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Estados Unidos

EUA: como prisioneiros venceram alunos de Harvard em debate

Detentos fazem parte de um programa desenvolvido pela faculdade Bard, no estado de Nova York

8 out 2015 - 18h36
(atualizado às 19h42)
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Habilidade argumentativa de alunos detentos contra estudantes de Harvard impressionou juízes (Foto: Jared Ames)
Habilidade argumentativa de alunos detentos contra estudantes de Harvard impressionou juízes (Foto: Jared Ames)
Foto: Bard Prison Initiative | Jared Ames

No final de setembro, estudantes de Direito na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e detentos de um presídio de segurança máxima por crimes violentos sentaram-se lado a lado para um debate.

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Competições do tipo, em que duas equipes debatem um tema pré-selecionado, são comuns em instituições de ensino americanas. Um painel neutro de juízes deveria escolher qual das equipes se saiu melhor.

Os estudantes de Harvard tinham acabado de vencer uma competição nacional e uma mundial, mas os argumentos dos prisioneiros foram mais fortes - e impressionaram os juízes.

Os detentos fazem parte de um programa desenvolvido pela faculdade Bard, no estado de Nova York, que oferece a homens e mulheres do Centro Penal do Leste de Nova York cursos universitários gratuitos.

A equipe debatedora da prisão, formada por três homens, teve que argumentar que escolas públicas devem ter o direito de negar matrículas a alunos cujos pais entraram ilegalmente nos Estados Unidos, como é o caso de muitos imigrantes.

Os debatedores venceram, segundo Mary Nugent, uma das juízas, por argumentar que as escolas que acabam aceitando estes alunos geralmente têm qualidade pior e que, se elas se recusassem a fazê-lo, escolas de alto nível e ONGs poderiam oferecer a eles uma educação de melhor qualidade.

Homens e mulheres presos podem frequentar aulas de mais de 60 disciplinas a cada semestre (Foto: Peter Mauney)
Homens e mulheres presos podem frequentar aulas de mais de 60 disciplinas a cada semestre (Foto: Peter Mauney)
Foto: Bard Prison Initiative | Peter Mauney

Os estudantes de Harvard, disse Nugent ao jornal The Wall Street Journal, não conseguiram responder completamente à argumentação.

Mas apesar dos argumentos fortes, os presos não concordavam com a premissa inicial. Um deles afirmou após o debate que jamais defenderia impedir que uma criança pudesse estudar.

Dois dias após a derrota, a equipe de Harvard escreveu em sua página no Facebook. "Poucas equipes das quais perdemos nos deixaram tão orgulhosos quanto o time incrivelmente articulado e inteligente que enfrentamos neste fim de semana".

De acordo com dados divulgados pela faculdade, apenas 2% dos detentos que se formaram pelo programa voltaram à ser detidos nos três anos seguintes (medida padrão da reincidência nos EUA).

Em geral, o índice de reincidência no estado é de 40%, segundo o Departamento de Supervisão de Correções e Comunidade de Nova York.

Confira algumas das estratégias que têm garantido o sucesso do projeto de educação dos presos.

Alguns dos ex-alunos nas prisões onde funciona o projeto dão sequência aos estudos em outras universidades (Foto: China Jorrin)
Alguns dos ex-alunos nas prisões onde funciona o projeto dão sequência aos estudos em outras universidades (Foto: China Jorrin)
Foto: Bard Prison Initiative | China Jorrin

Seleção rigorosa e cobrança

Segundo o site do Bard Prison Initiative (BPI), a concorrência ao projeto é de 10 presos por vaga. Só podem participar os condenados que completaram o ensino médio. Eles têm de escrever um ensaio e participar de uma entrevista. Cerca de 85% deles abandonaram a escola e completaram os estudos já na prisão.

Por isso, é comum que presos só entrem após a segunda ou terceira tentativa.

A gerente de desenvolvimento do projeto, Laura Liebman, afirma que o rigor na seleção "ajuda a determinar quais dos presos estarão realmente comprometidos com os estudos e têm paixão por aprender". "É uma experiência de universidade intensa e exigente", disse ela à BBC Brasil em entrevista por e-mail.

Segundo o fundador do programa, Max Kenner, os estudantes na prisão são "cobrados pelos mesmos padrões, com o mesmo rigor e expectativa dos estudantes do campus principal da Bard. Eles não são tratados com condescendência pelos professores".

Currículo e professores de alto nível

O BPI foi criado em 1999 e já funciona em seis prisões de segurança média e máxima no estado de Nova York, oferecendo mais de 60 disciplinas a cada semestre – incluindo literatura, língua estrangeira, filosofia, história e ciências sociais, matemática, ciências e artes.

Atualmente, cerca de 300 homens e mulheres participam do programa, que começou com apenas 15 pessoas. Todas as aulas são ministradas presencialmente nos presídios por professores da Bard College que recebem normalmente por seus serviços.

Mas o projeto também já recebeu professores visitantes de universidades como a Columbia e a Universidade de Nova York (NYU).

Os prisioneiros, segundo o site oficial do BPI, seguem o mesmo currículo e têm as mesmas aulas que alunos regulares da faculdade.

A maioria dos detentos se forma em ciências sociais, literatura e humanidades, segundo Liebman. No entanto, metade das formaturas mais recentes foi na área de ciências matemáticas.

Debates 'amistosos'

Os alunos dos presídios têm que estudar sem acesso à internet, de acordo com as regras do sistema prisional americano. Para se preparar para os debates, que geralmente são sobre temas atuais, eles precisam pedir livros, jornais e revistas para a administração do presídio, o que pode levar semanas.

Mesmo assim, os alunos do presídio Centro Penal do Leste de Nova York sugeriram a criação de uma equipe debatedora ao seu professor de oratória. E eles já tinham se habituado a vencer antes mesmo de enfrentar Harvard.

Os debatedores levaram a melhor contra alunos da Universidade de Vermont, no Canadá, e da tradicional academia militar americana West Point.

Os embates com os alunos da academia militar acabaram se repetindo e se tornaram uma "rivalidade saudável". Até agora, o placar é 1 a 1. "A equipe de debate ajuda a melhorar as habilidades que a Bard enfatiza em todos os seus alunos: pensamento crítico e escrita, forte habilidade analítica e talento para se comunicar efetivamente. Além disso, a experiência cria um sentimento de camaradagem e comunidade", diz Liebman.

Treinamento profissional

Além de poderem conseguir seus diplomas universitários na prisão, alguns dos presos que estão próximo de serem libertados também recebem treinamento profissional.

De acordo como Liebman, enquanto ainda estão presos, os alunos podem fazer até sete cursos em saúde pública – que em breve deve incluir estágios na área –, tecnologia da computação (onde podem aprender programação e web design, entre outros) e sistemas de alimentação, que inclui a oportunidade de aprender a cultivar alimentos.

Boa parte do material produzido nos cursos é doada para instituições locais. "Nós ajudamos os alunos com colocação no mercado de trabalho e orientação vocacional. Cultivamos relacionamentos com empregadores que sabem que nossos alunos são muito talentosos. Isso significa que conseguimos empregos para todos os que querem, cerca de dois a três meses após sua libertação", diz Liebman.

"Muitos alunos escolheram trabalhar em organizações humanitárias que ajudam populações vulneráveis em Nova York, como jovens em risco, sem-teto, usuários de drogas e ex-detentos. Mas outros estão administrando negócios de sucesso ou trabalhando em organizações importantes de justiça."

Caso deixem a prisão antes de terminar os estudos, os alunos contam com a ajuda de profissionais do programa para se matricularem em outras universidades no estado.

Há casos de alunos que concluíram estudos avançados em universidades renomadas como NYU, Columbia e Yale. "Ajudamos os estudantes a conseguir bolsas e ajuda financeira para continuar os estudos lá fora. E muitos também trabalham enquanto estudam", afirma Liebman.

O BPI tem orçamento anual de aproximadamente US$ 2,5 milhões, mas não recebe dinheiro público.

A estrutura do projeto é completamente financiada por doadores privados de pessoas físicas e organizações filantrópicas, como a Ford Foundation e a Open Society Foundation. Parte do dinheiro também é usada para apoiar iniciativas semelhantes em outros estados americanos.

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