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Mundo

Situação no Haiti testa limites da capacidade humana, diz ONG

14 jan 2011 - 10h57
(atualizado às 12h09)
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Felipe Franke

"Dia 12 eu quero sumir", diz uma haitiana, funcionária da ONG Viva Rio, a Rubem Cesar Fernandes, diretor do organismo no país, alguns dias antes do aniversário do terremoto de janeiro de 2010. "A gente não pode desaparecer, a gente tem que estar lá com o nosso trabalho", argumenta ele para a moça, que mostra as cicatrizes das 48 horas em que ficou presa sob escombros junto de seu filho de colo.

Terremoto, cólera, eleições, futuro: haitianos vivem tempos de "testar os limites da resistência humana"
Terremoto, cólera, eleições, futuro: haitianos vivem tempos de "testar os limites da resistência humana"
Foto: AFP

A situação, descrita por Rubem em entrevista concedida ao Terra, direto de Porto Príncipe, aponta para o grande desafio enfrentato pelos haitianos. Na semana em que se completa um ano do terremoto que devastou o país, lidar com a memória da tragédia e se empenhar na reconstrução do país - a qual ainda "não começou".

O Viva Rio está presente no Haiti desde 2004, convidado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para participar da missão de paz no Haiti. Situada no bairro histórico de Bel Air - origem do presidente deposto Jean-Batiste Arisitde e foco de agitação política - a ONG expandiu em 2006 o trabalho de segurança para projetos de reabilitação urbana.

Em 2010, ela e muitas outras instituições de ajuda humanitária se viram forçadas a improvisar e ampliar os serviços, em nome da emergência em que o país mergulhou. Bel Air, um bairro de quase 130 mil habitantes, foi um dos mais atingidos pelo tremor em Porto Príncipe: "Você tem áreas do bairro que chegaram a ter mais de 60% de suas construções destruídas, um nível de impacto imenso", avalia.

Nesse cenário de destruição que permanece pouco alterado um ano depois, o Haiti e a comunidade internacional enfrentam o desafio de como proceder numa situação para a qual ainda não estão prontos para enfrentar. A demora na reconstrução, aliada ao surto do cólera e à crise política, se transforma na frustração da disponibilizada que permanece refém da inabilidade da coordenação dos esforços.

Isso se reflete na própria população, como conta Rubem sobre os acampamentos improvisados para abrigar centenas de milhares de haitianos. "Houve uma redução (da população dos abrigos), pois as pessoas começaram a se cansar da vida em campo, que tem muita assistência, mas que também é muito frágil. Muita gente prefere ir embora para suas casas, reconstruindo lá alguma coisa de alguma maneira a voltar a morar."

Na semana do aniversário, Rubem acredita que não há o que celebrar, a não ser "a vida diante da morte, num ano em que a morte prevaleceu". O ano de 2011 começa sob o peso dos escombros, das memórias e dos desafios deixados por 2010. Fazendo referência ao teste dos limites da "resistência" e da "capacidade humana" de um livro do Velho Testamento, Rubem compara: "Este ano foi um ano de Jó do Haiti".

Como vocês avaliam o decurso dos 12 meses após o terremoto de janeiro de 2010?

No nível local, eu diria que nosso trabalho triplicou nesse ano. A gente teve atividades de distribuição de alimentos, que antes não fazíamos - chegamos a estar servindo 90 mil pessoas com distribuições regulares nos primeiros quatro meses do ano. (Tivemos) também trabalhos de reconstrução de canais: Porto Príncipe é uma cidade de cadeias de montanhas que descem para o mar, então você tem canais que descem carreiras de água de chuva e se transformam em grandes lixeiras, (com) lixo da cidade inteira que vai descendo pelos canais e que acaba se acumulando aqui em baixo onde a gente trabalha. Esses canais são problemáticos, fontes de inundação, e com o terremoto muitos deles racharam, foram destruídos. (Fizemos) também trabalho de atendimento à população deabrigada. Nossa sede em Bel Air, chamada de Kay Nu ('Nossa Casa' em criole) virou um campo de refugiados, com duas mil pessoas morando lá durante três meses e meio, até que conseguimos negociar com essa população que saísse voluntariamente para suas casas para que pudéssemos voltar aos nossos serviços comunitários.

Que avanços podem ser citados nesse balanço?

A gente conseguiu reduzir muito a violência nesses anos de trabalho. Chegamos, em 2009, a um nível de 17 homicídios por 100 mil, que é um nível melhor que temos na maioria das capitais brasileiras. No entanto, esse ano foi um ano de muita violência, porque não só o terremoto desestruturou muita coisa e abriu espaço para ações mais violentas de pequenos grupos, como também houve uma fuga maciça de um pessoas que estavam na prisão e que voltaram aos bairros querendo reconquistar poderes, espaços, que antes dominavam. A gente tinha chegado em 2009 a 17 homicídios por 100 mil habitantes, e fechamos 2010 com 51 homicídios por 100 mil - mais que dobrou, embora, ao final do período, em 2010, já tivesse baixado. Em dezembro, não registramos um homicídio sequer, mas entre maio e agosto foi muito pesada a violência, muito tiro e muita gente morrendo, (tanto) em conflito entre as facções (como) com o Estado, sobretudo a polícia.

Como você avalia a situação do país como um todo?

A reconstrução tem demorado de uma forma absurda, porque existe dinheiro, mas as grandes instituições, responsáveis pela gestação do dinheiro, trabalham num outro ritmo: trabalham num ritmo de projeto, de consultorias, planejamentos, que são ritmos de anos, e não ritmos de meses. Então o dinheiro está sendo definido, mas a sua aplicação ainda quase não começou. Então é muito frustrante, ao final de um ano, passear pela cidade e ver ainda o entulho da destruição quase todo espalhado pela cidade, como se o terremoto tivesse sido no mês passado. Mas o trabalho de reconstrução mesmo quase que não começou. Isso é uma frustração muito grande.

Por que o governo haitiano demora para realizar este trabalho?

Eu não diria assim, não é só o governo do Haiti, (mas) o governo e as instituições internacionais. Porque o dinheiro que foi aprovado para a reconstrução é (destinado) para grandes projetos. E quando você fala de grandes projetos, tipo reconstrução e infra-estrutura, você fala de ações complicadas, que as agências internacionais não estão preparadas para trabalhar na velocidade da emergência. Tem todo um conjunto muito grande de instituições com emergência, mas no nível da assistência imediata. Por exemplo: falta de água. Você tem os pillow tanks ('grandes travesseiros de água'), caixas móveis grandes e tem imediatamente condição de filtrar e ter água potável de um dia pro outro. Agora, construir cisternas, reservatórios que foram destruídos, isso exige outro tipo de planejamento e outro tipo de agente. Aí o que se verifica é que as instituições internacionais não estão preparadas para o curto prazo: elas só trabalham no longo ou no médio prazo. É como se não houvesse os intrumentos capazes de lidar com a situação.

Você pode dar um exemplo?

Você ouve dizer que a limpeza do entulho é coisa para 20 anos. Isso é um absurdo, uma loucura, pensar em viver com o resto do terremoto por 20 anos até que se possa limpar, enquanto que o entulho inclusive é um recurso, uma riqueza, um material que pode ser processado, reciclado, e virar material útil até para ser vendido no mercado. Nos primeiros três meses, a assistência humanitária foi muito eficaz para reduzir o sofrimento e para lidar com o horror da emergência. Mas, passados os três meses, no momento em que Nova York, em 31 de março, se declarou o montante de algo em torno de US$ 11 bilhões disponíveis para a reconstrução, aí mudou tudo. Mudou o tempo, mudaram os atores, mudaram os planos, mudaram os instrumentos de trabalho da reconstrução. E esses instrumentos trabalham na escala das décadas. Não trabalham na escala dos meses. Então não acontece nada, fica todo mundo agoniado, porque olha em volta e parece que nada mudou.

O que o senhor espera que possa ser realizado em 2011?

No plano político, você tem o grande desafio da transição para o novo governo, que ainda está obscuro, não está claro como vai ser esse novo governo. Se não há certeza institucional, política, tudo fica meio parado, porque os investidores também ficam com medo. A primeira grande urgência é superar a crise política e se estabelecer um governo que tenha legitimidade. No plano da reconstrução, o desafio é se conseguir mecanismos mais ágeis de gestão dos projetos, porque os mecanismos são os meios tradicionais, do Banco Mundial, do BID, das Nações Unidas, que são agências que costumam funcionar numa escala de longo prazo - e aqui estamos precisando de projetos grandes e de execução imediata. E terceira coisa é que se consiga maior entrosamento entre os atores internacionais, inclusive as ONGs, e o governo do Haiti, e aí acho que é um entrosamento a nível intermediário. Quando em geral se fala em coordenação, fica se falando só na presidência, nos ministérios. Acho que precisamos evoluir sobretudo num plano mais intermediário, das cidades, das prefeituras, dos órgãos funcionais que cuidam do lixo, da água, do trânsito, da polícia, onde se pode evoluir muito, qualquer que seja o quadro político, desde que haja estabilidade institucional. Então acho que nosso desafio é a capacidade de conseguir colaborar com instituições intermediárias.

O que os haitianos podem comemorar no aniversário?

Olha, comemorar acho que neste ano não cabe. Quem tem formação religiosa já leu o Livro de Jó, do Velho Testamento, que é um livro muito cruel, porque parece Deus e o Diabo para testar os limites da resistência humana, os limites da paciência, da capacidade diante das doenças, dos desastres naturais, das perdas econômicas. Este ano foi um ano de Jó do Haiti. Então a única coisa que dá para celebrar é a vida diante da morte, num ano em que a morte prevaleceu. Não é um ano de comemoração para nada. É um ano de lamento, de choro.

Fonte: Redação Terra
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