Dilma adia visita de Estado aos EUA após denúncias de espionagem
A presidente Dilma Rousseff adiou nesta terça-feira a visita de Estado que faria a Washington em outubro, por considerar que ainda não foi alcançada uma "solução satisfatória" para as denúncias de que os Estados Unidos espionaram comunicações pessoais da presidente, de empresas e cidadãos brasileiros.
Dilma decidiu adiar a viagem em comum acordo com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, apesar de ter mantido uma conversa de 20 minutos por telefone com ele na noite de segunda-feira numa última tentativa de salvar a viagem.
A decisão da presidente, anunciada em nota divulgada pelo Palácio do Planalto, é um duro golpe nas relações entre Brasil e Estados Unidos, que melhoraram sensivelmente desde a posse de Dilma em 2011, mas foram abaladas pelas denúncias de que a Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA) espionou emails, mensagens de texto e telefonemas entre a presidente e assessores.
Tanto o governo brasileiro quanto o norte-americano afirmaram que a decisão de adiar a viagem foi tomada de comum acordo. Apesar do anúncio de adiamento dos dois governos, no entanto, duas fontes com conhecimento da decisão tomada por Dilma disseram que a viagem dificilmente acontecerá em breve.
"Tendo em conta a proximidade da programada visita de Estado a Washington --e na ausência de tempestiva apuração do ocorrido, com as correspondentes explicações e o compromisso de cessar as atividades de interceptação-- não estão dadas as condições para a realização da visita na data anteriormente acordada", disse a Presidência em nota.
"Dessa forma, os dois presidentes decidiram adiar a visita de Estado, pois os resultados desta visita não devem ficar condicionados a um tema cuja solução satisfatória para o Brasil ainda não foi alcançada."
A Casa Branca também anunciou que a visita fora adiada. Obama disse, segundo o porta-voz Jay Carney, que entende e lamenta as preocupações que supostas atividades de inteligência dos EUA geraram no Brasil e deixou claro que está empenhado em trabalhar em conjunto com Dilma e seu governo nos canais diplomáticos para superar a questão.
O porta-voz disse que os dois presidentes concordaram que as revelações de espionagem norte-americana no Brasil poderiam ofuscar o encontro e por isso resolveram adiá-lo. As medidas dos Estados Unidos para tratar das denúncias de espionagem, no entanto, podem demorar meses.
"Como o presidente (Obama) já disse anteriormente, ele está realizando uma revisão ampla da postura de inteligência dos Estados Unidos, mas esse processo levará vários meses para estar completo", disse Carney.
Denúncias feitas com base em documentos vazados pelo ex-prestador de serviços da NSA Edward Snowden e publicados pela mídia brasileira revelaram que a agência norte-americana usou programas secretos de vigilância da Internet para monitorar as comunicações no Brasil. Alegações recentes afirmam que as comunicações pessoais de Dilma e a Petrobras também foram alvo de espionagem dos EUA.
As denúncias enfureceram Dilma, que exigiu explicações de Obama quando ambos se encontraram durante a reunião do G20 neste mês na Rússia. As revelações também arranham os esforços de anos para melhorar as relações entre as duas maiores economias das Américas.
"As práticas ilegais de interceptação das comunicações e dados de cidadãos, empresas e membros do governo brasileiro constituem fato grave, atentatório à soberania nacional e aos direitos individuais, e incompatível com a convivência democrática entre países amigos", disse a nota do governo brasileiro.
Dilma tomou a decisão de adiar a viagem para os EUA, marcada para 23 de outubro, depois de se reunir com o ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, que na semana passada viajou a Washington para discutir as denúncias de espionagem com a conselheira de Segurança Nacional de Obama, Susan Rice.
Em breve comunicado após o encontro entre Rice e Figueiredo, a Casa Branca disse que as alegações recentes "levantaram questões legítimas em nossos amigos e aliados" sobre a inteligência norte-americana, sem fazer um pedido de desculpas a Dilma.
Autoridades norte-americanas afirmam que o monitoramento realizado pela NSA tem o objetivo de detectar atividades suspeitas de terroristas e não de bisbilhotar comunicações internacionais.
O governo brasileiro, no entanto, rejeitou o argumento de Washington de que os EUA buscam apenas reunir informações críticas para a segurança nacional dos EUA. O Brasil é uma democracia pacífica sem histórico de terrorismo internacional ou acesso a armas de destruição em massa.
A visita de Estado de Dilma era a única do tipo oferecida pelo governo Obama neste ano. A viagem tinha o objetivo de servir como plataforma para acordos nas áreas de exploração de petróleo e tecnologias de biocombustível, além da potencial compra pelo Brasil de caças de combate fabricados pela norte-americana Boeing.
A tentativa da Boeing de vender 36 caças F-18 Super Hornet numa concorrência para a Força Aérea Brasileira estimada em 4 bilhões de dólares deve ser a principal vítima do episódio. Autoridades brasileiras afirmam que não podem fazer uma compra tão estratégia de um país em que não confiam.
Além da Boeing também estão na disputa para a venda de caças à FAB a francesa Dassault, com o caça Rafale, e a sueca Saab, com o Gripen NG.
Dilma tem viagem marcada para o fim deste mês aos EUA para participar da Assembleia-Geral da ONU em Nova York.
TURBULÊNCIA POLÍTICA
As revelações sobre a espionagem norte-americana no Brasil provocaram barulho na cena política brasileira que Dilma não poderia ignorar.
O Senado criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as denúncias de espionagem e, nesta terça, parlamentares questionaram a presidente da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustível (ANP), Magda Chambriard, sobre o risco de a espionagem da NSA ter dado vantagem a empresas norte-americanas no leilão da área de petróleo de Libra, a maior do pré-sal, que será licitada no mês que vem.
Parlamentares também querem ir a Moscou para conversar com Snowden, que está em asilo temporário na Rússia.
A decisão de adiar a viagem deve elevar os riscos para empresas norte-americanas que atuam em setores sensíveis no Brasil, disse a consultoria Eurasia, sediada em Washington, em nota a seus clientes.
O episódio pode afetar principalmente as companhias que atuam nos setores de defesa, telecomunicações e energia. Segundo analistas da consultoria, as chances da Boeing de vencer a disputa para fornecer caças ao Brasil foram "significativamente reduzidas".
"No setor de energia, certamente será uma tempestade política se uma empresa norte-americana vencer o leilão de outubro", disse a Eurasia.
Para Gabriel Rico, presidente-executivo da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos (Amcham), a decisão representa uma oportunidade perdida. Ele, no entanto, disse que não há "nenhuma" preocupação com o tratamento que as empresas norte-americanas terão no Brasil depois do episódio.
"A não ida da presidenta agora é uma perda de oportunidade para darmos um impulso a mais no fluxo de investimentos entre os dois países e assinar acordos de cooperação bilateral", disse.
"Negociações em temas como visto para empresários e bitributação vão sofrer no curto prazo. Mas acreditamos que no médio prazo a visita vai acontecer, ainda neste mandato da presidenta."
A decisão de Dilma de adiar a visita de Estado a Washington foi alvo de críticas da oposição ao governo no Congresso. O líder do PSDB no Senado, Aloysio Nunes, defendeu que a presidente fosse aos EUA justamente para expressar seu repúdio à espionagem e disse que Dilma buscará obter ganhos eleitorais com o episódio.
"Eu acho que ela deveria ter ido. Ela tem a nossa solidariedade no repúdio à espionagem... mas eu acho que devia ter ido para dizer na cara", defendeu o tucano, que disse que, além da solidariedade, Dilma tem a crítica da oposição, pois "o governo se deixou espionar".
"Há um clima de certa patriotada, uma certa manipulação eleitoral. Ela quer transformar isso em água para o moinho dela", criticou.
(Reportagem adicional de Brian Winter em São Paulo, Roberta Rampton em Washington, e Alonso Soto e Maria Carolina Marcello, em Brasília)