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Mundo

Filósofo defende morte de Bin Laden, mas vê Ocidente "envergonhado"

3 ago 2011 - 11h04
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Reportagem
Felipe Schroeder Franke

No dia 2 de maio, os Estados Unidos puseram fim à caçada por Bin Laden. À ação se seguiu um momento de euforia americana, mesclada com dúvidas quanto à legitimidade e os objetivos da ação do exército. Os soldados tinham como objetivo matar o terrorista? Eles tinham o direito de invadir o Paquistão e fazê-lo?

Obama, durante uma das reuniões de 1º de maio, antes da operação que matou Bin Laden: convicção ou vergonha?
Obama, durante uma das reuniões de 1º de maio, antes da operação que matou Bin Laden: convicção ou vergonha?
Foto: AFP

Denis Rosenfield, professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), não vê espaço para dúvidas a estas perguntas. "Sou totalmente a favor da ação americana, pois eles entenderam muito bem o seguinte: a soberania nacional é limitada se ela abriga o terror", defende. Pois Bin Laden, em 2001, coordenou o ataque às Torres Gêmeas, desrespeitando a "soberania nacional dos Estados Unidos". O terror, assim, configura "um tipo de violência que só pode ser eliminado com atos de violência", resume.

Mas não se viu o governo norte-americano admitir publicamente que o objetivo da ação seria matar Bin Laden; seguiram-se, sim, relatos pouco claros sobre as circunstância da ação na mansão em Abbottabad: o terrorista estaria perto de armas e, no escuro da ação, os soldados julgaram que o mais seguro seria baleá-lo. Por quê? Rosenfield vê uma possível causa para a hesitação pública de Washington no que chama de 'vergonha ocidental': "O problema é que, hoje, a civilização ocidental é uma civilização envergonhada. Há uma renúncia do juízo. As pessoas têm medo de julgar".

Nesse contexto de violência contra violência e de incertezas da possibilidade de julgamento do outro, Rosenfield defende o valor universalidade da liberdade individual e elege a chance de diálogo como condição social básica: "Nós temos que resgatar os valores de universalidade de uma sociedade livre onde as pessoas possam contrapor argumentos. As pessoas podem e devem ter valores morais e culturais diferentes, sempre quando aceitem o mesmo espaço de discussão no que diz respeito a esses valores, e não partam para eliminar o outro".

Terra - Foi o 11 de setembro que despertou seu interesse pelo estudo do terrorismo?

Denis Rosenfield - Meu interesse é bem interior. Filosoficamente, há um grande problema que não foi suficientemente tratado, que é o problema do mal. O ponto de partida da minha reflexão era: o que é um tipo de ação que se volta contra tudo aquilo que nós consideramos como sendo a humanidade? Essa preocupação vem de um problema empírico, aquilo que Hannah Arendt (filósofa alemã do séxulo XX) chamou de "mal radical": uma ação que se volta contra os fundamentos da ação. É o tipo de ação que vai no limite daquilo que podemos ter de inteligibilidade no que diz respeito a compreender um tipo determinado de violência, uma ação que desconsidera completamente a vida. Para mim, o terrorismo islâmico é uma exemplificação deste "mal radical". E diria que, do ponto de vista da experiência histórica, muito semelhante ao nazismo e ao comunismo. É um tipo de violência que só pode ser eliminado com atos de violência.

Terra - Com o novo terrorismo, temos um choque de civilizações. A discussão gerada pelo interculturalismo aponta para a impossibilidade de assumirmos valores universais, de modo que o Ocidente não teria o direito de interceder em outras sociedades.

Rosenfield - Eu sou um radical defensor das liberdades. Há algumas civilizações que desenvolveram uma ideia da liberdade, com todas suas dificuldades e incoerências, mas que têm valor universal, (enquanto que) outras não têm esse valor. Existe juízo moral, sim. Se há civilizações que cortam o clitóris das mulheres, eu sou contra, mesmo que seja culturalmente defendido. Me deixa abismado que haja pessoas que defendem isso em nome da diferença cultural. O problema é que, hoje, a civilização ocidental é uma civilização envergonhada. Há uma renúncia do juízo. As pessoas têm medo de julgar. (Eu acredito que) o juízo moral, sim, segue parâmetros, (e) os parâmetros do juízo moral devem ser de tipo universal. O problema é esse: você tem que pensar uma sociedade regida pelo diálogo, pelo exercício da razão, pela liberdade de pensamento, ou você vai sucumbir à violência fanática.

Terra - Você parece estar retomando a famosa tese segundo a qual as democracias não conduzem guerras contra outras democracias.

Rosenfield - Democracias não conduzem guerras contra democracias. Agora, a democracia precisa ser um regime forte. A democracia deve lutar pela defesa de uma sociedade livre. As pessoas estão entendendo que a democracia deve ser uma sociedade fragilizada, que aceita qualquer tipo de diferença. Não: não vai aceitar o ato violento, irracional, que põe em questão os seus fundamentos.

Terra - Então por que a sociedade ocidental estaria envergonhada, como o senhor afirmou?

Envergonhada porque ela tem um passado de colonialismo, Os ocidentais estão envergonhados de tudo, então desenvolveram a ideia de que haveria uma igualdade cultural. (Eu defendo que) não existe uma igualdade cultural, porque, se você ficar na igualdade cultural como um valor absoluto, você vai permitir qualquer barbaridade no interior das culturas. Há costumes culturais que devem ser respeitados dentro de um limite, que é o limite do juízo moral. Agora os ocidentais ficaram envergonhados. Depois da Segunda Guerra Mundial, as pessoas renunciam ao juízo. Nós temos que resgatar os valores de universalidade de uma sociedade livre onde as pessoas possam contrapor argumentos. As pessoas podem e devem ter valores morais e culturais diferentes, sempre quando aceitem o mesmo espaço de discussão no que diz respeito a esses valores, e não partam para eliminar o outro.

Terra - Isto é o ideal de Jürgen Habermas, filósofo alemão do séxulo XX.

Rosenfield - Quanto mais eu leio Habermas, menos eu me interesso por ele. Habermas não leu Hobbes direito. Não existe esse ideal onde todos vão entrar numa interlocução racional. São relações de força. É como Hobbes diz: são corpos em movimento que se chocam. E o limite do choque de movimento é o medo da morte. Portanto, eu acredito que os discursos racionais se dão no interior dessa sociedade onde as relações de força de estabelecem. Não existe a possibilidade de uma sociedade total de seres racionais. A comunidade dos seres racionais se dá no contexto de luta, mas no contexto de luta onde devem fazer avançar seus argumentos. Portanto, não se trata de criticar qualquer ato de violência. Não, há atos de força pelo Estado que são atos justificados. Se alguém mata alguém na rua, o Estado tem todo o direito de prender e julgar essa pessoa.

Terra - Foi isso que aconteceu quando os EUA mataram Osama bin Laden em Abbottabad?

Rosenfield - Eu gostaria de deixar muito claro que eu sou totalmente a favor da ação americana, pois eles entenderam muito bem o seguinte: a soberania nacional é limitada se ela abriga o terror. O direito internacional não foi respeitado? Atenção: a soberania nacional dos Estados Unidos não foi respeitada pelo terror, eles foram lá e derrubaram as torres gêmeas do World Trade Center e depois foram abrigados pelo Afeganistão no regime Talibã. Eles vão lá, atingem o território de outra nação e dizem: "não, agora estou abrigado na soberania nacional de outro país". Covarde. A soberania nacional, do ponto de vista do direito internacional, é limitada para atos de guerra. Foi um ato de guerra, e a guerra é contra o terror. O pior que poderia ter acontecido é a impunidade, e os Estados Unidos foram muito claros nesse sentido. Se eles tivessem aceito (a impunidade do terror), amanhã essa situação seria completamente generalizada.

Terra - Qual o desafio do terror ao direito internacional?

Rosenfield - O direito internacional é diferente dos direitos nacionais. O direito nacional tem o poder de Estado que dá força a esse direito. O Estado faz vigorar aquela lei. Do ponto de vista do direito internacional, não tem nenhum Estado que faça vigorar aquela lei. Ela é produto de um acordo entre Estados. A rigor, o direito internacional se dá na boa intenção e no acordo das partes. A relação entre os Estados é uma relação de forças. Os Estados Unidos não vão renunciar à sua força. Você imagina se a maior potência do planeta vai se curvar a um grupo terrorista em nome do direito internacional? Isso não faz o menor sentido. O direito internacional vigora numa situação onde as regras são seguidas, em situações de normalidade internacional. Em situações excepcionais, você não segue regras.

Terra - A guerra é uma situação de exceção, mas o terrorismo internacional parece ser uma situação ainda mais complicada.

Rosenfield - Primeiro: a lógica do Estado está baseada num princípio hobbesiano: o limite da ação é o medo da morte. O que aconteceu (no 11 de setembro): os terroristas islâmicos não têm a morte como limite, a morte para eles é a salvação. Segundo: se você entra em guerra com o terror, (os inimigos) são pessoas que não estão uniformizadas, se misturam com a população civil, usam escudos humanos. Eles não se colocam como combatentes, se protegem atrás de mulheres e crianças. Portanto, você tem que mudar completamente a estratégia militar. A natureza da guerra mudou.

Terra - Segundo versão oficial da Casa Branca, o objetivo central da ação em Abbottabad não era matar Bin Laden. A recusa em afirmar isso seria um sintoma da vergonha ocidental?

Rosenfield - Boa questão. Acho que tem uma vergonha que os argumentos não são ainda suficientemente claros. Porque a ação deles não foi vergonhosa, foi clara: "nós viemos para eliminar Bin Laden, há quase dez anos estamos fazendo isso, o que mostra que não convivermos com a impunidade. Perseguiremos o terror onde o terror estiver". Essa é a mensagem que eles deveriam ter transmitido ao invés de fazer aquela confusão.

Terra - Alguns grupos de oposição vêm diminuindo sensivelmente as atividades terroristas e aumentando o diálogo com os governos, como as Farc e o ETA. Isso é uma vitória ou uma derrota deles?

Rosenfield - O que as Farc ganharam? Nada. O que o ETA ganhou? Nada. Eles foram extinguidos militarmente. Quando houve diálogo na Colômbia, eles foram lá e sequestraram os caras. Aí o (presidente Alvaro) Uribe preparou o Exército e partiu para cima. A mesma coisa fizeram os espanhóis e os franceses (no caso do ETA). Como (os terroristas) estão eliminados militarmente, agora eles querem diálogo. Mas a condição do diálogo foi a eliminação militar. Não houve diálogo.

Fonte: Terra
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