PUBLICIDADE

Distúrbios no Mundo Árabe

Desertar, cair e sobreviver: relato de um "veterano" de 21 anos na Síria

No segundo aniversário do início da guerra e da repressão, conheça o que ocorre nas ruas e nas trincheiras de Aleppo. Histórias de uma crise humanitária que ainda espera resposta da comunidade internacional

10 mar 2013 - 13h19
(atualizado às 13h19)
Compartilhar
Exibir comentários
Ahmed perdeu parte da perna direita após ser atingido por um tiro de AK-47
Ahmed perdeu parte da perna direita após ser atingido por um tiro de AK-47
Foto: Mauricio Morales / Terra

Os vídeos dos massacres, execuções, assim como a notícia da morte de lendária repórter de guerra Marie Colvin, começaram a dar a volta ao mundo, a fazer que o mundo olhasse para a Síria. A guerra era uma foto.

Nos quartéis, tudo era silêncio e medo, aqueles que alguma vez fizeram piadas ou comentários desavisados contra o presidente Bashar al-Assad foram imediatamente separados e investigados, muitos terminaram presos, outros tiveram pior sorte. Quando começou a insurreição, muitos soldados tinham claro de que lado combatiam. As pessoas começaram a sair às ruas para protestar e o Exército respondeu com balas.

Antes de ser recrutado pelo Exército, *Ahmed vivia em um povoado próximo a Aleppo. Como muitos garotos de sua geração, deixou sua família e se mudou para uma base para prestar serviço militar, antes de a chamada revolução começar. Estava animado, inclusive pensou que podia seguir esta carreira. Recém completara 19 anos.

Trotar, correr; aprender a disparar e a esquivar, assim começou a se formar um guerreiro no Exército. Muito distante estava sua família e sua mãe, que dificilmente conseguia distinguir o orgulho da angústia pelo destino do filho.

As ruas eram o cenário do que se acreditava ser outra revolução da chamada Primavera Árabe. Essas revoltas sangrentas, mas curtas, que atingiam seus objetivos em poucos meses. O que os sírios não esperavam era um cenário em que ninguém - especialmente as potências - quer se meter. Derrubar Assad, um regime que na verdade se iniciou em 1970, quando seu pai chegou ao poder, custaria muitas vidas.

Assad respondeu com balas. Os rebeldes tiveram que se armar e o fizeram rapidamente. Não era uma ideia nova. Foi alimentada por anos, enquanto a elegante esposa de Assad saía na revista Vogue, representando a ocidentalização e uma suposta secularização de um país de maioria sunita. Não era difícil prever que muitos grupos, especialmente muçulmanos, alimentavam seu descontentamento e a chama de um levante armado.

Prédios abandonados se transformaram em locais estratégicos para franco-atiradores
Prédios abandonados se transformaram em locais estratégicos para franco-atiradores
Foto: Mauricio Morales / Terra

Ahmed ganhou uma licença para visitar sua família. Quando abraçou seus amigos de quartel, sabia que seria a última vez que os veria e, quiçá, algum dia teria eles sob a mira de seu fuzil de assalto. Estava decidido a desertar e entrar para as fileiras do recém-nascido Exército Livre Sírio (ELS). Tinha 20 anos e diz com orgulho que foi o primeiro em Aleppo a mudar de lado.

Às lágrimas, uma vez mais diria adeus a sua mãe, a seu pai e a seus pequenos irmãos. Agora lutaria contra o Exército que o treinou. As deserções de soldados leais a Assad aumentam e cada dia em todo o país, não apenas por serem contra a barbárie contra a população, mas por não terem munição nem comida ou seguindo ordens de superiores e funcionários do governo.

Ahmed voltou a Aleppo e ainda que estivesse a um ano e meio no Exército, não conhecia a guerra. Não foi difícil conseguir um rifle AK-47, arma símbolo das revoluções. Na Síria, alguns o consideram a arma mais poderosa das últimas décadas. Pode chegar a disparar 30 tiros em poucos segundos, ultrapassando coletes à prova de balas de pouca resistência, portas de madeira, ossos e músculos.

Crianças observam a atividade do fotógrafo em meio à destruição em Aleppo
Crianças observam a atividade do fotógrafo em meio à destruição em Aleppo
Foto: Mauricio Morales / Terra

Ainda mais fácil foi encontrar um grupo rebelde que o aceitasse. Depois de algumas perguntas, lhe entregaram um fuzil, coletes e munição. Foi designado para um grupo em uma das frentes da cidade. Começava 2012, eram esperados severos combates durante o verão sírio, enfrentamentos, ofensivas, tomadas e retomadas.

Os tanques do governo começavam a entrar na cidade, antecedidos por fortes golpes de artilharia e bombardeios com aviões MIG-21. Com o envio de mais tropas para os subúrbios, começaram duros meses de batalha em Aleppo. Era junho, helicópteros zumbiam no céu enquanto metralhavam posições rebeldes, bairros completos do que costumava ser a capital econômica da Síria ficaram destruídos. O sangue começava a correr nas ruas, era uma das ofensivas mais fortes do governo. Ainda faltava mais.

Descrever uma trincheira em Aleppo é descrever trincheiras de qualquer guerra. Escombros cobrem as posições, cozinhas improvisadas, recantos para as necessidades físicas, sangue nas paredes, cartuchos no chão, corpos apodrecendo sem a possibilidade de serem recolhidos. Os rostos dos jovens que não dormem há dias observando uma escuridão que os devora e de onde sabem que certamente dali sairá as balas, rompendo o silêncio da noite e anunciando a morte.

Hoje, Ahmed conta com a ajuda de amigos e não viu mais a família, que vive em uma parte isolada da cidade
Hoje, Ahmed conta com a ajuda de amigos e não viu mais a família, que vive em uma parte isolada da cidade
Foto: Mauricio Morales / Terra

Em uma dessas trincheiras estava Ahmed. O suor e a sujeira misturada com a de seus irmãos, o que só ocorre em situações em que a vida e morte disputam para ver quem ganha a cada segundo. Tudo pela vitória contra Assad e com a firme convicção de que o fariam até a última bala e gota de sangue, como fez um de seus amigos que caiu em uma rua de Aleppo e quem espera encontrar no paraíso.

Em setembro, o avanço das forças do ELS fazia retroceder as forças leais ao governo, as frentes moviam e avançavam, ainda que a batalha estivesse - a ainda está - longe de acabar. Sem dúvida, temia as bombas dos caças, a artilharia, mas não o combate terrestre. "Quando podes ver aquele que vai te matar e matá-lo, a luta é mais justa", diz com seriedade.

Paulatinamente, franco-atiradores começaram pouco a pouco a ocupar posições nos edifícios destruídos. Começava uma nova fase da guerra, na qual o medo de uma bala que vinda de qualquer lugar era um novo temor dos civis, e dos combatentes.

Num dia qualquer, num combate qualquer desse setembro, uma bala de um AK-47 atravessou a perna de Ahmed, destroçando a tíbia e o perônio. Sentiu o impacto, mas não sentiu a dor. "Há um ponto em que a dor física fica tão forte e palpável que parecer uma bênção", lembra. Desmaiou.  

Despertou depois de alguns dias em um hospital de Al-Baab, onde médicos voluntários egípcios atenderam suas feridas. Sua perna direita fora amputada do joelho para abaixa. No entanto, quando os médicos lhe deram a notícia, um grande sorriso apareceu em seu rosto. Tinha sacrificado sua perna direita pelo seu país.

Atualmente, passa o tempo na casa de amigos que lhe estenderam a mão. Lê, vê filmes em inglês. Ocasionalmente o ELS lhe dá algum dinheiro para sobreviver. Ainda não conseguiu ver sua família, porque eles estão em uma zona controlada pelas forças do governo. Espera uma prótese que pode demorar muito ou, simplesmente, nunca chegar.

Ahmed disse que seu futuro não lhe importa, o futuro "já viveu". Agora só pensa na queda do governo, o resto não interessa. É um veterano que se sacrificou por seu país. Como muitos outros, começa a viver de memórias. Em uma guerra , a conta chega para todo mundo, alguns têm de reunir as peças físicas, as mentais serão mais difíceis de amarrar. Nada mais será o mesmo. Jamais. 

Fonte: Terra
Compartilhar
Publicidade
Publicidade