À medida que as lideranças mundiais caminham na direção de uma intervenção militar na Síria, vêm à tona os problemas da legalidade, dos caminhos e das consequências de uma ação externa para conter um conflito interno. A situação síria, tornada crítica pelo uso de armas químicas contra a população civil, representa um delicado xadrez para a comunidade internacional, mas esta dispõe de um exemplo recente de comparação: a Líbia.
Em 2011, mesmo ano do início dos conflitos na Síria, também os líbios viviam sua manifestação própria da chamada 'Primavera Árabe'. Mas os protestos, tal como na Síria, logo evoluíram para violentos confrontos entre forças do regime e da oposição. Diferentemente da Síria, no entanto, cedo a Líbia se tornou alvo de uma intervenção, que durou mais de meio ano e teve como resultado a mudança de rumo do conflito, vencido pelos rebeldes que desafiavam o regime do coronel Muammar Kadafi.
Os protestos na Líbia começaram em fevereiro de 2011, cerca de um mês antes das manifestações na Síria. Politicamente, a situação de ambos os países era relativamente similar: a Líbia vivia havia 40 anos em um regime altamente centralizado e não constitucional liderado por Kadafi, ao passo que a Síria vive o mesmo tempo sob a égide dos Assad.
Diferentemente do curso dos eventos no país do Oriente Médio, todavia, rapidamente os conflitos tomaram forma de violentos confrontos entre as forças de Kadafi e dos rebeldes.
Mais que isso: cedo se observou uma forte disparidade entre os lados do conflito. Embora saibamos que o Exército é muito mais forte que os rebeldes sírios, o gradiente de poder era mais radical na Líbia, de modo que, em poucas semanas, os insurgentes estavam sendo esmagados.
Além de uma situação humana relativamente mais drástica que na Síria, na Líbia também havia a diferença dos interesses externos. Na Síria, o presidente Assad é aliado de Rússia e China, e sua oposição é próxima de aliados das potências ocidentais. Na Líbia, o coronel Kadafi e seu governo autocrático já não mais nutriam grandes laços com as grandes potências ocidentais ou orientais, e todos - em especial os europeus - tinham interesse nas reservas de petróleo do país africano.
Desafios e resultados do intervencionismo na Líbia
Essas diferenças - de disparidade de forças, interesses em jogo e laços de aliança - permitiram que a comunidade internacional chegasse cedo a uma ação na Líbia. Em 17 de março, poucas semanas depois do início dos conflitos, o Conselho de Segurança se reuniu e aprovou a resolução 1973 que autorizava uma intervenção internacional para conter as contínuas mortes na Líbia. A resolução estabelecia um embargo de armas a Kadafi, criava uma zona de exclusão aérea no país, mas impedia que as forças internacionais enviassem tropas para o solo africano.
A resolução foi encabeçada por França e Reino Unido, a dupla europeia que mantém a postura mais favorável a uma intervenção hoje na Síria. Os Estados Unidos esquivaram-se do protagonismo, mas votaram a favor da resolução, que acabou aprovada com 10 votos a favor e cinco abstenções (levando em conta membros permanentes e rotativos). Rússia e China, que hoje bloqueiam qualquer resolução mais incisiva sobre a Síria, abstiveram-se da decisão líbia, abrindo caminho - mas não participando - da intervenção. (O Brasil também se absteve.)
Em termos de objetivo, aquilo a que a resolução 1973 se propôs e aquilo a que a comunidade ocidental hoje propõe compõem objetivos similares: interromper a chacina de civis, e não contribuir para a “mudança de regime”, como têm afirmado os Estados Unidos. Foi assim que, no dia 19 de março, aviões e navios se aproximaram da costa líbia e começaram a intervenção, liderada pela Otan.
Mas a intervenção líbia, ainda que destinada à interromper as mortes, foi decisiva para enfraquecer as tropas de Kadafi e, ao mesmo tempo, possibilitar que os rebeldes, recebendo ajuda independente internacional, se fortalecessem e avançassem sobre o oeste líbio dominado pelo coronel. Este novo ordenamento de forças durou meses e teve como ápice o outubro de 2011, que no dia 20 viu Kadafi ser encurralado e morto na cidade natal de Sirte, dias depois da queda de Trípoli para os rebeldes. A intervenção simbolicamente terminou no dia 31, pouco depois da queda de Kadafi.
Doze fotos contam um ano de insurreição na Líbia
Fevereiro - Veículos destruídos após bombardeio do regime líbio são fotografados no dia 25. Após protestos iniciados no dia 13, a repressão governamental explode no dia 17, o chamado "Dia da Coléra", e o exército começa a usar fogo real. Os rebeldes tomam as cidades de Benghazi e Jalu já no dia 21 e, no dia seguinte, o líder líbio Muammar Kadafi diz que não deixará o poder e que está disposto a morrer. A ONU aprova as primeiras sanções contra o regime no dia 27
Foto: AFP
Março - Caça do exército líbio incendeia após ser atingido por forças rebeldes em Benghazi , no dia 19. Os rebeldes iniciam a ofensiva rumo a oeste no dia 4. Entre os dias 6 e 16, as tropas de Kadafi fazem uma intensa ofensiva contra os insurgentes, o que leva a ONU a aprovar no dia 17 a resolução 1.973, para tomar "todas as medidas necessárias" para proteger a população civil
Foto: AFP
Abril - Jovem rebelde é socorrido em clínica improvisada em casa de Misrata, no dia 29. Após um mês de intensivos ataques a posições de Kadafi, a artilharia aérea da Otan realiza uma investida à capital Trípoli que termina com a morte do filho mais novo e três netos de Kadafi. Em abril, também aumentam as tensões sobre a legalidade da intervenção militar na Líbia, que estaria indo além da proteção aos civis
Foto: AFP
Maio - Rebelde líbio exibe a bandeira monárquica ao lado de avião kadafista em Misrata, no dia 29. No dia 17, o Tribunal Penal Internacional emite ordem de prisão contra Kadafi por crimes contra a humanidade. No dia 24, um novo ataque da Otan em Trípoli, o maior desde o início de suas operações, causa 19 mortos e 150 feridos, todos civis
Foto: AFP
Junho - Nuvem de fumaça se ergue após bombardeio da Otan nas proximidades do complexo residencial de Kadafi em Trípoli, no dia 7. A ofensiva rebelde prossegue com a tomada de Yafran, a apenas 10 km de Trípoli. No campo diplomático, Espanha e França se juntam aos países que reconhecem o Conselho Nacional de Transição líbio, o órgão oficial dos rebeldes, como o governo legítimo do país
Foto: AFP
Janeiro/fevereiro 2012- Militantes líbios festejam um ano de revolução no país em Trípoli, no dia 14 de fevereiro. Uma série de confrontos entre tribos eclode no país. No mais notório deles, no dia 23, milicianos tomam o controle de Bani Walid, mas a cidade é logo liberada nos dias seguintes. No dia 4 de fevereiro, inicia o primeiro julgamento de partidários de Kadafi. A Líbia celebra no dia 17 o 1º aniversário que mudou os rumos e livrou o país de 42 anos de regime Kadafi
Foto: AP
Agosto - Rebeldes celebram ao redor de icônica estátua de um punho de ouro após a tomada do complexo residencial de Kadafi, em Trípoli, no dia 23. No dia 2, os rebeldes anunciam estar às portas de Trípoli, após terem tomado Brega e a refinaria de Zawiyah. Após avançarem em Trípoli, os rebeldes anunciam no dia 21 a tomada da capital do país e do complexo em que Kadafi morava, mas o coronel não é encontrado
Foto: AFP
Setembro - O premiê britânico, David Cameron (esq.), e o presidente francês, Nicolas Sarkozy (dir.), visitam hospital em Trípoli no dia 15. Cameron e Sarkozy se tornam as primeiras autoridades a visitar Trípoli após a queda do regime de Kadafi. A Assembleia-Geral da ONU reconhece em 16 de setembro o CNT como governo líbio. Também em setembro, familiares próximos de Kadafi deixa a Líbia e buscam refúgio nos vizinhos Níger e Argélia
Foto: AFP
Outubro - Corpo de Muammar Kadafi é exibido em Sirte no dia 20. A revolução na Líbia atinge o seu ápice em outubro com a fase final da ofensiva rebelde sobre os últimos enclaves kadafistas de Bani Walid e Sirte. No dia 20, os rebeldes tomam Sirte, capturam e matam Muammar Kadafi e seu filho Mutassim ¿ as imagens dos corpos mortos são exibidas para todo mundo. Três dias depois, o CNT anuncia a libertação total da Líbia. A Otan encerra a intervenção militar no país no dia 31
Foto: AFP
Novembro - Saif al-Islam é fotografado após ser capturado. Al-Islam, tido como herdeiro político de Kadafi e o último filho do coronel que ainda permanecia com paradeiro desconhecido, é capturado no dia 19, encerrando a caçada à família do ex-ditador
Foto: AP
Dezembro - A cidade de Sirte é fotografada no dia 19. No dia 17, os Estados Unidos levantam as sanções impostas à Líbia. Horas mais tarde, o chefe do Pentágono, Leon Panetta, chega ao país para avaliar as necessidades do governo de transição. Também em dezembro, países da União Europeia descongelam bilhões de dólares do governo líbio que haviam sido depositados em bancos do continente pelo regime de Kadafi
Foto: AFP
Julho - Rebelde ruma para o campo de batalha em Brega, no dia 14. A ofensiva insurgente prossegue com a tomada de um enclave oriental em Brega, onde está situado um importante complexo petrolífero. No início do mês, organismos de direitos humanos reportam que 1,2 milhão de pessoas deixaram o país desde o início da revolução
Foto: AFP
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Desafios e resultados de um intervencionismo na Síria
Assim, olhando em retrospecto, a intervenção líbia apresenta muitas semelhanças, mas essenciais diferenças com a possível intervenção síria. A Síria dificilmente será um caso de acordo no Conselho de Segurança, o que retira o respaldo da ONU para qualquer ação, que recairia sobre os ombros de um movimento multilateral independente, mais caro e certamente mais polêmico.
A intervenção líbia também durou vários meses, e nisso parece diferir essencialmente das principais especulações americanas, que falaram na sexta, 30 de agosto, em uma “ação limitada e estreita”. O objetivo é o mesmo: interromper a chacina de civis, mas isso poderia também configurar uma especial dificuldade na Síria. Encravado no coração do Oriente Médio, o país tem acesso mais complexo que a Líbia e suas maiores cidades estão a poucos quilômetros de outros importantes atores regionais, como Líbano, Turquia e Turquia. Essa contiguidade aumenta o grau de complexidade da intervenção e da necessidade de precisão da mesma.
E quais seriam a consequências da intervenção? E se a intervenção para “proteger a população” resultasse, pouco a pouco, no enfraquecimento das tropas de Assad e, pouco depois, na vitória rebelde? Que impactos isso traria às relações do Conselho de Segurança? E qual seria o destino de Assad e sua elite política numa Síria dos rebeldes? E como estes seriam julgados pelos crimes de que são acusados por Assad?
Isso compõe um quadro que talvez configure a principais diferença entre Líbia e Síria. Na Líbia, a ação foi tomada rapidamente e não permitiu que inúmeros casos de acusações mútuas de atrocidades compusessem um quadro complexo para a justiça do pós-guerra. E esse é o caso da Síria: renegada e ignorada, e incapaz de resolver sua própria crise, sua intervenção tem, ao menos em teoria, o poder de gerar consequências igualmente delicadas e polêmicas.
Ataque com armas químicas mata centenas na Síria
Menino vítima de ataque com armas químicas recebe oxigênio
Foto: Reuters
Menina é atendida em hospital improvisado após o ataque
Foto: AP
Homens recebem socorro após o ataque com arma químicas, relatado pela oposição e ativistas
Foto: AP
Mulher que, segundo a oposição, foi morta em ataque com gases tóxicos
Foto: AFP
Homens e bebês, lado a lado, entre as vítimas do massacre
Foto: AFP
Corpos são enfileirados no subúrbio de Damasco
Foto: AFP
Muitas crianças estão entre as vítimas, de acordo com imagens divulgadas pela oposição ao regime de Assad
Foto: AP
Corpos das vítimas, reunidos após o ataque químico
Foto: AP
Imagens divulgadas pela oposição mostram corpos de vítimas, muitas delas crianças, espalhados pelo chão
Foto: AFP
Meninas que sobreviveram ao ataque com gás tóxico recebem atendimento em uma mesquita
Foto: Reuters
Ainda em desespero, crianças que escaparam da morte são atendidas em mesquita no bairro de Duma
Foto: Reuters
Menino chora após o ataque que, segundo a oposição, deixou centenas de mortos em Damasco
Foto: Reuters
Após o ataque com armas químicas, homem corre com criança nos braços
Foto: Reuters
Criança recebe atendimento em um hospital improvisado
Foto: Reuters
Foto do Comitê Local de Arbeen, órgão da oposição síria, mostra homem e mulher chorando sobre corpos de vítimas do suposto ataque químico das forças de segurança do presidente Bashar al-Assad
Foto: Local Committee of Arbeen / AP
Nesta fotografia do Comitê Local de Arbeen, cidadãos sírios tentam identificar os mortos do suposto ataque químico das forças de segurança do presidente Bashar al-Assad
Foto: Local Committee of Arbeen / AP
Homens esperam por atendimento após o suposto ataque químico das forças de segurança da Síria na cidade de Douma, na periferia de Damasco; a fotografia é do escrtitório de comunicação de Douma
Foto: Media Office Of Douma City / AP
"Eu estou viva", grita uma menina síria em um local não identificado na periferia de Damasco; a imagem foi retirada de um vídeo da oposição síria que documenta aquilo que está sendo denunciado pelos rebeldes como um ataque químico das forças de segurança da Síria assadista
Foto: YOUTUBE / ARBEEN UNIFIED PRESS OFFICE / AFP
Nesta imagem da Shaam News Network, órgão de comunicação da oposição síria, uma pessoa não identificada mostra os olhos de uma criança morta após o suposto ataque químico de tropas leais ao Exército sírio em um necrotério improvisado na periferia de Damasco; a fotografia, de baixa qualidade, mostra o que seria a pupila dilatada da vítima
Foto: HO / SHAAM NEWS NETWORK / AFP
Rebeldes sírios enterram vítimas do suposto ataque com armas químicas contra os oposicionistas na periferia de Damasco; a fotografia e sua informação é do Comitê Local de Arbeen, um órgão opositor, e não pode ser confirmada de modo independente neste novo episódio da guerra civil síria
Foto: YOUTUBE / LOCAL COMMITTEE OF ARBEEN / AFP
Agências internacionais registraram que a região ficou vazia no decorrer da quarta-feira
Foto: Reuters
Mais de mil pessoas podem ter morrido no ataque químico, segundo opositores do regime de Bashar al-Assad
Foto: Reuters
Cão morto é visto em meio a prédios de Ain Tarma
Foto: Reuters
Homens usam máscara para se proteger de possíveis gases químicos ao se aventurarem por rua da área de Ain Tarma
Foto: Reuters
Imagem mostra a área de Ain Tarma, no subúrbio de Damasco, deserta após o ataque químico que deixou centenas de mortos na quarta-feira. Opositores do governo sírio denunciaram que forças realizaram um ataque químico que matou homens, mulheres e crianças enquanto dormiam
Foto: Reuters
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