais não enfrentem leis estaduais que autorizaram o uso recreativo da maconha nos Estados de Colorado e Washington, sugerindo adotar uma regulamentação sólida e prometendo intervir apenas se descobrir problemas, como menores de idade tendo acesso à droga. A decisão esquentou o debate no país sobre a legalização e suscitou a primeira audiência pública no Senado para tratar do assunto.
A mudança de atitude diante do conflito entre leis federais e estaduais também envolve aspectos mais triviais do comércio legalizado de maconha: antes alertando bancos a não processar transações da droga nos Estados em que são permitidas, o procurador-geral, Eric Holder, disse numa teleconferência com os governadores de Colorado e Washington que o DOJ estuda como permitir que bancos participem dessas transações, citando o risco de assaltos a lojas forçadas a operar em espécie.
Memorando Cole |
Documento assinado pelo subsecretário de Justiça dos EUA, James Cole, reafirma que a maconha é uma droga proibida pela legislação federal, mas entrega às autoridades estaduais a responsabilidade para intervir a partir da legislação de cada unidade federativa. |
A Comissão Judiciária do Senado americano realizou uma audiência pública na terça-feira para debater o memorando Cole, como ficou conhecido o documento federal. O senador republicano Chuck Grassley criticou a nova orientação, alegando que Colorado já se tornou um importante exportador de maconha e os EUA participam de um tratado com outros 180 países para apenas permitir o uso medicinal e científico da droga. Já o presidente da comissão, senador democrata Patrick Leahy, instou o Congresso a adotar uma nova abordagem, afirmando que a criminalização absoluta contribuiu para aumentar a população carcerária do país e afetou desproporcionalmente minorias raciais.
John Urquhart, xerife do Condado de King, no Estado de Washington, também disse na audiência que a “guerra contras as drogas fracassou e os eleitores resolveram tentar algo diferente”, antes de prometer que o sistema no Estado de Washington não é o “Velho Oeste”. “Deixei muito claro para meus policiais: Vocês vão fiscalizar as leis de maconha, multar quem estiver fumando em público, garantir que menores não estão comprando. Vocês vão fechar lojas [de maconha] que não tiverem licença”.
Pesquisa conduzida em março pelo Pew Research Center com 1.501 adultos nos EUA mostrou, pela primeira vez em quatro décadas, que 52% apoiam a legalização da droga e 48% dizem que já experimentaram. A porcentagem dos favoráveis à legalização é ainda maior entre os nascidos a partir de 1980, chegando a 65%.
Vinte dos 50 Estados americanos e o distrito federal já aprovaram a maconha medicinal. O governador do Colorado, John Hickenlooper, sancionou em junho várias leis para regulamentar o mercado estadual e solicitou novos impostos para financiar as agências que monitorarem o sistema. O Estado de Washington está seguindo o mesmo caminho e, no meio do mês passado, policiais distribuíram no evento pró-maconha Seattle Hempfest saquinhos de Doritos com uma cartilha sobre as novas leis estaduais.
O que dizem especialistas
Mark Kleiman, professor de políticas públicas da Universidade da Califórnia e consultor do Estado de Washington na implantação do seu mercado de maconha, disse que os EUA podem legalizar a droga daqui a dez anos, embora alerte para a precariedade de tais previsões. Ele também sugeriu que é preciso limitar a propaganda de maconha, como já acontece com álcool e cigarros.
Beau Wilmer, analista da centro mundial de pesquisas Rand Corporation e co-autor, com Kleiman, do livro “Marijuana Legalization: What Everyone Needs to Know” (Legalização da Maconha: O que todos precisam saber, na tradução livre), disse que o debate sobre legalização cresceu após a legislação na Califórnia, em 2000. “Agora, com o memorando Cole, acredito que uma fatia ainda maior do país participará do debate sobre a legalização nos próximos anos”. Wilmer disse que o memorando pode até influenciar as políticas de outros países.
Robert Mikos, professor de direito da Universidade Vanderbilt e especialista nos conflitos entre leis federais e estaduais de maconha, disse que o memorando foi uma mudança importante. “Ela deve simplificar muito e até facilitar os esforços estaduais para substituir a proibição da maconha com regulamentação”. A mudança também significa um alívio para produtores e distribuidores, que não precisarão mais se preocupar com a repressão de agentes federais nos Estados que legalizaram a droga.
Mas Mikos alerta que o memorando pode ser difícil de cumprir porque procuradores federais têm muita independência na esfera local e podem simplesmente ignorar a orientação.
Bill Piper, diretor nacional da Drug Policy Alliance, um ONG que faz campanha para reformar as leis antidrogas dos EUA, defende que o memorando é um aviso a outros Estados interessados em legalizar a droga de que eles têm pouco a perder e muito a ganhar. “É muito provável que projetos de lei para acabar com a criminalização federal ganhem um impulso”, disse Piper.
A decisão foi duramente atacada por grupos contrários à legalização, mostrando o quão abrangente ela foi. “Veremos mais acidentes de trânsito com pessoas drogadas, mais jovens abandonando o ensino médio e mais problemas de saúde quando começar a surgir uma grande indústria da maconha oferecendo seus produtos a jovens e minorias raciais”, escreveu Patrick J. Kennedy, sobrinho de John F. Kennedy e co-fundador do grupo contrário à legalização Project SAM (Smart Approaches to Marijuana). Associações de chefes de polícia, xerifes e investigadores de narcóticos também enviaram uma carta a Holder afirmando que a decisão dificultará o trabalho deles.