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Mundo

Caso Snowden abala 'lua de mel' entre EUA e América Latina

4 jul 2013 - 05h55
(atualizado às 07h20)
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A incipiente "lua de mel" do governo do presidente Barack Obama com a América Latina pode ser a mais recente vítima do imbróglio diplomático criado pelo informante Edward Snowden, o ex-técnico da CIA que vazou informações sobre o programa secreto americano de coleta de dados de telefonemas e internet de cidadãos comuns.

Críticas à postura "arrogante" de quatro países europeus (Portugal, Espanha, França e Itália) que se recusaram a autorizar que o avião do presidente boliviano, Evo Morales, cruzasse seu espaço aéreo ecoaram também na nação mais empenhada em trazer de volta para casa o informante: os EUA.

Entretanto, pressionada por jornalistas, a porta-voz do Departamento de Estado americano, Jen Psaki, tentou desvencilhar o seu governo da decisão de impedir a passagem do avião presidencial boliviano, que acabou tendo de pernoitar na Áustria na terça-feira.

"Temos estado em contato com uma variedade de países em todo o mundo onde Snowden tem alguma chance de pousar ou até transitar, mas não vou dizer quando estas (conversas) ocorreram nem que países foram", admitiu a porta-voz americana.

"De maneira geral, pedimos que Snowden seja devolvido de qualquer país onde esteja, onde possa pousar ou por onde possa transitar."

Ela se recusou a dizer se os EUA tinham ou não informação de que Snowden pudesse estar no avião do chefe de Estado boliviano.

"Quero pedir-lhes que contatem os países aos quais estão se referindo e perguntem a eles sobre as decisões que foram feitas", afirmou Jen Psaki.

'Injustiça'

A aeronave de Morales, que vinha da Rússia, passou a noite em Viena enquanto o governo austríaco verificava os rumores de que transportava o informante americano. Só pela manhã, quando as suspeitas foram desfeitas, o avião foi autorizado a seguir viagem.

"Não sabemos quem inventou esta grande mentira, mas queremos denunciar à comunidade internacional essa injustiça com o avião do presidente", expressou, no aeroporto, o ministro das Relações Exteriores da Bolívia, David Choquehuanca.

O incidente gerou indignação entre líderes latino-americanos. A presidente argentina, Cristina Kirchner, disse que o episódio foi "humilhante" para um chefe de Estado da região.

O equatoriano Rafael Correa postou em sua conta de Twitter que "a nossa América não pode tolerar tanto abuso". "O que é com a Bolívia é com todos", disse Correa.

Já a presidente Dilma Rousseff afirmou que "o constrangimento ao presidente Morales atinge não só a Bolívia, mas a toda América Latina".

"(O caso) compromete o diálogo entre os dois continentes e possíveis negociações entre eles", afirmou a presidente através de nota.

Em uma mensagem na sua conta de Twitter, o Itamaraty disse que transmitiu ao governo boliviano o seu "repúdio" à "atitude arrogante" dos países europeus e disse que "a não autorização do sobrevoo causou surpresa, por não coadunar-se com as práticas internacionais".

Organizações como a Unasul, o grupo sul-americano de nações, e a OEA (Organização dos Estados Americanos, com sede em Washington), também criticaram a decisão.

À tarde, o governo francês emitiu uma nota dizendo que pediu desculpas ao governo boliviano pela "demora" em conceder a permissão de sobrevoo para o avião presidencial de Morales.

"A autorização para voar sobre o território francês foi concedida assim que as autoridades foram informadas de que a aeronave em questão era a do presidente Morales", disse a nota.

'Nunca houve, é claro, intenção de recusar o acesso do avião do presidente Morales ao nosso espaço aéreo; o presidente Morales é sempre bem-vindo no nosso país."

'Mão' dos EUA

Apesar da retratação francesa e das críticas dirigidas aos países europeus, outros países, como a Venezuela de Nicolás Maduro, não deixaram de responsabilizar os EUA - o país mais interessado no destino de Snowden - pelo "atentado" a Morales.

Para alguns analistas, o caso é no mínimo um "sobressalto" na retórica que Washington tem trocado com seus vizinhos, na qual se enfatiza o desejo de cooperação e integração baseados na 'igualdade" e no "respeito mútuo".

Mas para o diretor de Políticas do Conselho das Américas - uma organização empresarial que produz análises e estudos sobre a América Latina -, Christopher Sabatini, a questão vai "além da dinâmica de 'país hegemônico versus países explorados'" que tem caracterizado historicamente os conflitos entre os países latino-americanos e os EUA.

"Não estou tentando justificar o incidente com Morales, mas parceria é uma via de duas mãos. Para um país ser tratado com respeito, precisa respeitar as prerrogativas de segurança nacional de outro", disse Sabatini à BBC Brasil.

Ele disse acreditar que, ao indicar que seu país pudesse concordar em dar asilo para Snowden, Evo Morales pisou no calo dos EUA ao tratar a questão do "inimigo número um" americano de forma "leviana".

"Não consigo imaginar Peña Nieto, Santos e Dilma (presidentes de México, Colômbia e Brasil) agindo da mesma forma. São países que entendem que, para defender a sua segurança nacional, qualquer outro país, inclusive os EUA, farão tudo que estiver ao seu alcance", disse o analista.

"Há uma certa falta da polimento diplomático em como Morales agiu. Se isto não justifica a forma como foi tratado, também é certo que claramente não vinha obedecendo as regras do jogo."

As mais recentes tentativas de aproximação dos EUA com a América Latina incluem, ainda que de forma menos intensa, aqueles países cuja política externa contém doses de antiamericanismo, como Cuba, Venezuela e Equador.

Mas Sabatini observa que "qualquer tentativa genuína de reaproximação tem limites".

"Quando um país tão claramente, por nada mais que ideologia, tenta minar a autoridade americana (em termos de segurança nacional), isto tem consequências", disse.

"Os EUA não reagem mais a encenações como o presidente Maduro dizendo que Washington quer desestabilizar o seu governo. Mas (o caso de Snowden) é um tema importante para os EUA", acredita.

"É um assunto que vai no âmago da percepção americana do seu poder global, e que envia uma mensagem a outros possíveis informantes ou hackers. Todo país precisa estabelecer o seu limite e foi isso que os EUA fizeram."

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