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Mundo

Religião e perda dos limites morais mudaram terrorismo nos anos 90

31 ago 2011 - 16h18
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Lúcia Müzell
Direto de Paris

Os atentados às Torres Gêmeas não desencadearam um novo terrorismo. Por um lado, ele já estava enraizado na sociedade desde a introdução da radicalização religiosa nos atos de violência. Por outro, remete ao momento em que os questionamentos morais, que outrora impunham limites à matança indiscriminada de inocentes em uma ação política, foram abandonados pelos extremistas.

Zarka: "O aspecto religioso do terrorismo, adquirido há uns 20 anos, muda a natureza do terrorismo"
Zarka: "O aspecto religioso do terrorismo, adquirido há uns 20 anos, muda a natureza do terrorismo"
Foto: Lúcia Müzell / Especial para Terra

Assim enxerga a paisagem de medo e alarme do século XXI o filósofo francês Yves-Charles Zarka. Prolífero e enérgico, democrata inverterado e provocador, ele é autor de dezenas de livros sobre o rumo da sociedade contemporânea, como Difícil Tolerância Repensar a Democracia. Do seu escritório na Universidade Paris Descartes, Zarka conversou com o Terra sobre a sobre a história e as mudanças do terrorismo desde o 11 de setembro.

Terra - O que é o terrorismo hoje, 10 anos após o 11 de setembro?

Yves-Charles Zarka - O terrorismo semeia o terror. Ele não é novo, não nasceu ontem nem hoje. Ele pode dificilmente ser avaliado sob uma ótica de "pós-11 de setembro" na medida em que um grande número de movimentos de libertação usaram atos terroristas em relação a um poder em vigor. Se pegamos a forma moderna do terrorismo, eram atos de violência política que tinham por objetivo questionar uma dominação, um poder colonial ou imperial, portanto exprimia o modo através do qual o poder podia ser contestado por movimentos não-estatais. Mas houve também um terrorismo de Estado. Os Estados adotaram o terror, por exemplo, durante os colonialismos, para instaurar a sua dominação. Logo, vemos que desde o início existe uma ambivalência do terrorismo e que o terrorismo não quer, na sua forma moderna, ser julgado simplesmente de uma forma absoluta. É preciso considerar as circunstâncias nas quais ele é praticado. Por exemplo, os atos terroristas dos resistentes francês contra os nazistas não podem ser condenados por serem atos de terror. A perspectiva era de liberar o país. Já os atos de terrorismo cometidos pelos nazistas, por outro lado, não tinham nenhuma ambição deste gênero - pelo contrário. Na sua forma moderna, o terror foi uma violência política em vista ou de questionar uma dominação injusta, ilegítima, ou de terrorizar as populações e instaurar uma dominação.

Terra - O que você acha que foi o fator determinante na mudança do terrorismo para a forma como o conhecemos hoje?

Zarka - O terrorismo pode suscitar um debate moral. Como em "Os justos", de Albert Camus, em que a questão do terror levanta um problema moral: o ato de terror, por definição, vai matar. Mas haverá sempre inocentes. Ele não pode ser tão preciso ao ponto de não atingir apenas a pessoa ou o grupo que se deseja. A questão de Camus é: temos o direito de seguir em frente se o ato de terror poderá atingir inocentes? Então ultrapassamos a questão política e passamos para uma questão moral. O fim justifica todos os meios e todos os procedimentos? Neste situação, o terror é percebido como um simples instrumento que precisa ser julgado em relação às suas finalidades, que podem ser comprometidas se ele acarreta violências gratuitas e agride indivíduos que não têm nada a ver com o conflito em questão. Ao introduzirmos a moral, mudou-se a visão do terror.

Terra - Desde quando?

Zarka - Não podemos dizer que foi com o 11 de Setembro. Foi certamente antes. Acredito que o que manifesta mais radicalmente essa mudança foi o início dos homens-bomba. Creio que o uso de homens-bombas, indivíduos que se explodem para atingir qualquer um e em qualquer lugar, marca uma mutação do terror que é muito importante. Quer dizer que não há mais nenhum problema moral. Se quer atingir por atingir, e ao máximo possível. Crianças, idosos, jovens, mulheres, homens, todos. O terror quer simplesmente terrorizar as populações. No 11 de Setembro, se quis realizar um golpe terrível no poder americano, o maior do mundo, no seu coração, em Nova York, e em dois prédios simbólicos. É preciso dizer que foi um sucesso excepcional, do ponto de vista dos terroristas. Foi muito pior do que Pearl Harbor, que não foi no solo americano. Foi na cidade mais conhecida e mais ilustre dos Estados Unidos. Foi como se tivessem dado um golpe na cabeça deles. A queda das torres, com milhares de mortos, foi algo terrificante. Percebemos o quanto o terrorismo havia entrado para ficar nas nossas vidas, a partir daquele evento. A questão de Os Justos, de Camus, não passou pela cabeça de Bin Laden naquele momento.

Terra - Os objetivos do terrorismo hoje não seriam muito mais amplos do que os de 30 anos atrás? Ou seja, hoje a Al Qaeda quer acabar com os "traidores" ocidentais, algo que atinge bilhões de pessoas, e é uma causa quase abstrata.

Zarka - Hoje os objetivos são completamente diferentes. Não existe mais a história de "eu utilizo um instrumento X porque quero chegar ao objetivo Y", e "eu tenho questionamentos sobre se os meus fins são bons". Não há nada disso. Entramos em um estado de guerra total, em que há apenas um vencedor e um vencido. A guerra total não conhece limites, logo entramos no terrorismo sem limites. Você mata onde quiser, o máximo que puder, e você mata matando, ou seja, você forma e manipula intelectualmente pessoas para que elas deem suas próprias vidas antes de matar. Não se trata de dar a sua vida para salvar, mas para matar. Dar a sua vida para matar é uma mutação muito importante. Tudo acontece como se sacrificar para matar fosse em si um ato de virtude, um ato são e religioso, e que vai lhes permitir chegar ao paraíso. É isso que é terrível: matar pensando que este ato vai me proporcionar o mundo da felicidade e ser avaliado por Deus como alguém valioso.

Terra - Paradoxalmente, o fator religioso retirou certos limites, então?

Zarka - O peso religioso contribuiu para que o terrorismo mudasse totalmente. O terrorismo moderno era político. Ele sendo bom ou ruim, que ele tenha como finalidade a liberação ou a dominação, ele se julgava em relação a esta finalidade, ou seja, ele era necessariamente limitado. O terrorismo religioso não tem limites. É a dimensão religiosa que vai retirar todos os limites. A finalidade do político é o aumento do poder e o objetivo é o de submeter o outro, ou de se livrar de um poder. O terrorismo religioso não quer somente ganhar a guerra: ele quer purificar o mundo, retirar as impurezas dele. Se ele massacra, é porque pensa que vai limpar as imundices, purificar o mundo destes infiéis descrentes que poluem o mundo no qual todos coabitam. E fazendo isso, o terrorismo cumpre uma missão divina. Ele pensa que vai ao paraíso e vai se completar ao fazer este ato, de retirar do mundo uma parte dos que o poluem. Ou você vira muçulmano, ou você morre. Quem não está com eles, não tem qualquer valor e merece ser terrorizado. O aspecto religioso do terrorismo, adquirido há uns 20 anos, muda a natureza do terrorismo.

Terra - Mas, no início, esse terrorismo religioso não começa pela mesma vontade de impedir a dominação americana no mundo árabe, ou então de dominar o restante do mundo com a visão muçulmana do mundo?

Zarka - Acho que não. Houve, no Ocidente como nos países muçulmanos, o aparecimento de uma ideologia segundo a qual os dois mundos viviam de acordo com valores completamente diferentes, que não têm nada a ver um com o outro. O Ocidente tem o gosto pela liberdade, a igualdade, a dignidade, os direitos humanos, etc. Os demais diriam "não, nós não queremos nada disso, para nós, o que conta são as leis de Deus, que queremos estabelecer na Terra inteira", e essa lei não teria nada a ver com a dignidade, a igualdade, a liberdade: ela teria outros valores. Criou-se uma ideia de que haveriam dois valores totalmente diferentes. Isso foi teorizado por Samuel Hunting , em O Choque de Civilizações, na qual ele diz que os grandes conflitos de hoje não serão mais conflitos por territórios ou poderes, mas em torno de valores. Segundo ele, há dois sistemas de valores totalmente diferentes: o do Islã e o do Ocidente. Haverá, portanto, um confronto terrível. Esta ideologia era compartilhada tanto por ocidentais e por islâmicos. Entretanto, entre a direita radical americana e os islâmicos radicais, é a mesma coisa: eles têm o mesmo nível de discurso, é impossível dialogar com eles. Há uma oposição que parece insuperável. Bush e Bin Laden, neste sentido, se refletem. Não quero dizer que é a mesma coisa, de forma alguma. Mas eles se refletem. A ideologia da guerra das civilizações é adotada pelos dois e eles se respondiam mutuamente.

Terra - Você acha que a morte de Bin Laden contribui para a diminuição do terrorismo?

Zarka - Certamente. Hoje já existe menos terrorismo do que há 10 anos, e a morte de Bin Laden foi também muito importante para isso. É um mito que morreu, e um mito é muito mais do que uma pessoa: é um símbolo vivo, é uma justificativa para certos atos, e é uma referência para muitos. A sua morte compromete muitas coisas, pois ele se colocava como o invencível, como aquele que é protegido por Alá.

Terra - O terrorismo precisa de um líder?

Zarka - Não sei se precisa, necessariamente. Os líderes têm um papel considerável. Bin Laden destrói as Torres Gêmeas, em Nova York, e não se consegue capturá-lo. Durante anos a fio, ele reivindica atentados aqui e ali, fazendo reinar o terror ao redor do mundo todo. Ele debocha do fato de os americanos, a maior potência do mundo, não conseguirem encontrá-lo. Para centenas ou milhares de fiéis, vira um líder de uma suprema inteligência e audácia - e, para completar, ainda é o protegido de Deus, tornando-se invencível. Se essa figura morre... É terrível, é terrível. É o mito da Guerra Santa Islâmica que recebe um golpe muito violento.

Terra - A morte de Osama Bin Laden muda algo no terrorismo dos anos 2010?

Zarka - Ainda é muito cedo para dizer, mas eu acho que sim. Trata-se da perda de uma referência. Não digo que esta morte vai acabar com o terrorismo de um dia para o outro. Mas a perspectiva que o sustentava, a de um conflito longo de civilizações, da guerra contra a América e o que ela representava para o Ocidente e para parte do Islã, acabou.

Terra - Você acha que a diminuição do terrorismo passa pela chegada da democracia nos países árabes?

Zarka - Quando se trata de derrubar Estados bandidos como o da Líbia, de Muammar Kadafi, sim. O poder abusivo é o que há de mais terrível em uma sociedade. Se Kadafi conseguir se manter no cargo, vai ser péssimo porque vai dar um exemplo de vitória para os outros países da região, muitos deles ligados intimamente com o terrorismo, como o próprio Kadafi já foi no passado e demonstra ser ainda hoje, contra o próprio povo. Quando se derruba um governo deste tipo, se abate uma fonte de terrorismo. Mas ainda estamos no plano das esperanças, porque não se sabe exatamente no que essas revoltas populares no mundo árabe vão resultar.

Terra - Você acha que todos os meios são válidos para acabar com o terrorismo?

Zarka - Não, não podemos nos transformar em terroristas para derrubar terroristas. Não podemos nos transformar naquilo que condenamos no outro. O grande e gigantesco erro dos Estados Unidos nas guerras no Oriente Médio foi de achar que se pode importar a democracia para um país. Não basta acabar com um chefe de Estado e trazer, como um presente, urnas e cédulas de voto e agora tudo vai mudar.. É absurdo. Existem tantos grupos étnicos, religiosos, ou seja, toda uma estrutura social que não está nem aí para a democracia. Este é bem o tipo de erro mais comum dos americanos: venho te salvar, trouxe tudo para isso. Salvo que ninguém pediu.

Fonte: Especial para Terra
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