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Antropólogo: liberação da maconha no Uruguai pode ser exemplo ao Brasil

Entretanto, o deputado Osmar Terra, autor da Lei Antidrogas, acredita que iniciativa uruguaia é um retrocesso no combate à dependência

4 ago 2013 - 13h59
(atualizado às 13h59)
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<p>Homem fuma maconha do lado de fora do Congresso uruguaio, onde o projeto foi votado na última quarta-feira</p>
Homem fuma maconha do lado de fora do Congresso uruguaio, onde o projeto foi votado na última quarta-feira
Foto: AP

O projeto de lei que propõe a legalização da produção e do consumo de maconha no Uruguai tem potencial para inspirar uma medida semelhante no Brasil. A opinião é do antropólogo Maurício Fiore, membro da Rede Pense Livre, para quem o País já tem "todas as condições" de propor um modelo de regulamentação do uso da droga. "O Brasil teria todas as condições de já propor um modelo regulamentado de produção e comércio. O problema são as barreiras políticas a isso, que são muito grandes no Brasil", afirmou Fiore, em entrevista ao Terra.

Na última quarta-feira, os deputados uruguaios aprovaram o projeto que tem como objetivo tirar mercado dos cartéis do narcotráfico, repassando o controle de toda a cadeia produtiva ao Estado. A proposta ainda precisa ser votada pelo Senado, onde o partido do presidente José Mujica conta com ampla maioria.

Pelo texto, o Estado uruguaio assumiria o controle e a regulação das atividades de importação, produção, compra, armazenamento, comercialização e distribuição da maconha e derivados. Isso seria conduzido por uma agência estatal, responsável por emitir licenças e comandar os elos da cadeia. Apenas residentes no Uruguai, maiores de 18 anos, poderiam consumir a droga, desde que façam um cadastro em que se declaram consumidores recreativos de maconha, com posse limitada a 40 gramas de cannabis.

"É algo inédito desde que esse sistema mundial proibicionista foi montado, há um século. Se realmente for confirmado - e deve ser, porque no Senado o partido do governo tem ampla maioria -, é a primeira vez que um país que é signatário das três convenções de psicotrópicos da ONU tira por conta própria uma substância banida e coloca na legalidade, e regulariza o comércio", destaca Fiore. Segundo o antropólogo, uma vez aprovada, a regulamentação da maconha será um experimento importante para análise mundial. "Do ponto de vista de política pública sobre drogas, vai ser um experimento muito interessante. A gente vai ter realmente pela primeira vez todo o ciclo de produção legalizado. Porque o que se tinha na Holanda não era isso. Na Holanda você tinha uma tolerância no varejo, mas você não permitia a produção. Agora você tem todo o circuito legalizado, e a venda com alguma regulação", argumenta.

Para o membro da Rede Pense Livre, a proximidade com o Uruguai pode ter um grande impacto na mudança de posicionamento da política antidrogas do Brasil. "A legalização do Uruguai é um passo enorme para isso, até porque o Uruguai faz parte do Mercosul. A maconha é uma droga interessante para experimentar uma queda do proibicionismo, porque ela tem essa característica menos arriscada no comércio. E o seu consumo, ainda que traga alguns riscos, não se compara ao de outras drogas", argumenta.

Autor da Lei Antidrogas defende maior rigor

A opinião do antropólogo é radicalmente oposta à do deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS), autor do projeto de lei (PL) 7663/10, aprovado pelo plenário da Câmara em maio deste ano e que sugere alterações no Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (Sisnad), ampliando o rigor contra usuários e traficantes. Para o deputado, o Brasil enfrenta atualmente uma "epidemia" de dependência, potencializada pela popularização do crack, cujo enfrentamento seria enfraquecido com a liberação da maconha.

"(O PL 7673/10) É uma lei que vai no sentido oposto ao que está acontecendo do Uruguai. Eu parto de princípios médicos e científicos em relação às drogas, inclusive à maconha. Existe um mito de que a maconha não causa dependência, que a maconha é remédio. A maconha é uma droga pesada hoje, ela é 20 vezes mais potente que a maconha de Woodstock. Quem abastece o mercado brasileiro são os traficantes do Paraguai. Não vai ter diminuição do tráfico, pelo contrário. Acho que vai aumentar o tráfico, porque vão produzir novas modalidades de tráfico e vão concorrer com o governo", projetou o deputado. "É um agravante social gigantesco, nós somos um país que tem fronteira com Paraguai, Bolívia, com Peru. Temos fronteira com todos os produtores de droga mais importantes do mundo", argumentou.

Para Fiore, porém, a grande extensão das fronteiras brasileiras não seria um empecilho para a legalização da maconha. "O maior entrave não é a questão da fronteira, porque, no caso específico da maconha, nós compramos do Paraguai simplesmente porque não produzimos o suficiente aqui. A maconha produzida no Nordeste, que é o nosso centro produtor, abastece apenas as regiões em volta. Se passasse a ter uma regulamentação, ela seria produzida aqui, a fronteira não seria um problema", justificou.

O antropólogo reconhece o risco da manutenção de um "mercado paralelo" de maconha, mas disse acreditar que a medida diminuiria o poder de organizações de narcotraficantes que fazem uso da violência. "O risco do comércio paralelo existe, e eu tenho a impressão de que a lei vai ter que ser aperfeiçoada (no Uruguai). Ainda que ela tenha permitido o cultivo de cooperativas e o cultivo individual, ela ainda exige para aquela pessoa que não quer nem plantar em casa e nem ser membro de cooperativa, um cadastro. E esse cadastro assusta um pouco, por mais que ele tenha sido colocado como sigiloso. Isso pode gerar ainda um comércio paralelo. Só que eu tenho a impressão que esse risco é minorado. Porque esse comércio vai ser pequeno, vai ser próximo do que a gente tem, por exemplo, no Brasil, com o álcool e o tabaco. E ele não vai ser violento. Até para concorrer com o mercado legalizado, você não vai poder constranger violentamente o consumidor, você vai ter uma questão de preço, de qualidade", citou Fiore.

Na opinião do deputado, o argumento de que a estatização da produção da maconha vai enfraquecer o poder dos traficantes é "uma bobagem". "O problema não é quem controla, é o transtorno mental que causa. Vamos legalizar e não vai mais ter tráfico. Só que legalizando, quem vai fazer (a produção) é a Souza Cruz, é a Phillip Morris", afirmou, citando grandes produtoras de tabaco. "Tu vais comprar crack no supermercado, maconha no barzinho da esquina. Isso vai aumentar ou diminuir o número de usuários, de dependentes? Claro que vai aumentar o número de pessoas doentes, pessoas que vão precisar de um tratamento, que é caríssimo, que vai ter que se tratar por toda a vida", rebateu Terra.

Desinformação e política de terror são entraves

Maurício Fiore acredita que um dos grandes méritos do presidente José Mujica é o de tornar público o debate quanto ao papel do Estado em relação às drogas. "O que as pessoas compreendem pouco no debate sobre drogas é o lugar que o Estado deve ter. Qual o papel do Estado na questão das drogas? E o proibicionismo, nessa invenção do século 20, posicionou o Estado da maneira mais radical possível. As drogas podem ser de fato um problema, e o Estado tem que assumir uma posição. Só que, no proibicionismo, ele assumiu a mais radical das posições. Com isso, ele não só acabou interferindo de maneira arbitrária nas condutas individuais, proibindo as pessoas de fazerem o consumo e talvez fazerem mal a si próprio, como produziu efeito nefasto do tráfico", declarou o antropólogo.

"A maior parte da população e a opinião pública ainda não conseguem conceber um mercado legal de maconha. Nós não temos dúvida de que a decisão uruguaia vai contribuir pra gente tirar um pouco de estigma dessa decisão. A gente vai ver que não vai acontecer nada de muito grave no Uruguai, pelo contrário. A tendência é de que as coisas melhorem, e isso vai contribuir para o debate aqui", completou Fiore, para quem a saúde pública deve ser um dos pilares da política antidrogas, em detrimento da repressão ao consumidor. "Ao invés do Estado buscar interferir nas condutas individuais, banindo todas as substâncias que já existem e as que ainda serão criadas, posicionar na maneira de dizer: o uso de drogas existe, vai continuar existindo. Nós que temos de lidar de maneira educativa, disseminando informações sobre o uso de drogas, e ao mesmo tempo tratando, de maneira humana, solidária e com técnicas de saúde pública, aqueles que se tornam dependentes", sugere.

Osmar Terra, porém, acredita que, mesmo sob a ótica da saúde pública, a legalização das drogas é danosa. "Nós estamos em plena epidemia do crack no Brasil. Estamos num momento de uma epidemia gravíssima. Nós hoje temos quatro vezes mais usuários de crack do que nós tínhamos há seis anos. A área de saúde do governo age como avestruz, enfia a cabeça no buraco para não ver o que está acontecendo. Num momento desses, tu começar a legalizar... pelo contrário, tem que aumentar o rigor contra o álcool, contra o cigarro. Não é achar que porque o álcool é legal, então vamos legalizar tudo. Porque isso causa uma doença irreversível", afirma o deputado. "Nós precisamos dar a essas pessoas uma proposta de tratamento adequada, e tirar de circulação a droga. 'Ah, mas vai prender muita gente?' Tem que prender. Tem que prender mais do que já está sendo feito, inclusive", disparou.

Para Fiore, a sociedade brasileira é vítima de uma campanha de terror que torna a discussão sobre drogas "rasa" no País, criando um ambiente de desinformação que leva à rejeição de propostas como a do presidente uruguaio. "(A população brasileira) É muito mal informada, e com isso acaba sendo conservadora, porque você tem um discurso de medo e de pânico sobre drogas. Um discurso que não traz nenhum dado científico, não se aprofunda na discussão. Ainda confunde luta pela construção de uma nova política como uma defesa das drogas. As pessoas que defendem essa política são rapidamente taxadas de defensoras do uso de drogas."

'Quem viver, verá', diz deputado

Crítico ao presidente uruguaio, Osmar Terra se mostra cético quanto à possibilidade de sucesso da proposta de Mujica, caso seja aprovada pelo Senado. "É impossível imaginar uma política dessas, não surtirá efeito no Uruguai. Todas as políticas que chegaram à legalização das drogas, como ocorreu na Suécia, se transformaram num desastre", afirmou. "O Mujica não sabe nem o que ele está falando. E é essa ilusão. Qual foi o argumento para aprovar lá? Que isso ia diminuir o tráfico. Quem viver, verá. Vamos ver aumentar o tráfico, um monte de gente vai ficar doente para depois ter que reprimir de novo, para depois ter que botar na ilegalidade de novo. Para que isso, se já tem experiência no mundo mostrando isso?", questionou.

Para o deputado, existe um movimento orquestrado em escala mundial para legalizar as drogas, que seria, segundo sua versão, financiado por pessoas interessadas em viabilizar economicamente os recursos movimentados pelo narcotráfico. "Quem está atrás dessas campanhas para liberar as drogas? Quem é que financia? Os maiores financiadores das campanhas de liberação das drogas nos EUA são especuladores financeiros. Eles estão querendo botar mão no dinheiro que está circulando clandestino com o tráfico", disse.

Maurício Fiore acredita que a experiência uruguaia terá de ser acompanhada "com muita atenção", já que o governo enfrentará forte pressão, tanto interna quanto internacional, para rever a política. "O temor que eu tenho é de uma tentativa de sabotagem desse novo sistema. Você de alguma forma criar algum tipo de terror em relação ao novo sistema, sabotar e dizer que ele levou a um caos maior, um aumento de consumo. Você fabricar dados para tentar enterrar de vez não só a mudança no Uruguai como no mundo, porque vai ser uma experiência inédita. Então nós temos que estar muito atentos para a produção de dados", previu.

Fonte: Terra
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