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Ciumenta e escritora precoce: 70 anos da morte de Anne Frank

Reportagem do Terra entrevistou duas das amigas mais próximas da judia alemã que, de um esconderijo na antiga loja do pai, em Amsterdã, virou uma das personagens mais marcantes do Holocausto. Elas revelam particularidades de quem escondia o seu diário a sete chaves e queria ser “dona” das amigas

12 mar 2015 - 08h15
(atualizado em 21/6/2018 às 17h43)
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Annelies exigia monopólio sobre a atenção da melhor amiga Jacqueline. Ao mesmo tempo, nutria uma rivalidade infantil, daquelas típicas de meninas de 12 anos, com sua colega de escola Nanette. Seria a introdução de mais uma típica história juvenil não fossem as três filhas de judeus vivendo na Amsterdã invadida pelos nazistas do início dos anos 1940 – 60 mil deles, ou 10% da população total da cidade, foram mortos nos campos de concentração.

A Segunda Guerra Mundial marcou de forma indelével a história e o destino das três. Jacqueline van Maarsen escapou da perseguição atroz do exército de Adolf Hitler pela sorte e benevolência de um oficial alemão. Nanette Konig sobreviveu ao terror do campo de concentração de Bergen-Belsen, onde teve um reencontro emocionante com a “rival”.

Mas Anne Frank não teve a mesma sorte. Sucumbiu à epidemia de tifo que se espalhou pelo assombroso campo de concentração alemão depois de passar dois anos escondida com a família num anexo apertado e dividido com outras pessoas no prédio da empresa de seu pai em Amsterdã, mais especificamente na rua Prinsengacht, 263, no centro da capital holandesa. Ou como a escritora precoce se referia em seu diário, o “anexo secreto”.

O relato exclusivo da melhor amiga da Anne Frank:

No esconderijo escreveu um dos maiores testemunhos da irracional perseguição que os judeus sofreram durante o domínio nazista na Europa. Traduzido para diversas línguas, base para filmes e peças de teatro, o Diário de Anne Frank mantém o seu legado vivo mesmo 70 anos após a morte de sua  autora – ocorrida em março de 1945, pouco antes do fim da guerra.

Estima-se que foi no dia 12 deste mês a data da sua morte, relembrada em muitos países, mas não existe nenhum documento original que comprove essa informação. Entre a família ser encontrada e a morte da  escritora, passaram-se apenas sete meses.

“Eu a reencontrei em Bergen-Belsen. Meu pai já tinha morrido, meu irmão e minha mãe já tinham sido deportados e eu estava sozinha. Eu estava num campo pequeno de mulheres, que estava ao lado de um campo grande, onde ela estava”, relembra Nanette Konig, em entrevista exclusive ao Terra (leia a reportagem completa).

Holandesa e judia, ela se radicou no Brasil após sobreviver ao Holocausto (hoje vive em São Paulo). Prestes a completar 86 anos (em abril), ela relembra o encontro com a amiga de classe do  Liceu Judaico, uma das 25 escolas que os alemães organizaram para os alunos, num primeiro momento, estudarem separadamente da “soberania ariana”.

Foto: Nanette Konig, a amiga / André Naddeo / Terra

“Eu estava num campo menor para mulheres, ao lado de um grande. E eu a vi andando nesse campo grande”, conta, já na reta final da vida de Anne Frank. “Tinha arame farpado e quem chegasse próximo poderia ser morto e torturado”, relembra ainda Nanette. Quando os alemães resolveram unir os dois campos, as duas amigas, enfim, se reencontraram.

“Ela estava com a irmã (Margot) e tinha esperança de encontrar a mãe viva. Não tinha notícias do pai”, revela Nanette. “Ela me contou sobre o esconderijo e queria usar o diário como base para um livro depois da guerra”, completa, sem saber que aquele seria o último encontro das duas. Poucos dias depois, Anne foi encaminhada para a barraca onde se concentravam os judeus que estavam doentes. Lá faleceu vítima da epidemia de tifo.

De sua casa em Amsterdã, Jacqueline van Maarsen, 86 anos relembra que não teve a oportunidade do último abraço. Impedida pela mãe de dar qualquer pista do seu paradeiro depois que a família se escondeu no “anexo secreto”, Anne, todavia, cumpriu com a sua promessa de deixar uma carta  – um trato que ambas deveriam cumprir para se reencontrar após o caos nazista.

“Foi muito triste ler aquelas cartas cheias de amizade no momento que soube que ela tinha sido morta”, diz Jacqueline. (aqui a reportagem completa). O relato pessoal chegou as suas mãos pelo pai de Anne, Otto Frank, o único dos oito integrantes do esconderijo que se salvou do Holocausto. “Eu pude ver que aquela era mesmo a letra dela, que era muito bonita, ao contrário da minha”.

Jacque, como era chamada por Anne, revela ainda o ciúme característico de quem queria ser a sua ‘dona’. “Eu não queria aquilo”, confessa hoje sobre Anne, que  via nela a sua melhor amiga. “Ela ficava brava comigo porque eu conversava com outras pessoas”, conta ainda. Além disso, a futura escritora ainda guardava a sete chaves os segredos da sua futura obra.

“Ela estava começando o diário que  recém tinha ganhado de aniversário e era bastante reservada com ele. Ninguém podia lê-lo. Eu disse para ela: ‘nós somos melhores amigas’, o que ela sempre queria ouvir, e ‘se nós somos melhores amigas, eu posso ler o seu diário’. Não, ninguém podia ler o diário. Agora eu sei que ela não queria que eu soubesse o que  tinha escrito sobre mim: ‘Eu achava que Jacqueline era a minha melhor amiga, mas ela não era’,” fala, sobre  trecho  dos manuscritos do Diário relativos ao momento em que “estavávamos discutindo mais”.  

O legado atual

O diário de Anne Frank, conduzido pelo pai e oferecido para algumas editoras, demorou a emplacar. O relato da jovem que sonhava em ser jornalista, no entanto, se transformaria em legado para a humanidade de uma forma geral.

“A história de Anne Frank e sua personalidade ecoam muito bem com as gerações de hoje. É uma história com muitos aspectos de humanidade, uma história sobre a perseguição dos judeus na Holanda. É importante nos lembrarmos disso”, afirma o historiador Ronald Leopold, diretor executivo da Casa de Anne Frank, museu de Amsterdã em homenagem à escritora. “Ao mesmo tempo, a história não é limitada a esse aspecto. Seu pai, Otto Frank, cunhou uma expressão muito bonita sobre isso. Ele dizia que o diário de sua filha é um monumento em forma de documento.”  

O esconderijo da perseguição nazista

Alemã de nascimento, Anne se mudou com a família para Amsterdã na primeira metade da década de 1930 para fugir dos nazistas. Mas eles invadiram a Holanda em 1940 e ela foi obrigada a estudar numa escola frequentada apenas por judeus, onde conheceu Jacqueline e Nannete. Naquele tempo, já escrevia um diário pessoal naquele tempo. “Ela era muito reservada sobre aquele diário. Na época de escola, não deixava que ninguém lesse”, conta Jacqueline, 86 anos, autora de quatro livros sobre a amizade com Anne. 

Estátua em homenagem a Anne Frank: há 70 anos ela morria de tifu no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha
Estátua em homenagem a Anne Frank: há 70 anos ela morria de tifu no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha
Foto: Giuliander Carpes / Colaboração para o Terra

Em 1942, no esconderijo para onde a família teve de se mudar temendo a perseguição nazista, recebeu do pai um caderno no dia de seu aniversário de 13 anos. Foi onde anotou as primeiras sensações sobre os dois anos que teve de permanecer enclausurada com mais sete pessoas no local. “Ela não começou a escrever o diário como uma escritora, mas como uma criança. Mas era um gênio de uma certa maneira porque conseguiu ver que aquele esconderijo era o personagem principal de seu livro”, explica Leopold.

Já no início de 1944, Anne ouve no rádio, numa transmissão da BBC de Londres, um pedido de autoridades das forças aliadas para que os cidadãos que estivessem escrevendo diários os guardassem como “uma prova histórica” do período de sobrevivência sob a dominação nazista. O desejo de se tornar uma escritora e jornalista famosa falou alto e Anne começou a reescrever seu diário com base nas anotações que havia feito até então.

“No esconderijo, ela leu muitos livros, conheceu o trabalho de muitos escritores. Você pode realmente perceber uma escritora nascendo. Tudo fazia parte da caixa da tragédia que ela estava inserida”, reflete Leopold.

“Tenho certeza que foram essas condições do esconderijo que ajudaram ela a se tornar uma escritora tão boa. Antes, Anne era uma menina bonita que passava muito tempo ocupada com o seu cabelo, queria ser famosa. Mas naquele momento ela não sabia como. É muito triste que agora ela seja famosa, mas teve que morrer por isso”, lamenta Jacqueline.

O diário publicado

Na manhã de 4 de agosto de 1944, a polícia nazista invadiu a antiga empresa de Otto e encontrou o esconderijo. Nunca se soube quem fora o responsável por denunciar o local aos policiais – eles reconheceram que jamais teriam chegado ao anexo de forma espontânea.

Anne, o pai, a mãe e a irmã foram capturados, assim como três integrantes da família Van Pels, que dividia o espaço, e o dentista Fritz Pfeffer, que dormia no mesmo quarto de Anne. Homens e mulheres foram separados a caminho dos campos de concentração.

No retorno de Auschwitz, Otto procurou saber da família e descobriu que a mulher e as filhas não haviam resistido. Das mãos de sua ajudante Miep Guies ele recebeu o diário de Anne cujas páginas ela havia cuidadosamente guardado depois da captura.

O próprio Otto se surpreendeu com o que leu. “Eu tinha uma relação muito boa com minha filha. E no diário ela escreveu umas coisas sobre sentimentos muito diferentes dos que eu conhecia. A minha conclusão é que a maioria dos pais não conhece realmente seus filhos”, disse em depoimento à Casa de Anne Frank que fundou – ele morreu em 1980.

A primeira edição do Diário de Anne Frank foi publicada em 1947. Alguns revisionistas questionaram a sua autenticidade, mas um estudo completo nos manuscritos de Anne atestaram que ele foi mesmo fruto de sua lauda, uma menina que viveu pouco menos de 16 anos. Tornou-se um dos livros mais vendidos de todos os tempos e é ainda hoje objeto de muita curiosidade e um sinal de alerta em tempos de intolerância crescente e conflitos religiosos.         

Fonte: Terra
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