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Mundo

Muammar Kadafi simbolizava medo e ódio no imaginário líbio

23 out 2011 - 11h37
(atualizado às 11h38)
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Tariq Saleh
Direto de Beirute

Quem viu as imagens do povo líbio comemorando com lágrimas nos olhos a captura e morte do ex-líder Muammar Kadafi não ficou surpreso com o clima de alívio, felicidade e comoção generalizado. Nas emissoras de TV árabes, líbios gritavam que o pesadelo havia terminado.

Grafite em um muro de Trípoli mostra Kadafi representado como um cachorro; líbios estão livres do ditador
Grafite em um muro de Trípoli mostra Kadafi representado como um cachorro; líbios estão livres do ditador
Foto: AFP

O ex-ditador líbio era, afinal de contas, a personificação de 42 anos de terror, mortes, violações de direitos humanos, desaparecimentos, intimidações e repressão à população. Sua morte põe fim a um estado de medo e apreensão que já durava desde fevereiro, quando o povo se rebelou e iniciou a revolução pró-democracia, seguindo a onda de revoltas na região conhecida como Primavera Árabe.

As circunstâncias que cercam a morte do ex-líder ainda não estão claras. A ONU já pediu uma ampla investigação sobre como Kadafi, mostrado nas imagens de vídeo sendo conduzido ainda vivo por tropas do Conselho Nacional de Transição (CNT), que governa interinamente a Líbia, acabou sendo morto. O ex-líder tinha ordem de prisão emitida pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes contra a humanidade.

No entanto, para os jornalistas internacionais que estiveram na Líbia cobrindo o conflito, não será uma surpresa se ficar provado (isso se alguma investigação sequer for feita e chegar a uma conclusão dos fatos) que militantes rebeldes executaram Kadafi, fazendo justiça com as próprias mãos.

Tanto era o medo de que Kadafi instigava no imaginário coletivo dos líbios, que muitos temiam que se ele permanecesse vivo já seria o suficiente para que pudesse voltar a aterrorizá-los como fez nos últimos 42 anos.

Jovem e promissor
Mas nem sempre foi assim. Quando chegou ao poder, em 1969, depois de um golpe de Estado, sem derramamento de sangue, que depôs o então rei Idris 1°, Kadafi era visto como jovem e promissor não apenas pelos líbios, mas por líderes árabes como o egípcio Gamal Abdel Nasser e o palestino Yasser Arafat, duas figuras fortes do pan-arabismo nos anos 60 e 70.

De fato, como alguns líbios da cidade de Benghazi, no leste do país e sede do movimento rebelde disseram, os primeiros anos de Kadafi no poder foram de prosperidade. "Ele instensifcou a produção petrolífera, a infra-estrutura, estradas, moradias", disse um senhor em um café da cidade litorânea.

Mas aos poucos, o jovem coronel líbio começou a mudar sua forma de governar. Segundo analistas, até a metade dos anos 70, Kadafi governava de forma mais suave, com um prisões a opositores, mas sem a violência que caracterizaria as décadas seguintes de seu regime. Mas foi um conselho supostamente dado a ele pelo cubano Fidel Castro que mudou os métodos de repressão. "Durante uma visita à Líbia, o cubano disse a Kadafi que a melhor maneira de se livrar de opositores era eliminando-os, e não prendendo", alegou Ahmed Younis, analista político da Universidade de Bengazi.

Os anos seguintes foram marcados por perseguições políticas, torturas, esquadrões da morte e execuções de opositores. Na região de Benghazi não faltam histórias de torturas e mortes nas mãos de milícias pró-governo.

Os líbios sentiram ainda mais a mão de ferro de Kadafi durante os anos 80 e 90, quando a Líbia ficou isolada internacionalmente com sanções econômicas devido a acusações de finaciamento ao terrorismo. O país se fechou ao mundo, e Kadafi se tornou cada vez mais excêntrico, submetendo a população às suas vontades e à sua máquina de repressão.

Ódio mútuo
No leste do país e segunda maior cidade da Líbia, Benghazi se tornou naturalmente o berço do movimento rebelde pró-democracia, iniciado em fevereiro. E isso não aconteceu ao acaso. A cidade e Kadafi sempre nutriram ódio e desprezo mútuos.

Em cada esquina, após conversar coma população local, as palavras para caracterizar o ex-ditador eram palavrões que no mundo árabe são extremamente ofensivas e sinal de desrespeito.

Segundo integrantes do CNT, Kadafi nunca escondeu o desprezo que sentia por Benghazi e região, demonstrado nos investimentos muito maiores que fazia em Trípoli e sua cidade natal, Sirte. E a relação só piorou após uma tentativa de assassinato contra ele ter sido feita em uma de suas visitas à cidade. O castigo, disseram locais, foi ainda mais repressão de forma coletiva. "Ele não gostava de vir a Benghazi, tamanho era o desprezo. E nós só nutríamos ainda mais ódio por ele", salientou um rapaz em uma praça na cidade.

"Não que ele não fosse odiado em outras regiões do país, mas Benghazi sempre sentiu a carga de desprezo dele, e ele sentia o mesmo da gente", completou o rapaz, um ativista jovem ligado também ao CNT.

Alívio coletivo
Entretanto, o ódio era também acompanhado de medo, já que Kadafi ocupava o imaginário coletivo dos líbios pelas histórias de assassinatos levados a cabo por seus esquadrões da morte.

Em várias cidades, pessoas relatavam crueldade em execuções, humilhações a famílias de supostos dissidentes. "Eu cresci ouvindo horrores sobre Kadafi, de como sentia prazer em ver o sofrimento de seu povo enquanto ele enriquecia com ouro para financiar suas excentricidades", disse o jovem Badram Al-Husseini, que lutava na frente de combate em Brega, a 250 km ao oeste de Benghazi, ainda em abril.

O medo e ódio a Kadafi era expressado de diversas formas pela população, mas era nos grafites nas ruas que os estrangeiros notavam as emoções dos líbios em relação ao ex-ditador. Os grafites simbolizavam a liberdade de expressão que finalmente tinham após acumulados 42 anos de silêncio.

Vários desenhos mostravam ele com corpo de serpente, como um monstro, como um polvo gigante de ar assustador, como a escória da humanidade, entre outros. Alguns desenhos já davam uma pista do desejo dos líbios para o destino de Kadafi - morte na forca, executado a tiros, etc.

De fato, em conversas nas ruas de Benghazi e outras cidades, pessoas revelavam a jornalistas seu desejo. "Cortar a cabeça dele", disse uma mulher. "Executá-lo em praça pública sob os olhos do povo", disse um homem.

Portanto, não foi surpresa ver tantos líbios chorando de alegria pela morte de Kadafi, em um sentimento de alívio coletivo. Talvez, para eles, ao contrário da comunidade internacional, que preferia um julgamento, a justiça foi feita e seus medos foram enterrados com Kadafi.

Fonte: Especial para Terra
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