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Ásia

China: "vila de câncer" tem rio em que pato morre em 3 horas

9 out 2011 - 13h54
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Fernanda Morena
Direto de Shangba

Shangba é uma vila pobre que, além de ser arrasada pela falta de infraestrutura básica, é dependente da plantação de cana e arroz. O rio que corta o vilarejo de leste a oeste atravessa a província de Guangdong, no sudeste do país, carregando lembranças do desenvolvimento - produtos químicos como cobalto, mercúrio e cádmio. Misturados à água, o coquetel fez 270 vítimas de câncer de estômago e das vias aéreas entre 1976 e 2005. É a única vila do país onde a taxa de natalidade já foi mais baixa que a de mortalidade.

Ponte sobre o rio que corta Shangba é a porta de entrada do vilarejo que sofre com o desenvolvimento chinês
Ponte sobre o rio que corta Shangba é a porta de entrada do vilarejo que sofre com o desenvolvimento chinês
Foto: Fernanda Morena / Especial para Terra

Zhang Lihua perdeu o avô paterno e a avó materna para o rio do câncer. Aos 33 anos e mãe de um bebê de 8 meses, ela diz temer pela própria vida e de seus familiares que, até 2002, bebiam do rio. Em Shangba, o mesmo homem não atravessa o mesmo rio mais por medo da morte do que da filosofia.

Uma estrada de chão liga os últimos dos 190 km de separam Shangba de Guangzhou, a capital provincial. O esgoto que corre ao lado de carros, motos e pedestres na estrada mostra que a vila parece não pertencer a Guangdong, a província mais rica da China. Tão rica que, se fosse um país, Guangdong estaria no G-20. Em 1980, o PIB local era de 24,5 bilhões de yuans (US$ 385 milhões). Em 2008, chegou a 3,5 trilhões de yuans (US$ 548 bilhões), maior que a Turquia, o Vietnã e a Indonésia - os grandes concorrentes da China na produção manufatureira.

Em Shangba, os 600 moradores da vila dividem-se na produção de cana-de-açúcar e conversas sobre o que se passa na televisão. Com o rio seco e degradado pela poluição de cádmio e mercúrio, nem mesmo a pesca resistiu ao avanço de Guangdong na economia mundial. "Quando eu era criança, nadávamos no rio, brincávamos nas suas encostas depois da escola. Depois, começaram a aparecer peixes mortos boiando, e a gente parou de brincar com a água", lembra Zhang, 57 anos, dono de um armazém e pai de Lihua.

Dessa água não beberei
As águas do rio Hengshui, que corta a vila, deixaram de ser consumidas em 2002. Ela está tão contaminada que nem mesmo peixes conseguem sobreviver, ainda que seja diluída 10 mil vezes. "Se um pato entrar na água, ele morre entre duas e três horas depois", conta Zhang. Entre o registro do primeiro caso de câncer na cidade, em 1976, e o anúncio de impropriedade do rio, 250 pessoas morreram da doença. Em 2010, foram registradas seis vítimas do "rio da morte", como Hengshui ficou conhecido na região - duas delas com menos de 20 anos.

"Antigamente, as pessoas iam para o hospital doentes e demoravam para morrer. Na década de 1980, elas duravam apenas meses depois de serem diagnosticadas, porque levava muito tempo até descobrirem que estavam doentes", diz Zhang Lihua. Ela perdeu os avós para o câncer de estômago em seis meses. Ela hesita para falar sobre as mortes causadas pela água do rio. Ao sair da cozinha, com seu bebê de 8 meses no colo, a imagem do medo toma a sua face. "Eu tomei essa água até uns quatro anos atrás. É claro que tenho medo."

Com o aumento de casos registrados de câncer dentre a população de Shangba, o secretário do partido Comunista da China na vila, He Laifu, conseguiu a intervenção do governo provincial depois de procurar a mídia local. Ele é hoje também responsável por um dos três centros médicos da vila. O consultório de He fica no primeiro piso de sua casa. Três salas dividem o espaço: uma saleta de entrada, logo atrás um depósito cheio de medicamentos, e, no espaço ao lado, uma mesa de madeira com medicamentos, seringas e agulhas. Nas paredes, cartazes alertam para o perigo de ingerir a carne de galinhas mortas.

He é igualmente reticente em falar de seus dois pacientes com câncer. Ele conta que, neste ano, outras duas pessoas que vinha tratando morreram. "A situação está melhor agora. Até dois anos atrás, morriam mais de dez pessoas ao ano em Shangba", avalia o médico. Até a virada do século, 20 em cada 100 habitantes da vila tinham câncer.

Cobre e ferro
Foi na década de 1970 que a mineradora Dabaoshan surgiu como a causa das "vilas de câncer" na região. A empresa, instalada no distrito de Qujiang, aos pés das regiões montanhosas ao norte de Guangdong, fez sua fortuna na exploração do zinco, tornando-se uma das maiores extratoras do mineral na China. Foi criada em 1958 e, com a política do Salto para Frente (plano de industrialização rápida aplicado entre 1958 a 1961 e que matou de fome cerca de 30 milhões de chineses), ficou fechada até 1963.

Em 1995, a Dabaoshan virou uma empresa estatal de segundo porte. Ela cobre 9,4 milhões de m², emprega 2.900 pessoas e produz cerca de 700 milhões de yuans anualmente (US$ 110 milhões). Ao ano são produzidos 800 mil toneladas de minério de ferro, 2 mil toneladas de minério de cobre e 80 mil toneladas de ácido sulfúrico. Nos planos da empresa estão a expansão da mina em 37,5 milhões de m² para "garantir o desenvolvimento da empresa", diz a nota no website da Dabaoshan. Lá também é possível saber sobre os prêmios recebidos pela companhia. Entre eles, o título de "empresa nacional avançada em trabalho político e ideológico" e "pagadora de classe de impostos".

O lixo nem sempre foi só um problema para a província de Guangdong. No início da reforma e abertura da China, em 1979, Guangdong se tornou o grande depósito de dejetos mundial. Lixo era exportado de lugares como Londres, Roterdã e da vizinha Hong Kong para destruição e reciclagem. Com o comércio aberto e manufaturados com preços baixos disponíveis ao Ocidente, era mais barato enviar o lixo produzido dentro dos containers vazios em navios rumavam a Guangzhou - o maior porto chinês à época - do que transportar o lixo em caminhões pelos países.

Em 2008, Zhang Yin, da cidade de Dongguan, a uma hora de Guangzhou, tornou-se a mulher mais rica do mundo, deixando para trás Oprah Winfrey e J. K. Rowling. Zhang Yin construiu seu império do alto da reciclagem de lixo seco - em especial, papel.

O futuro incerto
Desde que a luta entre moradores e governo provincial garantiu a abertura de uma fonte de água potável vinda de dentro da montanha que circunda Shangba, a epidemia da esperança tomou o lugar do câncer no local. As taxas de pacientes com câncer decresceram, mas os fantasmas dos que já se foram ainda assombra os que ficaram no vilarejo. "A água foi tratada, mas não sei qual é a situação do solo. Não confio no que produzimos aqui, mas fazer o quê?", admite Zhang.

Fonte: Especial para Terra
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