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Mundo

Cinco retratos da deterioração da qualidade de vida na Venezuela

30 abr 2016 - 16h47
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Ninguém imaginava que uma nação onde até mesmo os pobres poderiam tomar uísque 12 anos iria chegar ao ponto de as pessoas comemorarem quando sai água da torneira.

Isso não era uma possibilidade na Venezuela três anos atrás, numa altura em que havia insegurança, cortes de energia e de água e fila para comprar produtos básicos. Era um país em crise, sim, mas de alguma forma ou de outra, ponderava-se, não iria se deteriorar tanto. E tão rápido.

Hoje, no entanto, quem vive nesta terra - ainda rica em petróleo, minerais e paisagens maravilhosas - sente falta do dia a dia de 2013.

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Não há levantamento, análise, ou número que resuma o sentimento do venezuelano que viu sua qualidade de vida perder um por um os luxos de viver em um país rico: nem a inflação mais alta mundo, nem a mais alta taxa de homicídios, nem a frequência de interrupções de energia.

Nem mesmo é suficiente o dado de que a Venezuela deixou de estar entre os três maiores consumidores de uísque do mundo.

O governo de Hugo Chávez, que chegou ao poder em 1999, deu educação, saúde e moradia para milhões de pessoas que, mesmo numa situação desastrosa, se sentem irrevogavelmente gratos.

Mas o que o país vive hoje - além do debate sobre se é uma guerra econômica criada pela direita internacional, como o Presidente Nicolas Maduro afirma - reflete uma deterioração abismal na qualidade de vida da maioria na Venezuela.

1. A luz é cortada diariamente

Na Venezuela, há um Comitê de Afetados pelos Apagões, que registrou 8.250 cortes de luz nos últimos três meses em todo território.

Não há números oficiais sobre as interrupções de energia, mas o governo oficializou nesta semana o racionamento em residências, setor público, centros comerciais e escolas em todo o país (exceto Caracas, que é protegida contra falhas de energia).

Desde que uma crise de eletricidade foi declarada em 2009, milhares de venezuelanos se acostumaram a tirar seus eletrodomésticos da tomada cada vez que a luz acaba, para que, quando ela volte, não haja danos a geladeiras, televisores e aparelhos de ar-condicionado.

Comprar um gerador a preço fixado - importado e subsidiado pelo governo - é uma alegria pela qual muitos estão dispostos a passar incontáveis procedimentos burocráticos ou horas na fila.

Foto: Divulgação/BBC Brasil / BBC News Brasil

Graças a subsídios como esses, o consumo de eletricidade aumentou nos últimos anos: a pessoa que só tinha ar-condicionado no quarto, agora também tem na sala de estar e de jantar.

O acesso a bens como esses foi para muitos uma melhora da qualidade de vida, patrocinada por Chávez.

Hoje, no entanto, a maioria não pode ligar o ar-condicionado pelo tempo que quer.

Foto: Divulgação/BBC Brasil / BBC News Brasil

2. A água que vem fraca, suja e malcheirosa

Em relação aos cortes de água, que também tornaram-se frequentes em todo o país, não há comissão envolvida, mas ao contrário da situação elétrica, o problema atinge Caracas - e com mais intensidade nos últimos dois anos.

Como parte da paisagem dos bairros populares do país, às antenas de TV por satélite que estão em cada casa foram acrescentadas tanques azuis em quase todos os telhados.

Os moradores sem tanque precisam acomodar sua rotina aos horários instáveis do racionamento. Os que têm o recipiente ficam, de alguma forma, livres.

Além de problemas de quantidade, há também os de qualidade, porque a água chega amarelada e mal cheirosa.

Venezuelanos recorrem a tanques nos telhados para não depender de abastecimento oficial
Venezuelanos recorrem a tanques nos telhados para não depender de abastecimento oficial
Foto: Divulgação/BBC Brasil / BBC News Brasil

Na região central do país é ainda pior, porque o líquido emite um odor de ferro que fica impregnado na pele e provoca ardor nos olhos.

Em meio à crise, há comunidades em todo o país que conseguiram construir poços dos quais podem tirar água do fundo da terra - sem depender do abastecimento central.

E, em pontos onde há tubos dos quais sai água de nascentes, as filas são cada vez maiores.

Daí tiram água as pessoas que andam com uma garrafa no carro, mas também os caminhões-pipa que abastecem, por altos valores, hotéis e edifícios residenciais de classe alta, onde as minorias mantêm uma qualidade de vida de luxo.

Mas quando chove não deixa de haver problemas para a maioria, porque inundações e deslizamentos de terra afetam milhares de pessoas cada vez que as chuvas aumentam.

3. A angústia de que o dinheiro não dê

Muitos venezuelanos sabem o que é bom: o que é passar - e repetir - férias em família em um resort com tudo incluso.

Mas com a inflação, que neste ano se tornou hiperinflação, o venezuelano teve que sacrificar idas a restaurantes, viagens de táxi e a carne e o peixe da dieta.

Isso produz uma angústia quase existencial, porque a Venezuela perdeu o que a fez especial para o mundo: o consumo de luxo.

Agora, nem o básico está disponível para todos: 87% dos venezuelanos dizem que sua renda é insuficiente para comprar comida, de acordo com a Pesquisa de Condições de Vida 2015 feita por três universidades de prestígio.

E então eles passam seus dias esperando na frente de supermercados, com um guarda-chuva para se proteger do sol forte, para ver se conseguem comprar comida a um preço regulado.

87% dos venezuelanos dizem que sua renda é insuficiente para comprar comida, diz pesquisa
87% dos venezuelanos dizem que sua renda é insuficiente para comprar comida, diz pesquisa
Foto: Getty / BBC News Brasil

Essa ansiedade de não saber o que se vai comer no dia é agravada quando se pensa no futuro: poupar ou investir são agora conceitos cheios de incerteza para o venezuelano, que recorre cada vez mais a empréstimos para compensar a inflação.

A perda de poder de compra tem levado muitos a buscar empregos informais: médicos se tornam motoristas de táxi, engenheiros, garçons e maquiadores passam a revender produtos básicos.

Não que para o venezuelano o dinheiro seja tudo, mas quando o salário deixa de ser suficiente para a alimentação, educação e fazer feliz à sua família, o nervosismo torna-se seu estilo de vida.

4. A interação social é cortada

E não há nada mais sagrado para o povo venezuelano que suas relações: a interação com família, amigos ou colegas é uma atividade prioritária no país.

É por isso que falam tanto ao celular.

Um dos consumos que mais cresceu na Venezuela recentemente é o de comunicações, devido também aos preços regulados, que são dezenas de vezes mais baratos do que em qualquer país da região.

No entanto, por essa razão, tem sido impossível melhorar o serviço, que é o pior a cada dia que passa.

Venezuelanos agora não podem fazer chamadas de longa distância a partir de seus telefones celulares ou usá-los fora do país.

Mas eles também não podem usar o recurso de câmera do Skype, uma vez que têm a conexão mais lenta na América Latina, de acordo com vários estudos.

A frequência com que caem as ligações ou a internet é difícil de medir, mas as queixas dos problemas que se prolongam por semanas são comuns nas redes sociais.

As reclamações têm um tom tão violento que revelam um sentimento insondável da raiva e frustração pelo inoperância das comunicações.

5. Medo de morrer

Mas, além de isolado nas comunicações, os venezuelanos foram trancados por medo de que ocorra uma daquelas histórias de desmembramento, sequestros ou massacres que se ouvem por aí.

As noites em áreas de classes média e alta em todo o país tornaram-se um deserto.

O fato de a Venezuela ser um dos países com o maior número de homicídios no mundo agrava a percepção de insegurança para quem não se tornou resistente ao medo.

Há venezuelanos que perderam a sensibilidade à morte, como também existem aqueles que fazem e celebram linchamentos de criminosos.

Noite em Caracas, a cidade mais violenta do mundo, está ficando cada vez mais vazia
Noite em Caracas, a cidade mais violenta do mundo, está ficando cada vez mais vazia
Foto: BBC World Service / BBC News Brasil

As mortes por crimes se somam às vítimas de doenças, que a falta de medicamentos agrava, transformando uma gripe em uma pneumonia.

A escassez de medicamentos e materiais hospitalares parece ter explodido no último ano: de acordo com o Ministério da Saúde, em 2015 a mortalidade global em hospitais aumentou 31%.

A Venezuela, no entanto, já foi a pioneira mundial em microscopia eletrônica, na pesquisa do diabetes, na erradicação da malária e nos estudos genéticos.

Ninguém imaginava que naquele país uma doença menor geraria a angústia de um câncer.

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